José Inácio Vieira de Melo


um hieróglifo que dá voz ao silêncio

 por Cid Seixas

De acordo com a programação deste evento, a minha intervenção foi prevista para secundar a exposição da professora Eliana Mara, que já escreveu, por mais de uma vez, e com fecunda propriedade, sobre a poesia de José Inácio Vieira de Melo. Diante da primazia da fala de Eliana, optei por ser bem mais breve do que na primeira intervenção que fiz há pouco neste encontro.

Quando fui convidado para participar desta mesa de poesia, na qual os centros constelares são o engenho de Florisvaldo Mattos e a arte de José Inácio Vieira de Melo, confesso que achei temerária e desproporcional a presença de uma nova voz, há pouco tempo ainda desconhecida, ao lado da figura respeitada de Florisvaldo Mattos.

Isso porque eu era um completo ignorante das artes e dos apartes de Inácio, vivente das Alagoas retirado cá pras bandas da Bahia. Temia que a poesia solar de Florisvaldo Mattos projetasse sombra sobre o outro lado. Mas depois de uma primeira leitura, ainda de forma ligeira e transversal, de alguns versos de Inácio Vieira de Melo, vi que não estava diante de um simples iniciante dos caminhos da escrita, mas de um poeta, com pleno direito de se fazer ouvir.

Justifica-se, portanto, a presença do alagoano ao lado do grapiúna. Na verdade, são dois sóis que brilham em pontos diversos e com intensidades singulares e múltiplas.

Curiosamente, os temas dos dois poetas se afastam e se achegam.

A Espanha, entremeada na poesia de Florisvaldo Mattos, aparece em forma de “Bodas de sangue” no verso de José Inácio.

Se, no “Soneto Rural” do livro Reverdor, Florisvaldo recolhe “pastoral envelhecida / ao som da flauta”, por sua vez, José Inácio, não mais em forma de soneto, mas através do poema livre nominado “Rural”, anuncia:

“Eu vou pra roça, ajudar o dia amanhecer (...)
e sentir a chuva de leite em meus olhos.”

“Eu vou pra roça, lá o documento é a palavra.”

Este verso que fecha a porteira do poema “Rural” abre para nós uma encruzilhada na qual escolho dois caminhos de significância. No primeiro, o poeta retoma o valor moral de um compromisso assumido nos tempos de antanho. Na roça, não é preciso firmar escritura para manter a palavra. O documento é o próprio sujeito. Ou: o homem é a palavra; e a palavra é o homem.

Observe-se que ao criar uma ambivalência para a expressão escritura, aqui tratada como documento, mas que remete também à arte da escrita, estamos tão somente explorando as possibilidades deste verso de José Inácio: “Eu vou pra roça, lá o documento é a palavra.”

Vejam a ressonância árcade do sentido. Lembre-se que os poetas do século XVIII, cansados da empolada erudição neoclássica dos séculos anteriores, especialmente no maneirismo, contraditoriamente, elegeram o campo como espaço das suas elucubrações poéticas. Se o ruído vulgar das cidades, apinhadas de gente confusa, não permitia o medrar da palavra, plena de som e de sentido, a figuração do campo assegura o fluir da poesia no sopro do vento, no canto das aves, na calma dos dias esquecidos do relógio e medidos somente pela chegada e pela partida do sol. E da lua.

Ora, o verso do catingueiro Zé Inácio insiste: “Eu vou pra roça, lá o documento é a palavra.” Se na cidade são os documentos que valem em lugar do homem, as debêntures, as letras de câmbio, os títulos legais; no campo, podemos viver esquecidos de toda essa parafernália infernal. Na roça o homem é a sua palavra.
E aqui estamos no campo da palavra poética, a linguagem como morada do ser, na concepção de Heidegger. Ou do versículo de João:

“No princípio era o verbo”.

A palavra mítica, divina, constrói o mundo, a partir do nada. A palavra poética, humana, constrói o homem, a partir do sentido. A frase “o documento é a palavra” significa também: o que importa é a palavra, seu som, seu ritmo, seu sentido, sua poesia.

Eis porque vale a pena aceitar o convite do catingueiro Inácio e ir para a roça montado na garupa do seu cavalo Centauro. No seu mundo rural, enquanto ele sente a chuva de leite nos olhos, nós podemos sentir os respingos da poesia das suas palavras.

E que não se pense que a ausência dos apetrechos que entopem, atulham as casas, as ruas, as lojas e as cidades torna o campo um lugar ermo onde se vive a esmo. Não. No seu “Registro da fala do silêncio” o poeta Vieira de Melo ensina que o silêncio “é um hieroglífico poema”. Ou, podemos dizer, para concluir, que o poema é um hieróglifo que dá voz ao silêncio.


BIBLIOGRAFIA

MELO, José Inácio Vieira de. A infância do centauro; poesia. Ilustrações de Juraci Dórea. São Paulo, Escrituras, 2007, 136 p.
MELO, José Inácio Vieira de. Roseiral; poesia. São Paulo, Escrituras, 2010, 108 p.
MELO, José Inácio Vieira de. Cavaleiro de fogo; blog.
http://jivmcavaleirodefogo.blogspot.com/

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José Inácio Vieira de Melo: um hieróglifo que dá voz ao silêncio. Texto apresentado ao evento da série “Encontros Literários”, realizado na Academia de Letras da Bahia, no dia 16 de maio de 2010.


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