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(21.10.2019) O livro Leituras de Letras e Cultura, de Gildeci de Oliveira Leite e Ricardo Tupiniquim Ramos é disponibilizado neste espaço, atendendo a solicitação dos autores. Publicado em meio digital pela Quarteto Editora, Literatura na Bahia divulga esta obra aqui e ainda na plataforma internacional ISSUU.COM.
Clique no endereço de inserção da obra, abaixo:
https://issuu.com/e-book.br/docs/leituras


(13.05.2019)  Duas figuras importantes da literatura na Bahia constituem objetos de análise em dois pequenos livros da coleção E-Poket: Jorge Amado e Herberto Sales. O primeiro da geração de 30, que inseriu a temática no cacau na Literatura Brasileira, e o segundo, da geração de 45, responsável pela temática do garimpo e do diamante.

(04.01.2019)  O baiano Marcelo Torres escreveu uma memorável crônica sobre a posse do novo Messias/Presidente. Vale a pena ler: O messias e sua caneta bic.

(15.12.2018)  Uma nova série de livros eletrônicos foi criada pela E-Book.Br com a finalidade de difundir o hábito da leitura; trata-se da Coleção Pequenas Obras Primas. A característica principal é o minúsculo tamanho, permitindo ao leitor ter acesso a obras essenciais, tanto brasileiras quanto estrangeiras, concluindo a leitura em poucos minutos. São incluídas, apenas, narrativas breves, com pouquíssimas páginas, permitindo a leitura rápida.
O primeiro livreto da série é intitulado História de Caçador, que publica um belo e denso conto de Euclides Neto. O segundo é um clássico da literatura europeia, Suave Milagre, de Eça de Queiroz. Com a proximidade do Natal, este espaço dedicado à literatura na Bahia abre uma exceção para incluir uma narrativa sobre as andanças de Jesus pelas terras da antiga palestina, de muitos povos e crenças. Já para compor o terceiro livro da mesma série Euclides Neto foi novamente selecionado, com o e-book Retrato de General.  (Para ler é só clicar no título escolhido.)

(27.10.2018) Dois escritores cujas obras têm ligações estreitas com a região Sul da Bahia passam e figurar com seus mais recentes livros: Cyro de Mattos comparece com o e-book Nos Tempos do Trabuco e Ricardo Brugni-Cruz com Três Histórias. Ambos os livros integram a “Coleção Teal” concebida para ser lida, confortavelmente, em celulares e tablets.

Para maior divulgação dos livros disponibilizados, eles figuram ainda em dois sites e são também publicados no conhecido portal Issuu.Com – criado em Copenhagen, na Dinamarca, e atualmente sediado também nos Estados Unidos – para reunir obras de leitura gratuita em todo o mundo.

Links onde os livros presentes neste blog estão hospedados:

Clóvis Sampaio: Reacender a luz do sol


Reacender a luz do sol

Cid Seixas

Diz-se que em algumas regiões do oriente, especialmente no Japão, todo homem escreve, pelo menos, um pequeno poema em sua vida. Esses versos velados encerram a visão de mundo do sujeito, são o seu segredo, a sua identificação. Por isso, não são revelados às pessoas estranhas. Numas poucas palavras está a essência do sujeito, as entranhas da sua alma, materializadas em palavra, no verbo. Aqui, inverte-se a verdade bíblica: a carne fez-se verbo e habitou o silêncio. É preciso que a palavra se materialize em lugar do sujeito.

        Recorro ao exemplo oriental porque os japoneses são mestres em concisão, em síntese, em tirar o muito do pouco. No pequeno está contido o grande; é o segredo secular. Esta também é a característica básica da poesia, comparada à prosa: ser uma escrita estrita, precisa, onde o menos diz o mais.

Difícil, no entanto, é isso se fazer entender por todos. O verso continua sendo usado por quem se quer poeta como uma prosa pequena, mais fácil e amena. O movimento romântico, que mudou o curso do pensar e do sentir no século passado, em meio às suas contribuições positivas, divulgou — e até impôs — a escrita amena de influentes emoções fluentes. A poesia passou a se identificar, ainda mais, com as manifestações do eu, suas queixas e deixas.

É por isso que algumas pessoas mais sensíveis, mais empenhadas em entender o mundo em volta de si, se valem do verso, mesmo sem dominá-lo, para repensar o cotidiano, falar a si mesmas e aos outros: àqueles que queiram ouvir o que Caetano chamou de outras palavras. É o caso de Clóvis Sampaio, um iniciante ainda sem os maturados recursos literários. Seu verso é seu jeito de corpo, de dizer o que precisa dizer, de pensar o que, de outro modo, ainda não pôde pensar. Por isso esse estreante, como todo estreante, merece incentivo, para que continue — e venha achar o caminho, que só se acha caminhando.

O verso é como uma vela de barco ao vento, abrindo caminho no mar sem caminhos. Onde tudo é imenso, infinito. E onde se passa sem deixar rastros. Sempre é preciso sulcar a superfície virgem outra vez.
       
"Minha certeza é fria como uma lâmina quente
e confunde muito mais que explica".

Esses versos de Clóvis Sampaio dizem mais o que eu queria dizer. Trata-se de um dos melhores momentos do seu livro de iniciação. Assim como este outro:

"Brincar de brincar com você
é apagar a luz do quarto
e acender a luz do sol".

É aí, talvez, que Clóvis encontra o rumo da poesia em meio ao verso vadio. Rumor que deve ser seguido, sempre.

