Euclides Neto | Os Magros


VOZES SUFOCADAS

por Cid Seixas

Quando o menino Euclides Neto começou a ler os primeiros livros, o realismo social dos regionalistas de 1930 dava as contribuições mais frutíferas à literatura brasileira, levando suas consequências até Portugal, com o Neo-Realismo.

De um lado, a densidade de alguns escritores, do outro, o honesto engajamento com o homem e sua realidade abriram novos caminhos para a criação literária, onde a solidariedade e o humanismo se confundiam com os projetos estéticos.

É dentro desse quadro que o cronista e ficcionista Euclides Neto continua pintando suas paisagens e retratando o que viu e viveu. É essa mesma solidariedade, com implicações políticas ou religiosas, que marca de modo indelével, aqui com implicações de uma ideologia humanista, a escrita desse homem da terra.

Os Magros é um romance da juventude do autor, agora reeditado como forma de reafirmar a sua perfeita sintonia com a obra da maturidade. O velho Euclides Neto, ex-prefeito de Ipiaú, onde desenvolveu um modelo planejado de reforma agrária, ex-secretário de Estado, onde queria fazer bem mais, continua sendo o mesmo escritor solidário ao homem, como nos tempos das auroras puras. Seu texto tem um objetivo maior: dar voz a todos aqueles que foram sufocados pelas injustiças sociais.

Mas não se trata apenas de um discurso bem intencionado. Muitos existem. Trata-se de um discurso literário situado e datado. Situado na zona cacaueira da Bahia. Datado da primeira metade do século, quando a cultura do cacau atingiu o seu esplendor.

Mas, desafiando o calendário, o discurso engajado de Euclides Neto continua abrindo espaço nestes anos de fim de século, quando o esplendor do ciclo do cacau foi inócuo para atenuar a pobreza e a miséria de muitos que, com suas mãos, construíram toda aquela riqueza.

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Contam que o poeta Manuel Bandeira perguntou a Adonias Filho:
– O que o sul da Bahia produz, além do cacau?
– Produz escritores, respondeu o grapiúna Adonias.

O cacau foi destruído pela praga e a riqueza pela falta de visão daqueles que pensavam que o ouro é um bem eterno. Mas os escritores, estes sim, ficaram e são hoje o patrimônio maior da nação grapiúna. Sosígenes Costa, Jorge Amado, Florisvaldo Matos, Ildásio Tavares, Adonias Filho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, Euclides Neto e tantos e tantos mais que convém não tentar citar a todos, porque muitos seriam esquecidos.

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É do fato de ser situado e datado que nascem as virtudes e os defeitos de Os Magros. As conquistas formais de Graciliano Ramos, o grande construtor e o surpreendente estilista de magreza dessa geração, deixaram, sem dúvidas, marcas na escrita de Euclides Neto. Algumas indesejáveis e desnecessárias, que ressoam como ecos inúteis. A cadela dessa família de vidas magras do romance euclidiano não tem nome de peixe, mas se chama Sereia. A proximidade eufônica e marinha com Baleia cria no leitor preconceituoso a expectativa de um pastiche.

Mas Os Magros não tem nada de pastiche ou imitação simplória. É obra autônoma que testemunha o engajamento da escrita de um homem comprometido com sua terra e, principalmente, com a gente que vive nela.

É verdade que Euclides Neto constrói seu romance observando alguns pontos de identidade com Vidas Secas. Dialogando com essa obra, ampliando suas conquistas. E isso confere atualidade e interesse ao romance agora reeditado. A viagem intertextual de Os Magros sugere inúmeras abordagens e reclama a atenção da crítica acadêmica, universitária, para o texto euclidiano.

Aliás, já é tempo das pesquisas de pós-graduação na Bahia, com suas dissertações e teses, se voltarem para a produção da comunidade na qual está inserida. Naturalmente, não se chega longe trabalhando os autores mais jovens, cujas obras ainda não percorreram a implacável circularidade imposta pelo tempo, mas é preciso estudar aqueles que se inscreveram num momento da história literária que já pode ser contemplado com o necessário distanciamento crítico e emotivo.

