Com a palavra GG


GUIDO GUERRA:
COMO SE FEZ
UM ESCRITOR

Cid Seixas

Além dos laços de amizade, que se ataram há mais de vinte anos, um outro longo laço me liga ao escritor Guido Guerra: o jornalismo como ponto de partida, como escola da vida e da arte. Esta aproximação deve ter sido a razão pela qual os organizadores deste evento me escolheram para apresentar o escritor cujo nome de pia e de guerra é Guido.

Quando eu ainda era um inexperiente colegial e aprendiz numa redação de jornal, Guido Guerra, embora jovem, era um jornalista experiente, respeitado e, sobretudo, temido.

Respeitado, por nós, que começamos a seguir o caminho que ele soube andar com admirável desembaraço. Convém lembrar que aos dezenove anos ele já assinava a sua própria coluna, quando habitualmente todos levávamos alguns anos na condição de anônimos repórteres.

Sua inquietação, sua ousadia e, principalmente, seu domínio da escrita abriram os caminhos do jornalismo para Guido Guerra. Mas, se para nós, seus colegas, ele era querido e respeitado, para os outros, os que não privavam da sua estima, ele não era assim tão respeitado. Ele era temido. Como são temidas as mordidas de cobra, os ventos encanados, as assombrações e, principalmente, as más línguas.

Este homem cordial de agora, cuja maturidade deu relevo às qualidades socialmente admiradas, era um gauche, um daqueles a quem um anjo torto disse: vai, Guido, fazer Guerra na vida.

E ele foi. Foi o Papagaio Devasso, foi o Língua de Trapo, foi o irreverente guardião dos maliciosos costumes.
Jorge Amado, quando precisava de um personagem para demolir a ordem e os malditos bons costumes, tirava das ruas, das redações do jornal, um sujeito que tinha como predicados ser magro, feio, fraco, mas abusado como o capeta chupando chupeta: Guido Guerra.

Assim, quando Jorge Amado precisava de um personagem para demolir a ordem, com seus maus costumes, eis que pulava para as páginas do romance de Amado o então pouco amado homem de guerra, o aguerrido Guido. E assim aparecia, em muitos romances do conhecido contador de histórias da nossa gente, a cara e o nome do Língua de Trapo.

Assim ele se fez conhecido.

Mas não foi assim que permaneceu. O tempo poliu a pedra bruta, a brita. As águas de muitos rios lavaram a língua, o trapo. E surgiu, reluzente, a luz do trabalho, da seriedade, do talento. Surgiu assim o escritor Guido Guerra.

Se nos primeiros livros, o jornalista tentava dar ares de ficção a uma reportagem única e recorrente: os fatos do seu mundo interior; em contrapartida, nos últimos livros, o jornalista – artesão da escrita – se fez artista, se fez escritor.

Mas esse foi um longo caminho. Primeiro foram cometidos os indefectíveis poemas da mocidade. Os lacrimosos versos de amor que todos nós, um dia, escrevemos. Nome da assombração, ou do livro de Guido que não se materializou: Encarnação do amor.

Desencarnado continuou esse livro até hoje, inédito, de cujo pecado Guido nunca se confessou. Folheando um velho resumo bibliográfico é que soubemos que o autor cometeu o pecado da poesia. Depois desses manuscritos inéditos, dessa poesia amorosa não confessada, vieram os contos de Dura realidade, publicados em 1965 pela Editora Progresso; a celebre editora de Pinto de Aguiar, que foi responsável por um raro momento de franca atividade intelectual na Bahia.

A Progresso foi uma editora baiana com dimensões e prestígio nacionais, que refletia um instante privilegiado das nossas atividades e do nosso mundo cultural. Um instante em que a civilização baiana existia perante a nação, do ponto de vista da criatividade dos intelectuais e da resposta das instituições – e também do poder público.

Um instante que, nos dias mais recentes, foi substituído pela falta de editoras, pela falta de uma política cultural mais planejada e menos inconsequente. Um instante que foi substituído pelo desapreço governamental pelo livro. Um instante que foi esquecido ao som do fricote, da dança da galinha e outras piruetas mais. Triste retrato de “um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e covardia e deixa transformar-se nesta festa, qual manto impuro de bacante fria.”

Isso é um trecho do poema de Castro Alves, no qual ele se indignava pensando no seu momento e prenunciando o futuro, o nosso momento de agora.
Mas esse momento não tinha começado ainda.

Quando Guido publicou Dura realidade nós não tínhamos caído num plano real. Uma geração ainda não havia constatado que o sonho acabou. A Bahia vivia os resultados dos anos de Edgard Santos, de uma Universidade atuante, viva, da Editora Progresso e de tantas coisas mais. Foi nesse clima propício à euforia que se deu a estreia em livro de Guido Guerra. Tendo publicado seu primeiro livro em 1965, ele estaria comemorando agora trinta anos de literatura, se o nosso tempo fosse de comemorações.

Mas, mesmo sem comemorações, em meio ao tumulto, algumas vozes se querem claras, cristalinas e coerentes. Algumas vozes insistem em falar e nos restituir a esperança perdida. Por isso escritores como Guido Guerra amadureceram. Ele e toda uma geração.

Com esforço, trabalho e confiança na escrita, o jovem jornalista de ontem, o rebelde sem causa, encontrou o seu caminho, a sua causa: a causa da palavra.

Quando os personagens do Guido Guerra dos anos setenta falavam era uma voz uníssona que dizia o seu sentimento. Somente anos depois veio a despersonalização, o dialogismo, a presença de vários sujeitos, verossímeis, verdadeiros, independentes do seu criador.

Anos depois, não mais uma voz uníssona dizia o seu sentimento, o pessoal e o intransferível; mas várias vozes de vários personagens diziam o sentimento do mundo, o impessoal, o transferível a todos nós, a toda voz. Várias vozes diziam que surgia um escritor.

Somente anos depois ele sairia da casa do sem jeito para o céu azul do sol poente, onde Dr. Salu anunciava as santas aparições da luz, da terra, do ficcionista Guido Guerra. Não mais o Papagaio Devasso, não mais o Língua de Trapo, mas o escritor, o criador de mundos e de criaturas. Aquele que aprendeu, através do diálogo bem tecido e da voz do outro, a dar voz a si mesmo e ao outro silenciado.

As angústias, as inquietações do adolescente rebelde que antes explodiam em confissões pessoais e intransferíveis, finalmente foram postas à margem de si mesmo e diante do outro. Desse modo passou a falar não mais por si, mas pelo outro, por todos nós.

Por tudo isso, pelo talento, ou melhor, pelo trabalho, construiu-se o artista, o escritor. E um escritor não nasce do nada, nasce de um esforço, de uma determinação, de uma consciência construtiva.

Conta-se que Graciliano Ramos, com sua objetividade, curta e grossa, teria respondido a uma pergunta mais ou menos assim:

– Mestre Graça, o que é preciso para se fazer um escritor?

Resposta:

– Bunda.

Para sentar na cadeira e trabalhar, trabalhar e trabalhar.

Por tudo isso, pelas muitas cadeiras pelas quais passou, pelo esforço, pela dedicação, pela seriedade e pelo trabalho, com a palavra o escritor Guido Guerra.


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Guido Guerra, como se faz um escritor. Apresentação do autor durante à série de eventos mensais intitulada Com a palavra o escritor, promovido pelo Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 11.08.95

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