O lançamento do primeiro livro de um autor está perto do primeiro apelo do recém-nascido: seu choro, sua fala. Um primeiro livro é como um primeiro filho. Isso é um lugar comum da linguagem. Mas quem experimenta essa sensação — a de ter um primeiro filho, ou de publicar um primeiro livro — sabe que um lugar comum da linguagem não é um lugar comum do sentir. É algo forte, pessoal e intransferível. Outro clichê que uso, para dizer que a poesia é o dito inesperado. Pelo contrário exemplifico o que quero. Dizer o indizível de forma não dita deve ser a ambição de todo aquele que se quer um escritor.

Espero que este seja o caminho de Clóvis, que agora se faz ao mar. Colombo foi o poeta da América. Que sonhou o impossível conquistado por outro que deu nome à sua descoberta. Que entre o reconhecimento de Américo Vespúcio e a morte inglória de Colombo, Clóvis Sampaio prefira a segunda. A aventura da descoberta, o trabalho. Navegar é preciso.

No mais, seus versos dizem:

"O amor tece a teia
que amortece a veia".

E mais não preciso dizer. Sem aspas, me aproprio do seu verso. Agora não é mais vosso, já é nosso, de todo leitor. Minha certeza é fria como uma lâmina quente. E confunde muito mais do que explica.

        Oh! quão desmelhante.

________________

Clóvis Sampaio.  Rudá; poemas. Salvador, S.O.S. / Movimento Editorial Alternativo, 1992, 68 p.

Ildásio Tavares: A técnica de dizer coisas simples


A Técnica de Dizer
Coisas Simples

Cid Seixas

A marca mais evidente da poesia de Ildásio Tavares é a busca da simplicidade, de uma dicção coloquial capaz de recriar a oralidade do discurso cotidiano com sua força e seus dizeres de maturada experiência. O scholar, o bem formado profissional acadêmico, sempre atento às técnicas de construção do texto e aos labirintos da linguagem persegue uma poesia despojada e de surpreendente simplicidade.

É evidente que este parti pris estabelece de pronto uma polaridade: a aceitação ou a rejeição por parte do leitor. É como se o poeta intencionalmente exigisse uma definição radical. Tão radical quanto a sua própria intransigência enquanto intelectual combativo e inquieto. É neste aspecto que o compromisso político do autor mais se evidencia.

Mesmo quando não pratica uma poesia de deliberado engajamento quanto à mensagem veiculada, Ildásio mantém-se fiel à orientação ideológica assumida desde a juventude.

A arquitetura do seu verso e a dicção do seu texto são de um poeta político, de um poeta que quer atuar a toda hora, que quer participar ativamente da vida da cidade. Mesmo ao falar dos insondados labirintos do sujeito e de tomar a lira para cantar o sentimento de um eu que se isola como centro do universo afetivo, ele o faz através de uma linguagem de assumida simplicidade que coletiviza este eu, que o identifica com o homem comum.

E aqui é necessário se fazer referência ao projeto de um livro escrito de 1964 a 1969, a primeira data, quando se deu um golpe de estado de direita no país, e a segunda, ano em que os militares lastrearam uma ditadura destinada a mantê-los indefinidamente no poder. Os mentores civis do golpe eram aqueles que acreditavam na supremacia das elites econômicas e defendiam a sua hegemonia política. Que viam a participação do homem comum, do trabalhador, do assalariado nas decisões nacionais como um “risco vermelho” ou como uma forma de avanço do comunismo.

Foi como reação intelectual a estes tecelões do liberalismo econômico de ontem e de hoje que surgiu o projeto e a construção dos poemas do livro O canto do homem cotidiano (publicado somente em 1977). Mas em 1968 Ildásio publicara seu primeiro livro, Somente um canto, dando conta não só do lirismo dos tempos juvenis como também desta tomada de posição que viria a caracterizar a sua linguagem poética. No poema “O tempo dos homens” ele anunciava:

O tempo dos homens é feito de pedra,
É feito de carne, de sangue, de dor.

Neste mesmo livro, no “Anti-canto a um poema de Richard Eberhardt”, insistia:

Não posso ver no campo apenas margaridas;

para fechar o volume com uma glosa aos versos de Gil Vicente:

Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas.

Os Poemas seletos de Ildásio Tavares publicados pela Fundação Casa de Jorge Amado, na coleção Prêmio Copene, dão conta de todo o trajeto do poeta, reunindo um pouco dos seus vários livros. São incluídos desde os textos mais antigos, sob a rubrica de “Versos jovens”, até os sonetos da maturidade, nos quais ele colhe os frutos de um complexo aprendizado.

Falar destes Poemas seletos é, portanto, fazer uma revisão de toda obra poética aí representada. Alguns volumes, de poucas páginas, como Imago, por exemplo, são integralmente ou quase integralmente incluídos nos Poemas seletos. Este livro, ao lado de Ditado (lançados respectivamente em 1972 e 1974), representa a outra face polarizante da poesia de Ildásio Tavares: a eleição de uma forma como eixo e pretexto de sugeridos dizeres. A economia sintagmática é contraposta à sintaxe visual ou à eleição do espaço como elemento constituinte do discurso verbal.

Nelson Werneck Sodré, há cerca de vinte anos, chamou atenção para o modo que o poeta põe a técnica a serviço do homem, ou o dizer a serviço do que é dito: “Em Ildásio Tavares é fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade de, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou: as diferentes maneiras de dizer a verdade.”

A fusão destas tendências, que em alguns poetas são antagônicas, e a busca de uma síntese somatória começa a ser feita em Tapete do tempo (com poemas escritos de 1975 a 1977 e publicado em 1980). Aí Ildásio assume claramente a conciliação entre uma poesia que experimenta formas de dizer e busca nestas formas sustentação para uma dicção coloquialmente simples. João Ubaldo Ribeiro já escreveu o essencial a respeito deste lugar de chegada da poesia de Ildásio Tavares: “Seus versos, que eu sei e percebo trabalhados minuciosamente, são, não obstante o seu apuro técnico, tão maravilhosamente simples, que parecem, em muitos casos, recolhidos de um cancioneiro popular”.

