Elieser Cesar


SOMBRAS
DE PALAVRAS

por Cid Seixas

Elieser Cesar vem aos poucos construindo uma obra literária sustentada na inquietação e na procura de meios expressivos para de dar forma a todas as histórias que habitam o mundo das sombras, à espera de um corpo de palavras capazes de transitar no mundo dos homens. Sua estreia se deu em 1989, quando publicou pela Contexto O azar do goleiro.

Além de escritor, Elieser Cesar é jornalista. Suas duas ocupações são contíguas, como casas separadas por parede meia. De um lado, as palavras do dia a dia que lhe dão sustento; do outro lado, as palavras domingueiras que são seu culto, sua religião.

Não tenhamos dúvida de que todo jornalista treinado para escrever com clareza e sem empolamento já venceu um dos principais obstáculos postos no caminho do escritor – o dizer enfeitado. Muitos beletristas imaginam que fazer literatura é maquilar a escrita, escondendo as dobras da pele. Que escrever bem é enfeitar as frases com penduricalhos, fazendo do texto uma luminosa e feérica árvore de Natal.

Desta forma, o estilo de muita gente é pedante e afetado. Desde a revolução burguesa que propiciou a eclosão do romantismo como expressão adequada a uma classe em plena ascensão, os escritores passaram a se preocupar com a simplicidade, pondo em prática a teoria dos árcades. Se um dia a eloquência foi comum aos bacharéis e aos escritores, de um dia para outro os artistas deixaram para os bacharéis a palavra togada e solenemente posta em sapato alto. Pegue a eloquência e torça-lhe o pescoço – já se disse, para o espanto dos pedantes.

Mas a toda hora os trajes de gala são tirados do armário. Vira e mexe, o cultismo ataca. É o que se dá com os chamados pós-modernos. Escrevem coisas que não são feitas para serem compreendidas, mas para serem contempladas. E o estilo pós-moderno faz escola: muitos escritores de talento cedem à tentação de parecerem do seu tempo. Há ficcionistas que cultivam o discurso reluzente e esquecem aquilo que tinham para contar ao outro quando resolveram escrever. Entre dizer as velhas verdades de sempre (afinal de contas, é o que faz todo mundo, mesmo quando o faz de outra forma) e tentar ser original, preferem tentar. A pós-modernidade atrai os homens, como insetos em busca da luz. Mas ninguém precisa se esforçar para ser contemporâneo de si mesmo. Só os mímicos.

Jorge Amado, vez por outra, dá um mesmo conselho a quem merece compreendê-lo: para ser escritor, simplesmente escreva; diga com simplicidade o que tem para dizer. Não tente fazer “literatura” porque o resultado será literatice.

Esta busca de simplicidade que norteou os escritores brasileiros empenhados no chamado romance de 30, se fez sentir nas redações de jornais. Lembre-se que na mesma época muitos escritores procuravam o jornal como meio de sobrevivência. Bons escritores, como Drummond, Graciliano, Rubem Braga. Ao contrário dos sub-literatos, eles não queriam fazer “literatura” nos textos jornalísticos. Queriam apenas usar sua escrita como meio de vida. A mesma técnica, a mesma precisão foi transposta para o jornal. Isso não aconteceu apenas aqui, mas em outros países. Escritores de estilo direto, desempolado, tornaram-se figuras nucleares nas redações de jornais. Editavam, reescreviam matérias, enfim, impunham um novo estilo.

Não é de estranhar, portanto, a facilidade com que hoje bons jornalistas se tornam escritores. Seguem o exemplo de Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, José Cândido de Carvalho, Carlos Heitor Cony, Herberto Sales, Assis Brasil e uma centena mais. Ou ainda: abandonam a ficção e escrevem aquilo que viram. Algumas grandes reportagens em forma de biografia são disputadas pelas principais editoras, agradando tanto quanto um romance.


Mas o que isso tem a ver com o livro de Elieser Cesar? Quero dizer que o autor de O escolhido das sombras e outras histórias não precisa de malabarismos verbais. Ele simplesmente sabe escrever. Por isso suas histórias são lidas com prazer e proveito. Especialmente, quando falam de coisas comuns, destes pequenos tesouros do cotidiano de todos nós que, às vezes, deixamos de perceber quando vivemos e só percebemos ao ler o vivido por outros viventes menos desatentos.

Constituem o volume sete contos e uma novela, “As sombras luminosas”, que dá título ao livro. Dois destes contos, “O trono do desenganado” e “O primeiro carnaval de Luciano” foram premiados. Mas o último, embora distinguido por uma comissão julgadora, parece, às vezes, ceder à tentação dos esquemas intelectuais. O personagem central é apresentado deste modo. Ele pensa e age como um intelectualzinho modelo standard. Seus imaturos conflitos não chegam a sensibilizar o leitor.

Por falar em esquematismo, o apelo à intertextualidade, ou a citação de versos de Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Drummond, Castro Alves e Ferreira Gullar funcionaria de forma mais natural sem o recurso acadêmico das notas de referência, ou de pé de página. Se o autor vê necessidade de identificação das fontes, basta fazer isso no fim do volume, transcrevendo o trecho original acompanhado da referência bibliográfica. Quando esta identificação se dá no âmbito da narrativa, somos despojados da condição de personagens-visitantes ou de hóspedes de um mundo de ficção. Somos jogados de volta às convenções do mundo palpável e civil, com idade, horário, óculos e bigode.  Perdemos então a invisibilidade das ondinas e dos ventos marinheiros, dos quais Ruy Espinheira Filho faz segredo; sagrado.

Mas os momentos menos convincentes do livro são aqueles em que o autor tenta fazer literatura. Aqueles em que o gosto pelo erudito, pelo livresco, ou, ainda, pelo insólito, sobrepõe o uso desta última categoria que, na verdade, é apenas um dos aspectos da realidade humana. Quando o fantástico irrompe para mostrar o quanto insólito é o mundo em que vivemos, ele funciona melhor. Vejam-se as sombras no mundo crepuscular de um incerto Rubaldo Serese. Estas sombras não nos incomodam, como não incomodam ao protagonista, porque surgem de uma necessidade expressiva da narrativa.

No mais, saímos das histórias de Elieser Cesar com a vontade de retornar a outros sítios do seu invento. E isto não é pouco. É o que todo escritor almeja: conquistar leitores.

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Sombras de palavras. Artigo crítico sobre o livro O escolhido das sombras e outras histórias, de Elieser Cesar. Salvador, BDA, 1996, 126 p. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 27 jan. 97, p. 7.

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