Regionalismo: Itana Nunes

DAVID SALLES
E A TEORIA REGIONALISTA
________________________
   
(Cenas Literárias Baianas
nos Séculos XIX e XX)

________________________


por Itana Nogueira Nunes

O CRÍTICO DAVID SALLES

Não tivesse sido tão precocemente recolhido desta vida, ainda no auge da sua capacidade intelectual, o crítico e ficcionista baiano Jesus David Salles de Souza completaria 80 anos neste ano de 2018.
Nascido em 1º de maio de 1938, em Castro Alves, no interior da Bahia, ainda adolescente veio para a Salvador para estudar no Colégio da Bahia, posteriormente denominado Colégio Central, um dos centros educacionais de maior efervescência cultural e artística dos idos dos anos 50 e 60 da Bahia, onde conviveu e compartilhou ideias com os conhecidos Glauber Rocha e Paulo Gil Soares, entre outros importantes intelectuais da época.
A carreira de David Salles, apesar de relativamente curta (28 anos de atuação literária), deixou como legado um extraordinário testemunho dos eventos culturais e artísticos das gerações de 60, 70 e início dos anos 80 no século passado. Seus estudos críticos e teóricos trazem na sua essência muito do que se viu e se vivenciou naquele período de tantas mudanças sociais, políticas, históricas e econômicas tão expressivas para o Brasil.
Salles deixou registrada a sua vasta atuação nos assuntos da crítica literária em centenas de artigos publicados tanto em jornais locais como o Jornal da Bahia, o Diário de Notícias e A Tarde, quanto em outros jornais do Brasil, como O Estado de São Paulo e o Minas Gerais Suplemento Literário.
Além da sua ampla e preciosa produção acadêmica, publicada também em livros, atuou ainda como ficcionista, poeta e contista, participando inclusive de uma coletânea de contos ao lado de autores como João Ubaldo Ribeiro, Sonia Coutinho e Noênio Spinola.
A sua contribuição ao longo do tempo em que escreveu crítica literária em jornais está na capacidade analítica com que estudou diversos temas da nossa literatura, a exemplo do seu valoroso estudo sobre o Regionalismo.
Alguns dos seus ensaios críticos foram tomados como referência para o estudo da obra de Xavier Marques (um dos ficcionistas mais representativos do Regionalismo e da literatura praieira na Bahia) por autores consagrados como Alfredo Bosi, José Aderaldo Castello, Massaud Moisés, Afrânio Coutinho, José Guilherme Merquior entre outros historiadores da literatura brasileira.
Eduardo Portella, conceituado crítico literário, também teceu elogios sobre a sua técnica narrativa que misturava traços de lirismo a pitadas de ironia.
Em verdade, conforme prova o seu largo empreendimento na pesquisa sobre autores baianos, os ensaios de David Salles já compõem parte da história literária da Bahia, o que era, certamente, um dos seus principais objetivos como intelectual das nossas letras, pois nosso autor não poupou esforços e dedicação a alguns importantes temas e escritores que fizeram parte da cena cultural baiana nos séculos XIX e XX.
Os seus estudos sobre Xavier Marques, Jorge Amado e Adonias Filho, por exemplo, nos dão uma visão ampla da sua sólida fundamentação teórica sobre o regionalismo (influenciada pela sua formação sociológica), tanto em termos nacionais quanto locais, que é o caso do regionalismo de feição grapiúna, conhecido também como “Literatura do Cacau”.
A partir do modelo do regionalismo grapiúna, depreendido principalmente das obras de ficção de Adonias Filho e de Jorge Amado, o crítico baiano retoma o projeto nacionalista de Alencar, antes para discutir as questões conceituais sobre o regionalismo, e depois para apontar a antiga questão da tensão ambivalente entre imitação e originalidade no projeto identitário da nação brasileira.
São muitas as aproximações teóricas entre as ideias de David Salles e José de Alencar sobre a construção identitária do povo brasileiro. Alencar, a seu tempo, num espectro mais amplo, tratou inicialmente de buscar a afirmação dos valores regionais do seu povo através de uma forma de regionalismo sem fronteiras geográficas, para tanto, invariavelmente oscilou entre o centro e a periferia, entre a dependência e a autogênese. David Salles vai indicar que a trajetória do projeto alencariano do século XIX, se estende por todo século XX, numa “crescente intensidade amalgamadora”, cada vez mais proximamente ligada à literatura. E, para Salles, é através da manifestação regionalista que a nossa cultura irá transpor a sua condição periférica a um passo cultural mais avançado, para assim atingirmos um melhor nível de auto-reconhecimento. (Salles, 1971)
Os estudos e publicações de David Salles foram pauta da minha tese de doutoramento David Salles: da crítica de rodapé à crítica universitária apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal da Bahia e orientada pelo professor doutor Cid Seixas, a quem devo, além do valoroso norteamento intelectual, a indicação do nome do crítico para o estudo. Como homenagem aos 80 anos de nascimento do autor surgiu este artigo que retoma o velho tema.
A pesquisa de fôlego intenso e aguçado senso crítico deixada por David Salles ainda é campo pouco explorado, não fazendo justiça ao volume, profundidade e cuidado de suas análises.
É, pois, solo fértil para interessados em conhecer melhor certos aspectos da literatura baiana e do regionalismo literário. 
David Salles viajou muitas vezes para São Paulo na tentativa de encontrar o tratamento e a cura para a leucemia. Morreu em 17 de agosto de 1986, com 48 anos de idade, dos quais quase trinta foram dedicados à pesquisa, à ficção e à crítica literária.


Leituras críticas sobre Xavier Marques, Adonias Filho e Jorge Amado

A partir das leituras de: Saveiros no Mar Grande: a continuidade do herói incorrupto segundo Jorge Amado e Xavier Marques (1971), O Ficcionista Xavier Marques: um estudo da “transição ornamental” (1977) e Romance e Regionalismo na Saga do Cacau (1982), do autor baiano David Salles,  e da apresentação e seleção de algumas ideias que estes textos trazem à luz sobre os autores Xavier Marques, Adonias Filho e Jorge Amado, e de forma mais ampla, sobre aspectos da cultura nacional,  apresentamos neste ensaio um mapeamento dos pontos de vista críticos e do que podemos chamar de uma “teoria regionalista” elaborada pelo nosso crítico.
A escolha destes três escritores para análise se dá pelo volume significativo de pesquisa realizada pelo crítico David Salles sobre estes representantes do regionalismo brasileiro, em especial sobre Xavier Marques, que conferiu ao autor um destaque em termos nacionais, e o levou a um reconhecimento nacional renomados da literatura brasileira como fonte de pesquisa sobre o romancista.