Ao assumir um lugar de onde fala, o poeta também assume a fala deste lugar. A dicção do homem comum é a forma encontrada para encenar o drama cotidiano. Ou ainda: a busca da simplicidade revela a ambição de ser complexamente percebido pelos mais simples. Sua opção por uma poesia comprometida com o homem, sem usar as fórmulas desgastadas do panfleto partidário, encontra equivalência na sua prosa de ficção, especialmente no romance Roda de fogo, grito e gargalhada de toda uma geração que viveu os dias de incerteza instaurados pelo golpe de 64.

Concordando com a avaliação feita por Jorge Amado, estamos diante de um poeta cheio de interrogações, “buscando ansioso resposta para uma quantidade de perguntas que estão em muitas bocas mudas.” Quer na poesia ou na prosa, convém repetir, Ildásio Tavares é um escritor que constrói a sua circunstância poética a partir da condição política do ser humano.

A mensagem do seu discurso e a linguagem do seu invento buscam uma mesma direção, um mesmo objetivo: dizer o essencial de todos os homens e mulheres para o maior número possível de homens e mulheres, colocando a técnica e os mais complexos saberes a serviço das coisas simples.

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Artigo crítico sobre o livro Poemas seletos, de Ildásio Tavares. (Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996, 146 p.) Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 1 jul. 96, p. 7.

Código 2: Códices do presente


CÓDIGO II:
CÓDICES DO PRESENTE
 
Cid Seixas

Quando em 1968 o primeiro número da revista Porto de Todos os Santos incluía na sua seção de poesia um trabalho do engenheiro Erthos Albino de Souza, era ainda muito limitado o número de escritores baianos voltados para a poesia concreta. A partir daquela época, com a divulgação do seu "Crisálida Rosal" e de outros inventos, Erthos começou a atuar mais intensamente como centro solar de uma nova galáxia, empenhado na revisão dos valores poéticos da velha província.

Hoje, os brados retóricos e barrocos não formam sozinhos o des/curso poético da cidade. Embora numericamente muito superiores, os bacharéis do verso verboso já dividem os ducados metafóricos dos feudos de Garcia D'Ávila com um pequeno grupo que se lhe opõe radicalmente o pensamento estético. Tanto que, em 1973, quando o poeta Carlos Cunha e eu organizamos a II Feira da Poesia, não pudemos dispensar a participação do grupo concreto baiano, ao lado de outros poetas de vanguarda. Foi incluída na programação oficial da Feira a Noite da Poesia Concreta, constando de exposição de trabalhos de criação, em praça pública, além de lançamentos e noite de autógrafos. Na barraca da poesia concreta estavam à venda também os livros das estrelas maiores do centro de irradiação paulista, como Re-visão de Kilkerry, de Augusto de Campos (que muito deve a Erthos as primeiras pesquisas em torno do simbolismo baiano) e Re-visão de Sousândrade, outro trabalho de recolocação de autor brasileiro no lugar que sua obra exige; também com o concurso de Erthos Albino de Souza.

O ano passado, este mesmo grupo (que participou da Feira da Poesia), reunido em torno da figura do Poeta-Engenheiro, como o chamou Haroldo de Campos na nota introdutória ao livro de Mallarmé, fundava a revista Código. Era uma publicação baiana, mas com pretensões e caráter eminentemente nacionais. Já trazia nomes locais que, pouco a pouco, mereceriam respeito intelectual, como Antônio Risério, bem atualizado e bem informado nos seus artigos e ensaios publicados em jornais. E a revista se impôs como documento indispensável a todo aquele que deseje uma visão crítica do panorama histórico da literatura baiana.

Surge agora o número dois de Código, com participação de Augusto de Campos, Antônio Risério, Beto G. Cerqueira, Caetano Veloso, Décio Pignatari, Erthos Albino de Souza, Haroldo de Campos, Héctor Olea, José Lino Grunewald, João Patinhas, José Luís Geraldi, José Roberto Lakatos, Lena Coutinho e Raquel.

Convém cavar o chão de alguns dos trabalhos incluídos neste novo número, lendo aqui e deslendo lá o que é possível desvendar. Héctor Olea constrói seu Luzaluz através do processo constante de palavra/montagem, onde os signos linguísticos são acumulados e fundidos num morfema-sintagma. As palavras conservam seu sentido conotativo e/ou denotativo primeiro, enquanto, conjuntamente, adquirem nova carga semântica. O processo vem sendo trabalhado de há muito pela vanguarda brasileira, sendo encontrado também em alguns momentos de poetas do Modernismo como Cassiano Ricardo ou Carlos Drummond de Andrade.

Antônio Risério e Caetano Veloso traduziram alguns provérbios do Inferno de William Blake, o místico e mágico codificador de mistérios. Augusto de Campos entra com o que ele chamava de uma intradução do trovador provençal Bernart de Ventardorn, onde são entrevistos dois versos decassilábicos que, linearmente postos, dizem:

 se eu não vejo a mulher que eu mais desejo
 nada que eu veja vale o que eu não vejo

 José Lino Grunewald, que abre a revista com uma composição de signos & símbolos, reaparece em outra página com um poema que explora as potencialidades da palavra através do processo anagramático. Partindo da máxima "a ordem dos fatores não altera o produto", o axioma é invertido nas oito linhas que antecedem a frase. Deste modo, o axioma é transformado em teorema, um teorema que não é demonstrado, pois, no caso, a ordem dos fatores altera o produto. José Lino joga neste texto não somente com a inversão e o entrelaçamento no plano sintático, mas fonético.