Ler este romance de Euclides Neto implica em reler e compreender a recepção do realismo social trazido pelo romance de 30. Já podemos observar quando a simples imitação se transforma em diálogo intertextual destinado a levar adiante uma conquista, a reforçar um projeto ideológico ou estético.

Duas narrativas paralelas constroem a textura romanesca de Os Magros. A primeira, erigida à condição de eixo da obra, é a dos magros trabalhadores de aluguel numa roça de cacau. A outra, a dos gordos proprietários, entra como contraponto, numa regularidade empobrecedora. Ao retomar o livro nesta nova edição o autor poderia ter revisto o caráter mecânico do contraponto. A narrativa, de um capítulo para outro, alterna o cenário da magreza rural com a entediante fartura urbana dos donos de terras e gentes. A previsibilidade é um elemento empobrecedor. Mesmo quando tem pouco a dizer, o autor impõe uma pequena narrativa contrapontística, criando uma monótona regularidade. Quebrar um pouco a mecânica regular desse contraponto daria mais ritmo ao livro.

É esse contraponto que – ao contrário do que acontece em Vidas secas, onde os contos em torno de uma mesma família se encadeiam formando uma novela – propõe a estrutura do romance. No livro de Euclides Neto as duas narrativas distintas se escrevem como linhas cruzadas, mas também, como na obra de Graciliano, alguns capítulos funcionam como contos autônomos. Alguns são verdadeiros momentos de elevada escrita, como o capítulo XIII, onde após a morte de um dos filhos de João, o gerente da fazenda persegue os meninos pelo mato. Página autônoma e antológica, um dos momentos altos do livro.

Voltando aos pontos críticos, a oposição entre a miséria dos magros protagonistas e a opulência dos senhores da terra parece demasiadamente esquemática, conservando aí uma ingenuidade analógica à das primeiras obras de um Jorge Amado, por exemplo, que nos romances da juventude via todos os pobres como bons e todos os ricos como maus. Tanto que Jorge revê essa forma de maniqueísmo nos romances da maturidade, por isso talvez chamados de romances burgueses pelos patrulheiros trogloditas, aos quais o velho Engels diria que falta dialética.

Quando Euclides Neto opõe a miséria do casebre em que vivem as nove pessoas da família de João à fartura do “palacete” em que a fazendeira mora praticamente sozinha, o impacto do contraste é quebrado pelo excesso de tintas que pintam a riqueza com um realismo ingênuo. Isso ocorre no segundo capítulo do livro, no qual a casa do Doutor Jorge é chamada de palacete e suas excelências são acintosamente decantadas. O efeito seria melhor, se o contraste fosse mais discretamente mostrado. Claro que isso agrada aos antigos comunistas de carteirinha, mas foi por isso mesmo que nos anos do patrulhamento stalinista o bom texto se afastou das arengas do Partido.

Essas marcas do realismo socialista tornam o livro demasiadamente datado, para alguns leitores, especialmente aqueles que apreciam a capacidade de um escritor de rever as suas obras ano após ano. É o que fazia, por exemplo, Miguel Torga, autor admirado por Euclides Neto. Poucos dias antes de morrer, Torga revia a vigésima edição de um dos seus livros de contos, apagando deles as marcas demasiadamente circunstanciais.

Tal desprendimento faria de Os Magros um livro bem mais vivo e permanente porque, não tenhamos dúvida, se trata de uma obra que deve ser lida e conhecida por milhares de leitores, permitindo o livre soar dessas vozes sufocadas que, ouvidas, ajudariam as pessoas a passar muitas coisas a limpo.

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SEIXAS, Cid. Vozes sufocadas. Salvador, A Tarde, 11 mar. 96, p. 7, Coluna “Leitura Crítica”. Republicado em Triste Bahia. Oh! Quão Dessemelhante. Salvador, Secretaria da Cultura, 1996, p. 142-146.