Saveiros no Mar Grande (1971)

O primeiro destes ensaios, em ordem cronológica, corresponde à dissertação de mestrado que David Salles apresentada ao Curso de Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia em dezembro de 1971, cujo título original é Saveiros no Mar Grande, o homem do mar no Recôncavo baiano segundo Jorge Amado e Xavier Marques: um exemplo da continuidade literária do herói incorrupto, orientado pelo professor Antônio de Assis Barros.
Apesar do explícito reconhecimento do caráter autônomo e independente da literatura, nesta pesquisa, Salles parte do pressuposto de que a ficção pode ser um excelente campo de trabalho para a sociologia, apresentando, assim, os romances de Xavier Marques (Jana e Joel, 1899) e Jorge Amado (Mar Morto, 1936), como fontes para este estudo de base socioliterária.
Ainda que reafirmasse as diferenças categóricas entre estes dois conhecimentos, a Literatura e a Sociologia, porque tivesse na sua formação ciência de ambos, David Salles, apoiando-se nas teorias de Antonio Candido a respeito da Sociologia da Literatura, ainda recentes por aquela época (Literatura e Sociedade, de 1967), elege dois meios operatórios para analisar os romances dos dois escritores baianos. O primeiro consiste em fazer a descrição dos vários aspectos da sociedade refletidos nestas obras; o segundo, conduz a uma análise da relação dos escritores com a natureza de suas produções e destas com a organização da sociedade.
O método de análise apresentado neste estudo está voltado para a apreensão do texto em si. O que irá reafirmar a tendência de Salles a abordagem imanente, forma de verificação literária que pode ser detectada em grande parte dos seus escritos tanto da crítica de rodapé (jornalística), quanto da crítica acadêmica. Assim, nestas análises são desconsiderados quaisquer “conceitos pré-estabelecidos” sobre as obras ou autores em questão, apresentando apenas os referidos textos destes autores como objetos da análise.
Dois problemas, contudo, se apresentaram a tal empresa num primeiro momento: em primeiro lugar a mudança do aspecto geográfico social baiano, reduzido em alguns pontos quase que somente à história, imporia certa dificuldade à análise do romance de Xavier Marques que é do século XIX; em segundo, a escassez de estudos sobre a vida socioeconômica no recôncavo baiano, palco dos dois romances, à exceção da tese de Luiz de Aguiar Costa Pinto, Recôncavo: laboratório de uma experiência humana, de 1958, o que também tornaria a análise mais arriscada.
Embora enxergasse tais limitações, David Salles toma como finalidade principal a extração dos aspectos sociais das obras em si mesmas, se lançando num trabalho de reconstrução do sistema de vida do homem do mar do Recôncavo baiano:

“O que então intentamos, tomando por base as obras em si mesmas, foi um esforço de reduzir à linguagem conceitual e objetiva – com apoio nas lições da Ciência da Comunicação, sobre linguagem e subjetividade – o material ficcional de Mar Morto e Jana e Joel, a fim de retirar toda a carga afetiva que, nele, óbvia e necessariamente, pela própria natureza da criação ficcional, foi impregnado por Jorge Amado e Xavier Marques.” (Salles, 1971, p. 5)

A partir daí Salles elabora a reconstituição do sistema de vida dos saveiristas, canoeiros e pescadores do mar do Recôncavo tal como este se apresenta nas obras, transcrevendo passagens inteiras dos romances para realizar tal descrição. Esta se constitui a primeira parte do ensaio.
Salles utiliza o termo “Recôncavo” para delimitar o alcance geográfico destes romances baseado na conceituação de Costa Pinto que o define como “a região que circunda a Baía de Todos os Santos”, sendo a “zona da pesca e saveiro” uma das suas sub-áreas.
Na sequência do estudo, o autor irá analisar esse sistema de vida e a posição de Marques e Amado em relação a este sistema. Ou seja, analisa a vida destes homens do mar em relação aos padrões sociais, econômicos e tecnológicos vigentes na sociedade industrial e burguesa no Brasil, emergente desde o século XIX, com vistas a atitude aprovadora deste sistema observada nos autores de Mar Morto e Jana e Joel.
Com isso o autor irá defender a ideia de que tais comunidades guardam ainda as características de uma sociedade primitiva, baseada na “solidariedade” não assimilando portanto a sociedade tecnológica ou de “serviço”, o que corresponde a dizer que as formas de sociedade apresentadas nos romances foram idealizadas pelos dois romancistas.
Não obstante, não se percebe no autor uma preocupação em verificar se este sistema de vida existe ou existiu na realidade. Afastando-se, assim, a possibilidade de ter sido este um estudo meramente sociológico. Entretanto, quis o autor saber porque na visão de Xavier Marques e Jorge Amado essa “realidade idealizada” é lírica e positivamente vista como válida social e culturalmente para os seus personagens, que se mostram livres dos conflitos sociais.
Serviram de bases teóricas para a análise dos dois romances, além dos conceitos de Sociologia sobre “organização social” e “grupo social”, retirados principalmente dos textos de Florestan Fernandes (Sociologia, 1960) e Antônio Luís Machado Neto (Teoria do Direito e Sociologia do Conhecimento, 1965), os textos de Raymond Williams (Cultura e Sociedade, 1969), de Lucien Goldmann (Sociologia do Romance, 1967), de Georg Lukács (La Theorie du Roman, 1963) e de Antonio Candido (Literatura e Sociedade, 1967 e Tese e Antítese, 1964).
Retomando a tese defendida por Salles sobre o status concedido ao homem do mar e a valorização da sua permanência no mar, percebemos que tais conclusões estão relacionadas ao caráter gregário e imobilista do grupo. Pois tanto para Marques, quanto para Amado, quem era do mar não trabalhava na terra, devendo nele permanecer para que se perpetuasse essa tradição, o que representa uma atitude valorização do mar em relação à terra.
Analisando alguns aspectos estruturais de Saveiros no Mar Grande observa-se um estilo de escrita que se distingue, em determinados aspectos, dos outros trabalhos de cunho universitário do autor. Nele, a recorrência quase que total aos textos de criação de Xavier Marques e Jorge Amado (que ocupam bem mais da metade do corpo do ensaio) é a estratégia de comprovação do autor, tecendo através de fragmentos dos próprios textos literários a sua escrita, não destacando nunca a localização das citações, a não ser pelas aspas, constantemente utilizadas dentro do seu próprio discurso, como se vê no trecho a seguir:

“Vivendo “sua infância de junto do mar”, cada filho de saveirista, canoeiro ou pescador terá o futuro “já traçado pelo destino do pai, do tio, dos companheiros, de todos os que o rodeavam naquela beira de cais: seu destino era o mar” (Mar Morto, 49 e 51). E será projeto do pai (como é o de Guma), do tio (como o fora de mestre Francisco para com Guma), etc., etc., “conduzir a criança nas suas viagens, de cedo lhe ensinar a manejar o barco” (Mar Morto, 220).” (Salles, 1971, p. 21)

E num trecho seguinte também utilizado por Salles:

“Os liames grupais e familiares estão presentes desde o primeiro instante da iniciação nos mistérios do mar: “agora o filho começava a andar, brincava de barcos que o velho Francisco fazia” (Mar Morto, 220). Ou desde a breve infância, quando “já estaria então acostumado com as velas, com as quilhas dos barcos, com as canções do mar e os apitos dos navios” e então é levada nas viagens para “de cedo lhe ensinar a manejar o barco” (Mar Morto, 210). No cais, os jogos infantis têm a mesma motivação, “contando aventuras de pesca, falando a língua estranha dos marítmos, fazendo apostas sobre corridas de barcos” (Mar Morto, 50). E, além disso, há pouco tempo para aprendera ler e escrever. Como Guma, “não levavam lá, ele e os demais filhos de mestres de saveiros e canoeiros, mais que o tempo de soletrar uma carta e garatujar um bilhete” (Mar Morto, 50).” (Salles, 1971, p. 25)

Um outro aspecto que chama a atenção é que, apesar de ser este um trabalho de abordagem marcadamente sociológica, nele podem ser visualizadas as primeiras pistas para a fundamentação das reflexões críticas literárias que reapareceriam nos seus estudos posteriores, O Ficcionista Xavier Marques e Romance e Regionalismo na Saga do Cacau.
Uma destas pistas é a observação do autor sobre o caráter  ambíguo do projeto ideológico regionalista encontrado nestes romances no que se refere à tensão entre a tradição da vida na sociedade “solidária” e a vida na sociedade de “serviço” onde está o progresso, tema que será retomado com maior fôlego no estudo desenvolvido em Romance e Regionalismo, de 1982; uma outra está relacionada à constatação da resistência da comunidade ou “nação” (como irá nomear a comunidade grapiúna), à penetração do domínio cultural, conservando sempre os seus valores grupais.
Entre outros temas tratados no estudo do autor está a condição de inferioridade da mulher neste sistema de vida social, levando-a a aceitar, pelo total envolvimento cultural, os padrões masculinos, aos quais ela deveria se acomodar em favor de um “ajustamento conjugal” pleno à noção de fidelidade e permanência no mar. Neste sistema, restavam à mulher pouquíssimas alternativas de sobrevivência. Não tendo um homem (do mar) como seu, esta mulher dispunha de duas alternativas: prostituir-se ou enfrentar o trabalho duro de doméstica, lavadeira ou cozinheira de algum estabelecimento. (Salles, 1971)
Salles destaca, entretanto, no caso específico de Mar Morto, uma abertura da perspectiva de ascensão social da mulher no grupo, representada através da figura de Lívia, mulher de Guma. Tal representação, porém, se configura uma exceção, pois Lívia não pertencia, verdadeiramente àquele grupo social, não devendo seguir, portanto, os padrões comunitários prevalecentes. De todo modo, o autor constata, que a situação sexual da mulher, nestes romances é de total inferioridade e dependência em relação ao homem.
Conclui o autor que o “imobilismo social e profissional” destes grupos, cujos “heróis ficcionalmente recriados” (saveiristas, canoeiros e pescadores) são os principais representantes, leva a uma decadência lenta e irreversível. Daí a recriação dos personagens como heróis, que tentam até o fim a sobrevivência do grupo e de todos os valores culturais a ele inerentes.
Na segunda e última parte da dissertação, após a exposição do sistema de vida dos “homens do mar” do Recôncavo, são lançadas questões acerca das estruturas socioculturais apontando atitudes semelhantes em romances “díspares” como Mar Morto (século XX) e Jana e Joel (século XIX), com autores igualmente “dispares” em estilo, época e cosmovisão.
Nos dois romances, apesar de tais disparidades, tem-se a mesma temática; a mesma defesa ou aprovação ao sistema de vida dos homens do mar; a não valorização às mudanças culturais, sociais, econômicas que levariam a um melhor padrão de vida; a ascensão na escala social não é almejada pelos heróis de ambos, que são igualmente incorruptíveis, conservadores e primitivos, não tendo, portanto, a intenção de mudar o mundo conforme o “modelo de herói” que se conhece.