Os “anagramas” de Grunewald não se prendem ao sentido saussuriano da expressão anagrama: "palavra ou frase que se forma com as letras de outra (do grego: ana + grama). Estes anti-anagramas visam apenas o plano fonético e não fonológico, isto é, não se prendem aos domínios da língua, buscando uma nova entidade semântica, através da reconstrução de semantemas com o material apurado na desmontagem dos vários morfemas. Raros são os anagramas fonológicos, como relata construído a partir de altera; estofar, a partir de fatores; e rodem, a partir de ordem. Enquanto ele conseguiu reconstruir com esta última palavra (ordem) mais duas outras: rodem e dorme, se perdeu num discurso transracional ao enveredar por um exercício meramente fonético (ou melhor: fônico), não aproveitando ainda outras possibilidades oferecidas pela língua a quem a ela se atém. Com esta mesma palavra, ordem, formaria ainda morde; com altera formaria alerta, etc. A linguagem e seus sentidos estão aí, ambos mais ricos, talvez, com certeza, que o som sem sentido.

Os velhos poetas da antiguidade já jogavam este lance de dados com mãos de mestre, descobrindo as palavras sob as palavras. Mas José Lino Grunewald não quis trabalhar dentro dos limites linguísticos, indo em busca de uma translinguagem, digamos assim. E isso conseguiu, brincando com seus brincos sonoros. Nada mais.

Infelizmente, a ampla tela de tintas oferecida à poesia de vanguarda não é usada nem prevista pela cartilha concreta: ao partir para a captura da palavra como materialidade, esta tradição (já temos uma tradição do impasse, desde 1950) desvia a mira do alvo quando a palavra se mostra sem ser material. O vasto campo da linguagem verbal, das formas da expressão às formas do conteúdo, não é visado pelo invento dos Campos. No texto em tela, se Grunewald assentasse seu sentido na sintaxe chegaria a resultados mais ricos ao evidenciar, com o jogo de possibilidades em torno do adágio adornado — "A ordem dos fatores não altera o produto", a perda de autonomia da palavra portuguesa, e românica, em relação à latina, onde a tese não comporta antítese. A sintaxe latina prevê o que Chomsky chamaria de outras construções, invertendo a ordem das palavras sem inverter a ordem do sentido. Do produto, portanto. Tudo isso estaria em jogo se o poeta não jogasse apenas com letras, mas com palavras, ou com a linguagem ¾ como um todo; tirando seu leite das pedras de dentro de língua, como faziam Mallarmé, Guimarães Rosa ou mesmo Safo.

E as odes sáficas se safaram melhor que os brincos concretos. Mas como Décio disse: ninguém consegue sempre se superar a si mesmo. Mesmo em estrambolices.

Código 2 traz ainda o Pháneron, de Décio Pignatari, fragmentos das Galáxias, de Haroldo de Campos, dentre outros textos & temas. Enfim: uma publicação não apenas para ser lida ou tida, em casa, sobre a estante ou o aparelho de TV (onde esta toma o lugar dos livros), mas para ser debatida. Como aqui se faz.

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Código II: códigos do presente. A Tarde. Salvador, 12 de julho de 75, p. 4.

Daniel Cruz | Poesia do cotidiano


Uma poesia
do cotidiano

Cid Seixas

Desde Cesário Verde, poeta preferido de Pessoa, a poesia do cotidiano ganhou novo alento na língua de Camões, onde o cantor da raça mestiça roça rimas caetanas.

Mas o que é afinal uma poesia do cotidiano? A desconcertante escrita de Cesário, a livre canção do modernismo, a repousante prosa-poesia de Adélia?

Mais, bem mais. O cotidiano, o agora, neste lugar, embora não se preste a presunçosos discursos da literatura sentenciosa, sempre teceu o encanto da criação poética, em prosa ou em verso.

Daniel Cruz dá o de melhor de si quando o cotidiano é a sua matéria, as coisas simples e fugazes, os momentos mais íntimos erigidos à condição de momentos constantes, eternos mesmo, na lembrança do leitor.
É isto que gosto na escrita deste poeta que principia a definição do seu caminho.

Ao reunir poemas para o segundo livro, a forte presença do dia-a-noite indica as sendas por onde seguir. E Daniel não briga com as palavras: ele as acolhe. Aí seus momentos maiores, seu traço distintivo, sua identidade, distante dos textos de tecido áspero onde as fibras de que se tece brigam entre si.

Há sem dúvida dois troncos distintos de onde se esgalha a arte da escrita: em um, a construção artesanal rigorosa conduz às descobertas, no outro, o trovador trouve, encontra o encanto à beira das frases. É o caso do nosso autor. A elaboração é substituída pelo achado simples, singular, por isto mesmo, plural; comum a todos nós, leitores.

O texto de Daniel é harmonicamente tecido nas teias cotidianas, a partir do embate das forças essenciais geradoras da vida e da morte, de Eros e de Thânatos. De um lado, a perda do pai, padrão primeiro; do outro, a excitação dos sentidos, como no poema "Pesca no metrô", mordazmente bem-humorado. Veja-se o delicioso despudor do voyer, pouco significativo como poema, mas revelador do clima referido:


adoro pescar seios no metrô
  sensuais peixes pululando
sob anônimos decotes
   sexys recortes
ah delícia deliciosíssima
içar trêmulos seios no metrô
   com olhos de cinéfilo pornô
como roubar manga rosa
nos quintais da infância

Enfim, uma poesia para ser lida com prazer. Vale a pena. A pena que a escreveu.

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Daniel Cruz. Inventarium;  poesia. Salvador, Edição do Autor, 1992, 96 p.

Poesia engajada de Capinan

A Poesia engajada
de capinan

Cid Seixas

Inquisitorial é o primeiro e o melhor livro do poeta e compositor José Carlos Capinan. Publicado em edição artesanal de pequena circulação, em 1966, com capa em xilogravura de Calazans Neto, o pequeno volume foi conhecido apenas por um público restrito. Em seguida, Capinan tornou-se um nome nacional, como compositor de música popular, inicialmente parceiro de Gilberto Gil e Caetano Veloso, na fase do tropicalismo, e posteriormente de outros grandes compositores.

Somente há poucos anos atrás o poeta voltou ao território dos livros, publicando dois outros títulos, sem o impacto causado na década de sessenta pelo seu Inquisitorial.

*  *  *

Esta edição marca um duplo e auspicioso retorno: o encontro definitivo da poesia de Capinan com o leitor brasileiro e uma nova fase editorial da Civilização Brasileira, capitaneada por Ênio Silveira.
Durante muitos anos a velha Civilização foi a principal trincheira de investidas do pensamento brasileiro.

Publicou nossos melhores autores e editou uma revista lida e respeitada por todos. Durante os longos anos de vigência do regime militar e a gradual diminuição de investimentos na vida intelectual do país, a Editora foi se enfraquecendo, até ser vendida a um grupo português. Hoje, a Civilização Brasileira funciona atrelada à Bertrand Brasil, com sede no Rio de Janeiro e em São Paulo, e o velho capitão Ênio Silveira, antigo dono da editora, foi convidado para devolver-lhe o prestígio, atuando como diretor editorial. Assim, Ênio vem editando muitos títulos e, entre estes, o livro de Capinan que apesar de ser uma reedição para alguns baianos, para o grande público brasileiro é, de fato, um lançamento.

*  *  *


O que justifica a publicação de Inquisitorial nos anos noventa é a sua condição de poesia engajada de boa qualidade. Sabemos que durante a vigência da ditadura de direita, implantada em 1964, o leitor passou a valorizar toda manifestação intelectual que refletisse a insatisfação do povo brasileiro. Assim, o simples engajamento do autor já era motivo de aceitação do seu texto, independentemente da qualidade intrínseca. Os discursos mais retumbantes e esquerdeiros eram aceitos como literatura e lidos com devoção pela juventude intelectual. Mas nesta geleia geral alguns poetas, como Thiago de Mello e Ferreira Gullar, conseguiram erguer suas vozes além da mediocridade aplaudida. Na Bahia, Capinan fez coro com o que havia de melhor, publicando seu livro de estreia. O temido crítico José Guilherme Merquior escreveu, dois anos depois, em Paris, um alentado artigo crítico de declarado elogio à poesia de Capinan.

Esse artigo, que se tornou conhecido no Brasil ao ser inserido no livro A astúcia da mímese, uma das obras mais lidas do renomado crítico, agora foi republicado no livro de Capinan a título de introdução ao Inquisitorial.

O volume divide-se em três partes. “Aprendizagem”, com poemas escritos entre 1962 e 1964; “Inquisitorial”, contendo o poema título, dividido em doze cantos, produzido em 1965; e, finalmente, “Algum exercício”, incluindo poemas escritos desde 1959.

Trata-se de uma das obras mais representativas da chamada “geração de 60” da poesia brasileira. É evidente que, visto hoje, o livro não desperta o mesmo entusiasmo de alguns anos atrás. Aquilo que ele tem de situado e datado não mais responde às exigências do leitor dos anos noventa, mas como testemunho de uma época é sem dúvida um importante marco.

É nesta perspectiva que convém discutir o livro de Capinan; sabendo que isolado do momento em que foi concebido, ele perde sua importância. Mas dificilmente poderemos falar da poesia engajada da geração de sessenta sem procurar na poesia de Inquisitorial exemplos dos mais marcantes.

Merquior via a última parte do livro como a mais fraca, pela dicção política mais emocionada e mais despojada. Mas é precisamente nela que estão textos como o “Poema ao companheiro João Pedro Teixeira”, verdadeiro hino da resistência da intelectualidade de esquerda, “Formação de um reino”, eloquente alegoria da imposição de poderes ilegítimos à vida de um povo, e, por fim, “Compreensão de santo”, poema que ultrapassa a sua circunstância e que ainda hoje merece uma leitura atenta.

       
*      *      *


O três primeiros versos de “Compreensão de santo” propõem um núcleo ideativo central para o poema: “Todos os santos têm o sexo amputado. / E cansados de suster a própria boca / Maldizem ter fome enquanto comem”. Quer lido enquanto mera referência à condição religiosa de santidade, ou metaforicamente como reflexão acerca da virtude humana, o poema flagra a incompletude dos grandes vultos.

Afeitos a uma aceitação maniqueísta do mundo, isolamos de um lado as virtudes e do outro lado os vícios, sem nos apercebermos que as ações humanas não conseguem manter as qualidades de forma distinta e em estado puro. A prática cotidiana mescla impulsos positivos e negativos, fazendo com que a predominância de um sobre outro defina a qualidade da ação.

Somente a miopia do sectarismo pode aceitar uma ética maniqueísta. Por isso, no mundo dos homens “todos os santos têm o sexo amputado”. “E cansados de suster a própria boca maldizem ter fome enquanto comem”.
Como a sexualidade é um dos “vícios” mais combatidos pela moral burguesa, ou pelo ideal de virtude imposto ao mundo ocidental cristão desde o século XII, quando se estabelecia um fosso entre os prazeres do mundo pagão e a conduta proposta pelo clero aos povos cristãos, só resta ao praticante da virtude amputar o desejo enquanto epifania do sexo.