O Ficcionista Xavier Marques: um estudo
da ‘transição’ ornamental (1977)

O estudo intitulado “A Ficção Romântica na Bahia”, desenvolvido por David Salles e apresentado ao Instituto de Letras da Universidade da Federal Bahia para o concurso de professor titular de Literatura Brasileira em 1985, representa um período de doze anos de pesquisa sobre o tema da ficção na Bahia no século XIX.
O autor chama atenção para o caráter de descoberta do estudo o que justifica a imprecisão nos bastidores da investigação e a possível existência de lacunas.
Os anos desta exaustiva pesquisa iniciada em 1969 não foram contínuos. Foram divididos em dois blocos: o primeiro que durou de 1969 a 1975 e o segundo que foi de 1981 a 1985 (período que coincide com a sua ida aos Estados Unidos para desenvolver atividades acadêmicas), o que revela que durante praticamente toda a sua vida intelectual David Salles esteve dedicado à pesquisa literária.
O interesse primordial desta pesquisa, segundo o autor, seria o de fazer um relato histórico para tornar conhecidos os ficcionistas baianos do século XIX considerados narradores pertencentes ao estilo romântico, que tenham produzido até o ano de 1880, recorte temporal da sua pesquisa.
Um outro propósito seria a definição deste perfil historiográfico de forma interpretativa com vistas a favorecer às análises da trajetória estética e cultural da narrativa de ficção na Bahia.
A tese é composta por uma advertência crítica, que corresponde a um prólogo, uma introdução e mais três capítulos: “Questões de Existência e Exercício”; “Os Primórdios Desajeitados” e “O Romantismo Pleno ou a Ficção dos Sentimentos Malfadados”. O capítulo conclusivo é assinalado com o título de “O Risco dos Descompassos”.
Dois livros de David Salles comportam os resultados parciais desta pesquisa que são Primeiras Manifestações da Ficção na Bahia (1973) e O Ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição ornamental (1977). Além de livros, também outras publicações de caráter universitário como o artigo publicado na Revista Universitas (Separata maio/dezembro de 1969) que traz como título Xavier Marques: fatos pessoais (para uma biografia literária), onde registra fatos biográficos de Xavier Marques, diversos deles, até aquele época, desconhecidos ou divulgados de forma equivocada. Muitos dos dados apresentados por Salles são escritos pelo próprio punho do escritor baiano, outros, coletados em noticiários de jornais da época, além dos depoimentos concedidos pela filha de Xavier Marques, Rute Xavier Marques, que concedeu o material redigido pelo pai para que Salles complementasse a sua pesquisa. Alguns destes escritos estavam registrados, segundo o autor, em pedaços de papéis avulsos em uma agenda médica de 1904 “em letra miúda e um pouco tremida”.
A alusão a tais pesquisas, contudo, serve aqui, apenas para uma apresentação do livro O Ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição ornamental (1977), que é o segundo alvo para a análise da pesquisa acadêmica de Salles.
Este livro é o texto revisto e corrigido publicado originalmente em 1974, como tese de concurso para Professor Assistente de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia.
Este estudo de Salles sintetiza a natureza do projeto estético e ideológico de Xavier Marques no período de “transição” do final do século XIX para o modernismo. Iniciado em 1968, por sugestão do crítico Eugênio Gomes, mostra o romancista Xavier Marques em sua própria época, inclusive no que se refere à sua visão de mundo e seu enfoque estético, visando buscar o ficcionista em si mesmo, assim como a obra em si, sinalizando a sua preferência pelo método imanente para análise dos textos.
Desejando realizar um já iniciado estudo geral da trajetória literária da ficção na Bahia, David Salles informa que Xavier Marques foi o primeiro escritor a integrar à cena ficcional a paisagem e os personagens da Bahia em romances e contos, sendo, portanto, fundador desta temática. Traz à cena a cidade do Salvador e o Recôncavo, a vida praieira e o ciclo da cana-de-açúcar, marcando o primeiro momento significativo da narrativa na literatura baiana.
O livro está dividido em duas partes principais. A primeira realiza um estudo da estilística exclusivamente formal, observando o vocabulário ornamental, castiço e erudito do autor; a técnica de composição frasal de matriz clássica; as inversões retóricas na sintaxe e a incidência reiterada e “saturante” das figuras de estilo. A segunda, uma abordagem crítica do objeto em análise. Como lastro teórico para tais análises apresenta as teorias de Georg Lukács e Lucien Goldmann. David Salles chama a atenção para o cuidado que teve durante o estudo para que não fosse contaminado pela vontade de analisar o texto segundo a sua visão de mundo e o seu gosto literário que estavam situados num outro período, fazendo valer apenas o que se revelava na historicidade dos textos do ficcionista. Não usou assim, nenhum aparato crítico em vigor na sua época, tomando o texto literário como realidade autônoma.
O estudo aborda todos os livros de ficção de Xavier Marques, à exceção de Pindorama, O Sargento Pedro e Terras Mortas. Nas palavras de Salles, este é “um texto crítico que busca primeiro explicar e teorizar sobre o ficcionista, entendendo-o como expressão literária brasileira, para depois então relacioná-lo com os seus arquétipos”. Entretanto, nos adverte David Salles, que neste estudo esta última parte não foi contemplada.
Em suma, tem-se que, no montante de textos em que David Salles apresenta as suas teorias, nos é revelada a ambição do autor em conhecer a realidade literária brasileira em seus aspectos regionais, ideológicos e sociais em diversos momentos da nossa história. Nestes textos, a aparição reiterada de algumas opiniões críticas, mostra, de certo modo, uma consolidação evolutiva de seus argumentos que se formaram ao longo das exaustivas pesquisas realizadas no seu percurso crítico.

Romance e Regionalismo
na Saga do Cacau (1982)

Romance e Regionalismo na Saga do Cacau representa a fase de maior amadurecimento de ideias da crítica Sallesiana.
Ao lermos a tese de doutoramento em Literatura Brasileira apresentada à Universidade de São Paulo em 1982, encontramos logo no início como esclarecimento sobre os dois principais modelos teóricos que inspiraram tal trabalho, uma alusão aos escritores José de Alencar e Mário de Andrade, leituras que certamente aguçaram a natureza eminentemente crítica de David Salles, contribuindo na fertilização de ideias e norteando os caminhos a serem percorridos nos estudos sobre o regionalismo literário. Na nota que antecede o texto da tese informa que:

“O autor reconhece a presença nesta indagação crítica daqueles que o precederam com o mesmo propósito permanente. Em especial José de Alencar e Mário de Andrade. Pelas fontes, agradece a Jorge Amado e Adonias Filho, grapiúnas brasileiros.” (Salles, 1982, p. 5)