Mas se o homem é composto de carne e espírito, as forças do animal e da mente entram em choque. Todos os animais são compelidos à satisfação do impulso sexual, a partir de leis ditadas exclusivamente pela força da carne. Os homens põem os poderes do espírito para combater o instinto natural da sua condição biológica.

Da ambivalência nasce o sentimento de culpa — “maldizem ter fome, enquanto comem” — uma vez que a inteligência é uma força abstrata que tenta domar a força concreta da carne.

Se o primeiro verso do poema de Capinan evoca a luxúria, os dois seguintes, que analisam a culpa aí contida, fundem a sexualidade com a gula, um pecado capital muito combatido e regiamente praticado pelo clero medieval e das épocas seguintes. A analogia entre os dois “pecados”, sugerida pelo poema, une os prazeres da cama com os prazeres da mesa, fundamente interligados no mundo psíquico.

Mas estes três versos de “Compreensão de santo” nos remetem a muito mais, enquanto o espaço aqui se encerra, sem que possamos falar de todo o poema. Resta-nos sugerir ao leitor a sua própria reflexão.

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Poesia engajada. Artigo crítico sobre Inquisitorial, de José Carlos Capinan; poemas (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995). Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 6 mar. 95, p. 5.

Conceição Paranhos | ABC Re-obtido


A SEMIÓTICA ABERTA
DO
ABC RE-OBTIDO

Cid Seixas

O livro Abc re-obtido, de Maria da Conceição Paranhos,[1] foi, sob vários aspectos, o mais importante lançamento de poesia do ano de 1974, na Bahia.

Importante, principalmente, como atualização da pesquisa estética que, enfrentando as proposições da semiótica e da linguística, não aceita os limites de uma retórica ornamental, mais apropriada para os discursos de formatura dos bacharéis baianos do que para as descobertas da poesia.

Sabemos que os sobreviventes dos tertúlias líricas da cidade se resguardam à sombra de uma tradição cada vez mais fóssil e menos fácil de se impor perante as exigências do tempo. Vivemos, se é possível a referência como paralelo, o "mito da queda", colocado por Fernando Pessoa, em Mensagem. Entre nós ainda pesam os preconceitos de uma poética retardatária e alheia aos rumos da vanguarda brasileira. A Bahia — adotado um juízo de valores isento — anda, pelo menos, alguns anos atrás de São Paulo, Minas, Pernambuco ou Rio de Janeiro, do ponto de vista da sua criação poética. Poetas, temos em todas as esquinas, becos e botecos, saudosas viúvas condoreiras de Cecéu. Mas amantes da palavra, oficiais do ofício do texto, artesãos da sua arte, capazes de cumprimentar a beleza, não temos muitos.

É por isso que se deve destacar o novo livro de Maria da Conceição, aceitando a polêmica sugerida pela autora ao realizar no território poético a dupla e ambígua acumulação: texto/metatexto. Evidentemente, não se pretende estabelecer uma hierarquia que vise conferir à autora um lugar privilegiado no contexto dos seus pares. Longe, o intento, principalmente pelo valor inegável de poetas como Ruy Espinheira Filho, Capinan, Myriam Fraga, Falcón, Carlos Cunha, Ildásio Tavares, Florisvaldo Mattos ou Antonio Brasileiro ¾ pertencentes à chamada geração da Moderna Poesia Baiana.

O que tenta este texto é uma análise, tanto quanto possível descomprometida, de projeto e procedimento do Abc re-obtido, livro que se constitui numa quebra da praxe poética — oh! quão dessemelhante — da Velha Cidade de Gregório de Matos.


Re-obtenção
como metalinguagem

Sabemos que a Poética é uma metalinguagem, enquanto o poema é operado através de uma linguagem-objeto. A primeira é a análise do discurso; a segunda, a linguagem como expressão de um conceito sugerido pelo mundo que nos rodeia. Os textos sobre teoria da informação estética repetem, frequentemente, tal distinção, e o leitor sabe que a obra literária se utiliza de uma linguagem-objeto — a linguagem como instrumento através do qual a mensagem é transmitida. Inversamente, na obra teórica, onde se discutem a realização de um poema ou os recursos estilísticos de um autor, a linguagem deixa de ser o objeto ou o instrumento através do qual se comunica a mensagem, passando a ser o próprio assunto a ser comunicado.

Existem, porém, poemas metalinguísticos, como a Arte Poética, de Verlaine, ou a Procura da Poesia, de Drummond; os exemplos são muitos, onde o tema do poema é a Poética. O Abc re-obtido não se inscreve propriamente nesta categoria, apesar se ser um conjunto de poemas metalinguísticos. O livro não procura tratar da arte de fazer versos, mas realiza claramente a metalinguagem, através da subversão do código linguístico. Ao procurar reconstruir e revalorizar a linguagem, atribuindo nova carga semântica aos elementos fundamentais da sua representação gráfica, o poeta está, consequentemente, tomando o veículo como motivação. Tanto o mestre formalista Roman Jakobson, quanto Barthes e Eco já observaram as afinidades entre poesia e metalinguagem. No Brasil, Haroldo de Campos também percebeu o elo e, no ensaio "Comunicação na Poesia de Vanguarda", cita uma observação de Hegel bem a propósito do nosso problema: "Para a modernidade, a reflexão sobre a arte passou a ser mais importante do que a própria arte".[2]

A constante reflexão do artista em torno do código, confere à linguagem uma nova posição, mais privilegiada que a de simples objeto de transmissão. O texto moderno desloca o centro de gravidade do significado para o significante; a poesia moderna radicaliza a tendência, sustentando sua proposição na forma do signo, chegando a abandonar a referência ou o sentido, em favor da valorização dos elementos sígnicos da expressão. Para usarmos a prata da casa, o concretista Erthos Albino de Souza, criador da revista Código, deixa transparecer nos seus trabalhos a constante preocupação neste sentido, vinculando a poesia à ciência geral dos signos e promovendo a sua emancipação do domínio linguístico. A este fenômeno chamamos, de certa feita, invertendo a expressão de Eco, os conteúdos da forma.

Não é sem causa que os concretistas brasileiros rendem tributo a Stéphane Mallarmé e, principalmente, ao seu poema Un Coup de Dés, talvez o primeiro a afirmar que a poesia se faz com palavras e não com ideias.

É aí que o livro de Maria Conceição se inscreve corajosa e independentemente entre a poesia de vanguarda: o texto é auto reflexivo, não se trata de um simples discurso emotivo ou de uma retórica comprometida, preocupada com os fins a serem atingidos. A propósito, convém lembrar ainda Haroldo de Campos, que dizia que o primeiro conteúdo do poema concreto é a sua estrutura. Com a citação e frequente referência a esta corrente, não identificamos, necessariamente, vanguarda e "concretismo". Tomamos a poesia concreta como uma das possibilidades do engenho novo, uma vez que a redução obrigatória de toda vanguarda brasileira aos preceitos concretos representa uma espécie de imposição ao poeta de uma nova gramática, ou seja: uma poética normativa e unidirecional.
Os caminhos da vanguarda são abertos, inclusive no sentido diacrônico; entendido como um retorno para efeito de redescoberta. Por isso é que não vejo com olhos de tédio a profecia de Décio Pignatari, ao falar das "redundâncias mais ou menos aceitas e que formarão a linguagem comum universal do fim do século". O código é gestante. Não existe, por enquanto, novo perigo de saturação.

Mas insistamos no caráter metalinguístico do livro de Conceição Paranhos, no qual é impossível se estabelecer a dicotomia entre forma e conteúdo, já que o veículo empregado para a transmissão da mensagem é a mensagem mesma. Neste sentido, esta poesia se aproxima mais do modelo teórico do Poema do que qualquer outra que tome a linguagem como instrumento de comunicação.
Sabe-se que a estética hegeliana não admite a divisão entre forma e conteúdo; mas, paradoxalmente, alguns dos pensadores que se propõem herdeiros ideológicos de Lukács, ao tentarem o exercício da criação, estabelecem a tão famigerada dicotomia, se prendendo ao objetivo a ser atingido (a ideia que se pretende transmitir), esquecendo, portanto, a indissolubilidade entre fim e meio. Esquecendo, se não no plano ético, pelo menos no plano estético.
Toda poesia que se sustenta na valorização unilateral da mensagem incorre em dois erros essenciais: o primeiro, intrínseco, no sentido aristotélico (Poética 1460 b 13), a mímese imperfeita, em virtude da utilização arbitrária da linguagem; e o segundo, historicamente equívoco, pela dicotomia evidente entre forma e conteúdo.

O traço marcante do Abc re-obtido é a exigência textual de se conciliar um discurso teórico com a leitura dos poemas. Na descodificação da mensagem, o leitor realiza, forçosamente, uma recodificação, atitude que implica dupla posição crítico/criativa, ou metalinguística no sentido poemático. Na "Nota do Autor", precedendo o alfabeto multissemiótico que foi incluído no fim do volume, a poeta chama a leitura do seu livro de de/recodificação, evidenciando a necessidade de reflexão. Paralelo ao processo de fruição, o leitor estrutura um tipo de criação polifacética, de natureza, portanto, metalinguística, ao considerar a diversidade de origem dos símbolos utilizados.


O plurissigno,
abertura operacional

Umberto Eco postula como diferença fundamental entre as artes clássica e moderna o fato da primeira introduzir figuras originais no interior de um sistema linguístico permanente e de leis imutáveis, ao passo que a arte moderna afirma a sua originalidade estabelecendo um novo sistema linguístico. Aprofundando a questão, ele arremata: "O poeta contemporâneo propõe um sistema que não é mais o da língua em que se exprime, mas também não é o de uma língua inexistente: introduz módulos de desordem organizada no interior de um sistema para aumentar-lhe a possibilidade de informação".[3]

É isto que caracteriza a abertura da obra, num dos muitos sentidos possíveis, e é neste sentido que o livro de Maria da Conceição Paranhos representa uma semiótica aberta. Tomamos aqui a expressão semiótica para representar um dos vários sistemas semiológicos possíveis e a expressão Semiologia para a disciplina que estuda os diversos sistemas ou semióticas existentes.[4] Partindo de uma semiótica gerativa ou de base, que é a língua (veja-se mais adiante a posição de Jakobson, que considera a linguagem como fundamento de todo e qualquer sistema de comunicação), a autora pluraliza os seus signos, transformando-os em plurissignos, isto é: as letras, ou sinais de um sistema de escrita fonográfica passam a ser susceptíveis a várias leituras, porque são apresentadas como signos de várias semióticas ou de vários sistemas semiológicos.

Desta forma, o "A" — primeiro poema do volume — não representa apenas a primeira letra de todos os alfabetos (exceto o etíope), mas aparece também como um símbolo nos sistemas da Química, da Música, da Astrologia, da Álgebra ou da Alquimia, onde o Alfa das escrituras é a pedra filosofal. O texto do Abc re-obtido se ocupa destas disciplinas enquanto semióticas, ou sistemas de linguagem, reativando tais códigos na mente do leitor para o ato de decodificação da mensagem poética. Em síntese: não existe uma barreira de campo entre a Linguística e a Semiologia. Utilizando extensivamente um conceito de Roman Jakobson,[5] diríamos que a linguagem construída pela poeta nesse livro é constituída por várias funções: temos a função predominante, que é a função linguística, e as funções adicionais, que são assumidas pelas diversas semióticas que possibilitam a reobtenção semiológica do Abc.