Neste texto o autor retoma a saga da literatura grapiúna em seus conceitos e articulações, tendo como fontes literárias para a sua discussão os romances Cacau (1933), Terras do Sem Fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944) e Gabriela Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, e mais, Corpo Vivo (1962), a novela Léguas da Promissão (1968) e As Velhas (1975) de Adonias Filho.
Considerando o regionalismo grapiúna como um modelo plenamente satisfatório para o estudo da manifestação do regionalismo literário nacional, Salles discute neste texto o alcance deste fenômeno que, desde o Romantismo, se instalou no texto literário de forma mais acentuada, não somente na nossa como também em outras literaturas no Brasil.
Numa perspectiva histórica o mais remota possível, Salles toma como momento da primeira aparição do fenômeno regionalista na nossa literatura a própria Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500. Naquele instante instaurava-se o regionalismo captado através da representação literária das nossas belezas e estranhezas, que já continha desde as suas primeiras palavras um dos componentes básicos do regionalismo: a paisagem traduzida de forma afetiva.
Entretanto, adverte Salles, em termos concretos, o marco inicial do regionalismo brasileiro está situado na segunda metade do século XX, com o surgimento de O Gaúcho (1870), de José de Alencar. A partir daí, tomando como base o texto ficcional, tornou-se possível uma identificação das intenções desta manifestação cultural e ideológica na nossa literatura.
Este estudo sobre o Regionalismo é apresentado em três partes, subdivididas em capítulos. A primeira parte, referindo-se ao regionalismo nacional, toma como ponto inicial os relatos da Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, pioneiros na descrição da nossa paisagem e da nossa gente, mapeando em seguida os diversos projetos identitários desenvolvidos no Brasil. Sinaliza também os problemas sócio-culturais que geraram o fenômeno regionalista.
A segunda parte discute, particularmente, o regionalismo pertencente à literatura grapiúna, nos seus conceitos, articulações, peculiaridades.
A terceira e última, apresentando um estudo mais específico da articulação romanesca dentro desta vertente regionalista, analisa a trama e o tempo, como recuperadores da “promessa edênica do cacau” existente na literatura regionalista grapiúna.
Confrontando o imenso volume de manifestações regionalistas na literatura brasileira com a parca produção crítica sobre o tema existente no Brasil, Salles destaca a necessidade de se decifrar este fenômeno nas suas mais diversas formas de aparição. Utilizando este argumento, o crítico desenvolve um estudo amplo onde discute de forma bastante fundamentada (social, histórica e culturalmente falando), questões relativas ao conceito, à evolução e às formas de aparição do regionalismo nas obras de Jorge Amado e Adonias Filho, mais especificamente aquelas sobre o ciclo do cacau.
Duas outras importantes bases teóricas utilizadas por Salles para o exame desta manifestação literária foram Theodor Adorno e Lucien Goldmann, ambos como referenciais para a discussão dos aspectos sociológicos da literatura regionalista.
As formulações são apresentadas ao longo do estudo de forma sistemática. Parte das causas que impulsionaram a manifestação regionalista nos textos literários, buscando mostrar que a essência deste fenômeno dentro da própria literatura é de natureza cultural e ideológica, visando assim, a caracterização brasileira da imagem do outro enquanto ser cultural, ocupante de um determinado espaço geográfico.
O regionalismo é concebido por Salles como algo que nasce da diferenciação cultural entre os povos, da expressão do seu projeto ideológico através da literatura para afirmar os seus valores, as suas particularidades, e, principalmente, o reconhecimento de uma identidade cultural que se quer engajada num contexto mais amplo.
Um outro objetivo de Salles ao desenvolver esta análise foi a interpretação da intersecção do “literário” como categoria e do “regionalista” como projeto, nas citadas obras de Jorge Amado e Adonias Filho.
Os capítulos do seu estudo são intitulados como: 1) Proposição Crítica; 2) O Regionalismo como Problema da Literatura Brasileira; 3) O Regionalismo do Cacau: a representação diferenciada do espaço grapiúna e 4) A Articulação Romanesca do Regionalismo Grapiúna. Todos os títulos, portanto, tencionam traduzir quase plenamente os temas que aborda, justificando com eles a utilização das obras de referência da saga do cacau para a sua análise.
A partir do modelo de regionalismo encenado pela literatura do cacau, David Salles apresenta a prosa ficcional como a principal forma de expressão de um povo, tendo em vista ser a forma romanesca reconhecidamente mais apropriada para retratar a interrelação existente entre a mímesis e a História. No caso específico da historicidade grapiúna é esta última quem confere o estatuto de regionalista aos textos de Jorge Amado e Adonias Filho.
Entretanto para o crítico, o discurso grapiúna não se subjulga à História factual enquanto modelo, pois trata de projetar à História “um sentido novo, uma mímese não fotográfica, que adquire caráter mítico sob a ótica oracular da narrativa”. (Salles, 1982, p. 267)
Mesmo assim, afirma, os dois autores (Jorge Amado e Adonias Filho) nestas narrativas de ficção utilizadas para explicar o fenômeno regionalista não exprimem nenhum tipo de radicalismo ou tentativa de reconstrução de mitos do paraíso. Mantêm a tensão entre dependência e hegemonia, sem saudosismo, mas tentando sempre redescobrir a autonomia do seu pensamento, apesar de se saber nascido, entretanto, colonizado. (Salles, 1982)
Salles observa ainda, na representação ficcional dos textos analisados, uma consciência crítica da voz narrativa regionalista, que parece jamais ter desconhecido as implicações contidas nos elementos civilizatórios do modelo ocidental e moderno de sociedade que reage contra a absorção destas formas de dominação. Assim, se por um lado o regionalismo parece aceitar o progresso, por outro se defende das mudanças ideológicas através do seu próprio discurso. A “nação” (região), como chamam Amado e Adonias, resiste à penetração do domínio cultural. Quer aproximar-se dos centros de produção e reconhecimento cultural, mas ao mesmo tempo rejeita-os, reafirmando os seus valores, a sua caracterização diferenciada. Nas palavras do próprio Salles:

“O regionalismo literário – e é bem o caso do regionalismo do cacau – não visa a ser um procedimento literário de inflexão revolucionária, de ruptura. (...) Entendemos que ele é uma expressão crítica de resistência, que procura avançar a partir dos processos de tradicionalização (ou aculturação) e de tensão insolvida. A isto não podem escapar, afinal, todas as realidades dependentes, subdesenvolvidas e até mesmo jovens.” (Salles, 1982, p. 268)

Com essa reflexão Salles além de mostrar o caráter essencialmente dialético do regionalismo, reafirma ser este fenômeno um processo de manifestação de “espaços” periféricos. Dialético, por manter uma tensão ambivalente, como afirma, entre a imitação e a originalidade, entre a dependência e a autogênese.
Para Salles, o caminho do projeto ideológico regionalista demonstra a sua complexidade em tal ambiguidade, ao negar a atração pelos centros hegemônicos que prenunciam o progresso (intenção sua também) e ao mesmo tempo reafirmar uma independência cultural, uma identidade própria.
Nesta pesquisa de Salles são retomadas as discussões sobre aspectos do Regionalismo apresentadas numa fase anterior em sua pesquisa de mestrado, o que indica uma linha mestra seguida dentro deste tema pelo autor. Tais estudos, se analisados hoje numa perspectiva global, representam uma tentativa de teorização sobre o regionalismo na literatura.
Lembremos, contudo, que o regionalismo literário se apresenta em várias literaturas, especialmente àquelas do chamado terceiro mundo. Esta informação adquire destaque nesta análise, por indicar a similaridade de causas que levaram a nossa cultura a instituir tal modelo de manifestação, ou seja, a acompanhar a trajetória de literaturas de outros países, mais destacadamente, os latino-americanos, de características histórico-culturais semelhantes às nossas.
É preciso explicitar também, que ao tomar como ponto central para o estudo o regionalismo grapiúna, ou seja, ao propor o que podemos chamar de um “estudo de caso”, o autor tinha como pretensão produzir algumas conclusões que viessem servir como argumentações compreensivas sobre o fenômeno regionalista num sentido mais amplo. Para tanto, parte de reflexões sobre o conceito de regionalismo e das causas que levaram à sua manifestação no texto de criação literária, para depois chegar aos aclaramentos necessários ao fenômeno particular observado na literatura grapiúna.
O autor deixa claro no seu discurso não ter intenção de realizar apenas um paralelo que descreva um confronto entre a “realidade representada” na trama ficcional e a própria história ou o seu caráter sociológico. Para Salles, a “realidade representada”, ou seja, o texto literário, vale por si só. Ademais, mostra conhecer e bem os ensinamentos de teóricos como Lucien Goldmann e Theodor Adorno, onde ambos apontam para a impossibilidade de ser a literatura usada abusivamente como objeto de demonstração da história. Da mesma forma, para estes teóricos, os conceitos formulados sobre os temas não devem ser trazidos de fora para dentro da literatura, mas sim serem imanentes, fluírem dela.
Confirma-se assim, a necessidade de compreendermos a obra literária na sua significação própria, sem submissões à história factual.
As pretensões de Salles neste seu estudo, não visam uma compreensão completa do fenômeno em questão. Por isso mesmo o autor adverte o leitor sobre as limitações normais a qualquer estudo pioneiro e ainda também à complexidade do objeto sob análise, esclarecendo a intenção de apenas auxiliar na iluminação do tema, a despeito de faltar estudos especificamente regionalistas em língua portuguesa. Acrescenta que pelo caráter flutuante do tema regionalista, será ele, ainda por muito tempo, palco para infinitas controvérsias ou mesmo divergências de interpretações.
Ao final o autor concebe a existência da manifestação regionalista como “o retrato honesto de uma cultura periférica e pouco profunda”, entretanto, alerta:

“É pela manifestação regionalista que essa cultura busca assimilar a cultura predominante e transpor a sua condição periférica a um passo cultural mais avançado – onde ela própria atingirá, e melhor, um nível de conhecimento com mais poder de abstração e auto-reconhecimento.” (Salles, 1982, p. 15)

Salles, enfim, parecia vislumbrar os rumos de uma literatura nacional que, por se encontrar em estado de total carência reflexiva sobre as suas próprias manifestações, não tivesse outro caminho a seguir senão, como vemos nos atuais estudos culturais, olhar para a sua própria imagem, com o intuito de compreender as suas diferenças culturais e aceitar a si mesma como diversa. Enfim, realizar um trabalho de auto- reconhecimento da sua singularidade.
Para Salles, a via literária é certamente uma das melhores vias de compreensão do regionalismo como sendo um problema comum aos povos colonizados. E, através deste regionalismo e da visada com que Jorge amado e Adonias Filho acercaram-se dessa realidade cultural periférica, é que o autor tece a sua reflexão sobre a condição da cultura grapiúna, como também de outras culturas de povos submissos.
Jorge Amado, que ao seu modo e em seu tempo definiu tão perfeitamente o povo brasileiro, diz à respeito da literatura “grapiúna”,

“Foi violenta e bela essa saga de machos, essa conquista da terra [...] Da epopeia da conquista da terra surgiu a civilização do cacau e surgiu uma literatura de cacau, com suas características próprias, com sua marca inconfundível, sua própria verdade.” (Discurso de Jorge Amado na Academia de Letras da Bahia, 1965)

UMA TEORIA REGIONALISTA

Há que se observar, antes de qualquer tentativa de esclarecimento sobre o regionalismo brasileiro, a diferença maior que se pode apontar, em sentido macro, entre o regionalismo de fundação, ou seja, aquele primeiro regionalismo contingencial, criado mais pela necessidade de formação de uma cultura nacional e de libertação, em que a carência de uma literatura independente era algo premente (o “ter que ser”) e aquele regionalismo surgido da vontade de expressão do sentimento que habitava o íntimo do escritor brasileiro que tinha ao seu alcance uma infinidade de temas, tipos e costumes diferenciados para transformar em matéria literária (o “querer ser”). Entretanto, sabemos não ser esta dubiedade de intenções um mérito exclusivo do regionalismo brasileiro, mas algo perfeitamente comum a todas as manifestações regionalistas de outras culturas também colonizadas.
Um segundo aspecto é a diferenciação existente entre o regionalismo brasileiro de total alcance territorial e os diversos regionalismos demarcados geograficamente, que surgiram na sequência evolutiva literária regionalista.
Lúcia Miguel-Pereira, em Prosa de Ficção: de 1870 a 1920, define como regionalista aquela literatura

“cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprimem a civilização niveladora”. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179)

Tomando esse conceito como parcialmente satisfatório para definir esta manifestação que surgiu, num primeiro momento, pela necessidade e, num outro seguinte, pela vontade de “ser” do homem brasileiro, tentaremos mapear algumas teorias que se fizeram reconhecer pelo valor impresso nos seus programas e que, atravessando as barreiras do tempo, chegam aos dias de hoje como pontos cruciais para as discussões sobre este tema tão amplo e problemático da nossa cultura.
Sabe-se que a compreensão do regionalismo brasileiro e da sua evolução nas suas diversas formas de aparição em nossa literatura é, se não mais, tão importante quanto a compreensão do fenômeno literário.  E, apesar das diversas tentativas de entendimento encontradas nas obras de natureza exploratória nestes últimos anos, ainda há, neste terreno, muito a ser discutido.
Uma noção do problema pode ser dada, em primeiro plano, pela grande dificuldade enfrentada em se encontrar histórias dos regionalismos espacialmente delimitados que apresentem um panorama completo e sistemático dos autores e das obras pertencentes àqueles espaços, isto sem falarmos na igual escassez de interpretações destes textos.
José de Alencar, criador do primeiro projeto de construção da nacionalidade brasileira, é responsável, como vimos, pelo que se pode chamar de “matriz do regionalismo brasileiro”.
O autor de O Guarani, transpondo a variedade regional brasileira para a literatura, não funda um regionalismo geograficamente determinado. Alencar não empreendeu nenhuma forma de restrição territorial. Tencionou, portanto, uma abrangência total dos diversos aspectos das regiões do País, de norte a sul, fossem estas urbanas ou rurais.
Entretanto, com este mapeamento das diversas regiões e tipos brasileiros, o escritor cearense conseguiu delinear um corpo literário regional que abriu caminho para o reconhecimento de uma diversidade cultural, apontada mais tarde no Modernismo, principalmente por Mário de Andrade.
Com o surgimento do projeto marioandradeano, percebemos uma outra forma de se conceber o regionalismo enquanto meio de identificação da nacionalidade brasileira. Mário, nesta outra etapa da investigação identitária, vai retematizar tais ideias distinguindo-as daquelas formuladas a partir das narrativas alencarianas de fundação surgidas no século XIX. Ao escrever num tempo diverso daquele em que foi escrito Iracema, Mário de Andrade vai trabalhar com outras interpretações. E, considerando que o projeto identitário de Alencar cumpriu seu papel em outra época, o autor de Macunaíma vai afastar de vez a ideologia conciliatória das narrativas de fundação do século XIX.
Na década de 40 do último século, na conferência “O Movimento Modernista”, Mário de Andrade faz um balanço crítico do movimento vanguardista da década de 20, onde vai reafirmar a diversidade linguística do Brasil, demonstrando a sua grande preocupação com a importância da língua como elemento principal para se pensar e se fazer literatura.
Pouco mais de uma década depois, o antropólogo pernambucano Gilberto Freyre irá questionar o alcance da proposta marioandradeana e as formulações modernistas para uma língua nacional, reivindicando para a literatura uma “linguagem popular nordestina” na sua militância regionalista.
O empenho de Freyre em “descobrir o Brasil”, apreendê-lo em sua essência, foi, como para José de Alencar, uma tarefa com ares de início, de novidade. E, apesar de ter como fonte de inspiração para a criação do seu programa identitário os textos do próprio Alencar, vai reclamar para si a responsabilidade pelo início do processo de reconhecimento da nacionalidade brasileira, que segundo ele, até a metade do século XX não havia acontecido.
Como estes, diversos outros escritores e estudiosos da cultura brasileira se empenharam em definir este caráter identitário do povo brasileiro, ao qual estão relacionadas questões de língua, de linguagem, de ideologia e de estilos desta literatura. Apesar disso, temos ainda nítida a necessidade de novas reflexões sobre as definições e os conceitos de regionalismo, por ser questão das mais importantes e ainda hoje em aberto.
A busca de algo subjacente a isso, a que se pode chamar de “intenção regionalista”, é uma das discussões do crítico baiano David Salles pouco ou nada revelada no âmbito da pesquisa das letras nacionais.
Entretanto, há inegavelmente uma “teoria regionalista” defendida por David Salles na sua tese Romance e Regionalismo na saga do Cacau. Por isso, baseados na compreensão do escritor baiano deste “fenômeno cultural e ideológico” que afirma ser o regionalismo, podemos sinalizar mais este olhar sobre a trajetória imanente do regionalismo na literatura brasileira.

“Estava José de Alencar, de fato, detectando a matéria cultural exclusivamente brasileira que emplastaria o projeto regionalista. Antes, romântico; depois naturalista, “verista”, modernista... A evolução das formas literárias não modificaria, mas ampliaria o projeto, na essência da intencionalidade. Ou faria a correção do ângulo da trajetória ideológica. Ratifica-se, assim, como o fazemos, possuir o regionalismo um lastro comum. Que se modificou, é verdade, conforme sua específica trajetória como visada sobre, e dos espaços periféricos; e não como evolução das formas literárias. Alencar não se equivocara quanto à gênese do regionalismo literário, ao menos. E pode-se dizer, sob enfoque duma ótica crítica atual, que ele teve intuição de qual fosse a matriz do regionalismo como manifestação de espaços dessincrônicos. Por extensão: intuição dos modos verbalizadores da afirmação nacionalista.” (Salles, 1982, p. 82)