O segundo poema do livro ¾ cujo título é "B" ¾ começa pelos versos:

 Quantidade suposta
 em álgebra:
 na esfera, o ábaco
 b mol, b quadro
 existindo por cortarem-se
 mais alto explode o b
 em sustenido
 o b quadrado volta e rasga
 neutralizados os artefatos
 brote a música
 em cromatismo re-obtido

onde a segunda letra do alfabeto é explorada como símbolo sujeito a várias leituras, em sistemas como Álgebra, Música ou Química:

 ou negativo trivalente
 boro
 metaloide

Outro trecho deste mesmo poema faz alusão a Bach e a sua Arte da Fuga, obra inconclusa, posto que o autor morreu debruçado sobre a partitura, quando transpunha o contraponto do tema “BACH”, ou seja: B = si menor; A = lá; C = dó; H = si natural. Vejamos a estrofe:

 Ó Johann Sebastian
 B A C H
 em si menor, em lá, em dó
 em si, ao natural
 teu nome interrompido
 em ato, águia
 que parasse
 em voo, sem compasso
 prosseguindo
 sem tempo e sem espaço
 catedral de som
 que em som mudasse
 em som se consentindo
 eternizada.

O que se chama de semiótica aberta é a reunião de signos pertencentes a vários códigos num mesmo inventário semântico, trabalho a que a autora se propôs. Com base na língua, ela renova e amplia as possibilidades do sistema, demonstrando no poema o axioma jakobsoniano: "A linguagem [verbal] não é um meio de comunicação entre outros; é o fundamento de toda comunicação. A linguagem é realmente o próprio fundamento da cultura. Em relação à linguagem, todos os outros sistemas de símbolos são acessórios ou derivados".[6]

Partindo daí, o poeta, neste seu livro-proposta, através de um projeto estrutural sólido e cuidadosamente elaborado, constrói um admirável modelo de vanguarda voltada para o verbo. Enquanto uma corrente declara implicitamente, nos seus textos de criação, a morte da palavra — ou o seu desmantelo — Maria da Conceição parte em busca da reobtenção expressiva, através da submissão das semióticas à língua[7]. A palavra está morta, proclamam as vanguardas antidiscursivas. Sim, morta como relíquia de uma linguagem poética estratificada, mas o mesmo não se pode dizer, quando ela passa a ser elemento do idioleto de um Guimarães Rosa ou das fragmentações & montagens do linossigno de um Cassiano Ricardo, entre outros magos do verbo alquímico. A autora viu e sentiu as possibilidades abertas pelos mestres e feiticeiros, e iniciou o seu trabalho, numa mesma linha de transmutação do chumbo em ouro ouvido ou lido.

Na verdade, a tarefa que Maria da Conceição Paranhos se impôs é ampla, o que justifica e explica o fato de não ter realizado poemas individualmente acabados, mas um livro de estrutura bem definida. Este não é um volume para ser tomado por partes; não acredito que existam poemas que, isoladamente, se imponham ao gosto do leitor, mas um livro para ser analisado como um bloco, ou melhor: um sistema de comunicação poética.

Seu sistema, que a partir do livro pertence a todos nós, testemunha aquela responsabilidade referida por Ezra Pound, no Abc of reading, ou por T. S. Eliot, que expressa sua ideia irmã sob outros ângulos: "Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo: seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo ampliar e melhorar".[8]

As lições essenciais, Maria da Conceição Paranhos aprendeu, e antecipou, com as antenas do poeta;[9] e nos transmite do modo que são feitas as grandes revelações: a Poesia.

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Maria da Conceição Paranhos: Abc re-obtido, prefácio de Rosa Virgínia Mattos e Silva, capa de Jan Ewald Jr., Salvador, 1974, 67 p.
A semiótica aberta do Abc-reobtido. Jornal de Cultura; suplemento do Diário de Notícias. Ano III, nº 20. Salvador, 5 jan. 75, p. 5.


NOTAS

[1]. Maria da Conceição Paranhos: Abc re-obtido, prefácio de Rosa Virgínia Mattos e Silva, capa de Jan Ewald Jr., Salvador, 1974, 67 p.
[2]. Haroldo de Campos: A arte no Horizonte do Provável, 2ª ed., Perspectiva, São Paulo, Perspectiva, 1972,150 p.
[3]. Umberto Eco: Obra Aberta, 2.ed., São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 124.
[4]. Umberto Eco: A estrutura Ausente, São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 385-419.
[5]. Roman Jakobson: Lingüística e comunicação, 5ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 129.
[6]. Roman Jakobson: Relação entre a ciência da linguagem e as outras ciências, Lisboa, Bertrand, 1974. Eco na já citada Obra Aberta, p. 73, insere citação de igual teor, tanto de Jakobson quanto de Nicolas Ruwet, prefaciador dos ensaios do mestre formalista.
[7]. Ronald Barthes: Elementos da Semiologia, 2ª ed., São Paulo, Cultrix, 1972, p. 11-13.
[8]. T. S. Eliot: A Essência da Poesia, Rio de Janeiro, Artenova, 1972, p. 35.
[9]. Marshall McLuhan: Os meios de comunicação como extensões do homem, 4.ed., São Paulo, Cultrix, 1973, p. 9-15.