Interessante destacar que temos aí a coincidência dos projetos de conceituação do regionalismo brasileiro em Salles e Alencar. Os dois autores, apesar de atuarem em espaços temporais distintos, vislumbraram como geradoras deste fenômeno, razões culturais e ideológicas situadas nos “espaços dessincrônicos”. Afastam ambos, portanto, qualquer tentativa de explicação do fenômeno regionalista como sendo uma evolução da “forma literária”, estando este exclusivamente em nível de conteúdo a sua expressão na literatura.
Atente-se para o fato de que essas observações acerca da origem da matriz regionalista e da sua transformação, tecidas por José de Alencar (século XIX) e David Salles (século XX), respondem ainda de modo satisfatório às questões suscitadas no âmbito dos estudos culturais de hoje. Tais observações, entendemos, abrem o caminho para uma maior compreensão deste fenômeno próprio das culturas periféricas, que é o regionalismo.
Assim, a fundamentação de David Salles para as discussões sobre o tema do regionalismo está voltada em suas bases para as formulações teóricas de José de Alencar, tendo desenvolvido largo estudo sobre o projeto de fundação nacional deste autor.
A noção de progresso, que é inerente aos textos regionalistas grapiúnas tomados para o estudo, marca um paradoxo discutido por Salles: a ideia do avanço, do desenvolvimento sócio-cultural poderia levar a um predomínio dos padrões culturais dos centros hegemônicos e o projeto ideológico regionalista perderia de vista muitas das causas geradoras de suas formulações, ou seja, os substratos que não tivessem sido socialmente atingidos pelo poder da homogeneização cultural.
Por outro lado, Salles ressalta o caráter “contrapostamente” nacionalista do regionalismo, para usar os termos do próprio crítico: a capacidade de criação de uma história diferente da história social concretamente produzida. O que chamou de “historicidade pelo avesso”. Uma história virtualizada pelo discurso narrativo, ainda que com a clara consciência de todos os perigos inerentes aos discursos regionalistas ou de quaisquer outras comunidades periféricas.
Neste ponto, apesar das reflexões de Salles sobre o tema do “nacionalismo” serem de época anterior à ênfase maior que têm alcançado os estudos culturais nos últimos anos, encontramos no seu texto algumas posições muitos próximas ao entendimento mais atual que se tem do discurso nacionalista, do conceito de nação nas narrativas ficcionais e da ideia de progresso para os povos pós-colonialistas.
Salles vê, entretanto, a construção cultural da nacionalidade como uma forma social e textual que não apaga as histórias específicas e significados particulares desses povos.
Na intenção de David Salles em consolidar algo próximo à uma teoria regionalista, além deste grande ensaio sobre o tema, o crítico baiano publicou outros textos na sua coluna do jornal A Tarde que corroboram tal interesse: “Romance Ultra- histórico” (12. maio 1979), “A Theobroma Periférica” (24. fev. 1980) e “Luares do Sertão” (31. ago. 1980). Além destes, também os textos “Para Ler Alencar” (15. jul.1979), “Alencar Relido Hoje” (05. maio. 1979) e “O Homem detrás da Obra” (23. jun. 1979), publicados no jornal O Estado de São Paulo complementam as informações sobre o projeto regionalista de Alencar e as suas próprias articulações teóricas sobre o tema. Ao final da sua tese de doutoramento se pode ler o “Manifesto do Novo Regionalismo” de 25 de maio de 1978, seguido dos nomes dos 51 autores que representavam o movimento.
Assim, através do estudo interpretativo visto na sua tese depreende-se que, para Salles, a origem do regionalismo, de um modo geral, está na diferenciação cultural, potencializando-se a seguir em sua verbalização literária, em especial a romanesca, para afirmar “os valores, a maneira de ser e a prospecção do futuro de uma auto-reconhecida cultura periférica”. (Salles, 1982, p.83)
Julgando ser o modelo do regionalismo do cacau satisfatório para os demais pontos da análise, Davis Salles junta a esta definição algumas conclusões a respeito deste fenômeno na literatura. Sendo assim, o crítico aponta o paradoxo principal encontrado: já que a noção de progresso é aqui entendida como algo inerente a todos os exemplos de regionalismos grapiúnas apresentados, a homogeneização cultural traria a morte do projeto ideológico regionalista, eliminando assim o que detectou como “as causas geradoras da inflexão regionalista”. (Salles, 1982, p. 84)
Sendo a formulação regionalista, como quis Salles, contrapostamente nacionalista em relação aos padrões sociais dos centros hegemônicos, como solução, ela vai tentar exercer um jogo combinatório pretendendo aproximar-se dos centros de produção e reconhecimento cultural, mas igualmente rejeitando-os em virtude da afirmação dos seus valores, como vimos nos estudos dos romances Mar Morto e Jana e Joel.
Este jogo combinatório ou conciliatório, ainda que não tenha sido verbalizado, pode ser apontado como a mesma proposta do projeto de Alencar para a crise de identidade que acometia (persistindo até os dias atuais), o povo brasileiro.
Assim, a partir do que se chamou de “literatura do cacau”, David Salles também demonstra o seu projeto regionalista, admitindo esta ambiguidade entrevista nos discursos dos ficcionistas Adonias Filho e Jorge Amado, percebendo nestes autores, o mesmo conflito visto na ficção regionalista romântica de José de Alencar, no século XIX. Retomando a relação dialética entre o colonizador, ou seja, a civilização, e o colonizado, o atraso cultural.
Para o estudioso baiano, o regionalismo literário, não tem como intenção ser um procedimento literário de tendência revolucionária, de ruptura, mas sim uma expressão crítica de resistência, que procura avançar através de uma dialética da tradicionalização e da tensão insolvida, fato que se percebe comum às realidades pós-colonialistas.


REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Mar Morto. 19 ed. São Paulo: Martins Editora, 1965. 261 p.
MARQUES, Xavier. Jana e Joel. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1899. 100 p.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa de ficção de 1870 a 1920. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
SALLES, David. O Ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição ornamental. Rio de janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1977. 223 p.
SALLES, David. Primeiras manifestações da ficção na Bahia. 2. ed. rev. e aum. São Paulo/ Brasília: Cultrix/INL, 1979.
SALLES, David. Romance e regionalismo na saga do cacau. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1982. 414 p. Volume 2. (datiloscrito)
SALLES, David. Saveiros no mar grande. Dissertação de mestrado apresentada à Coordenação de Pós graduação em Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1971. 77 p. (datiloscrito)


Nenhum comentário:

Postar um comentário