Clóvis Sampaio: Reacender a luz do sol


Reacender a luz do sol

Cid Seixas

Diz-se que em algumas regiões do oriente, especialmente no Japão, todo homem escreve, pelo menos, um pequeno poema em sua vida. Esses versos velados encerram a visão de mundo do sujeito, são o seu segredo, a sua identificação. Por isso, não são revelados às pessoas estranhas. Numas poucas palavras está a essência do sujeito, as entranhas da sua alma, materializadas em palavra, no verbo. Aqui, inverte-se a verdade bíblica: a carne fez-se verbo e habitou o silêncio. É preciso que a palavra se materialize em lugar do sujeito.

        Recorro ao exemplo oriental porque os japoneses são mestres em concisão, em síntese, em tirar o muito do pouco. No pequeno está contido o grande; é o segredo secular. Esta também é a característica básica da poesia, comparada à prosa: ser uma escrita estrita, precisa, onde o menos diz o mais.

Difícil, no entanto, é isso se fazer entender por todos. O verso continua sendo usado por quem se quer poeta como uma prosa pequena, mais fácil e amena. O movimento romântico, que mudou o curso do pensar e do sentir no século passado, em meio às suas contribuições positivas, divulgou — e até impôs — a escrita amena de influentes emoções fluentes. A poesia passou a se identificar, ainda mais, com as manifestações do eu, suas queixas e deixas.

É por isso que algumas pessoas mais sensíveis, mais empenhadas em entender o mundo em volta de si, se valem do verso, mesmo sem dominá-lo, para repensar o cotidiano, falar a si mesmas e aos outros: àqueles que queiram ouvir o que Caetano chamou de outras palavras. É o caso de Clóvis Sampaio, um iniciante ainda sem os maturados recursos literários. Seu verso é seu jeito de corpo, de dizer o que precisa dizer, de pensar o que, de outro modo, ainda não pôde pensar. Por isso esse estreante, como todo estreante, merece incentivo, para que continue — e venha achar o caminho, que só se acha caminhando.

O verso é como uma vela de barco ao vento, abrindo caminho no mar sem caminhos. Onde tudo é imenso, infinito. E onde se passa sem deixar rastros. Sempre é preciso sulcar a superfície virgem outra vez.
       
"Minha certeza é fria como uma lâmina quente
e confunde muito mais que explica".

Esses versos de Clóvis Sampaio dizem mais o que eu queria dizer. Trata-se de um dos melhores momentos do seu livro de iniciação. Assim como este outro:

"Brincar de brincar com você
é apagar a luz do quarto
e acender a luz do sol".

É aí, talvez, que Clóvis encontra o rumo da poesia em meio ao verso vadio. Rumor que deve ser seguido, sempre.

O lançamento do primeiro livro de um autor está perto do primeiro apelo do recém-nascido: seu choro, sua fala. Um primeiro livro é como um primeiro filho. Isso é um lugar comum da linguagem. Mas quem experimenta essa sensação — a de ter um primeiro filho, ou de publicar um primeiro livro — sabe que um lugar comum da linguagem não é um lugar comum do sentir. É algo forte, pessoal e intransferível. Outro clichê que uso, para dizer que a poesia é o dito inesperado. Pelo contrário exemplifico o que quero. Dizer o indizível de forma não dita deve ser a ambição de todo aquele que se quer um escritor.

Espero que este seja o caminho de Clóvis, que agora se faz ao mar. Colombo foi o poeta da América. Que sonhou o impossível conquistado por outro que deu nome à sua descoberta. Que entre o reconhecimento de Américo Vespúcio e a morte inglória de Colombo, Clóvis Sampaio prefira a segunda. A aventura da descoberta, o trabalho. Navegar é preciso.

No mais, seus versos dizem:

"O amor tece a teia
que amortece a veia".

E mais não preciso dizer. Sem aspas, me aproprio do seu verso. Agora não é mais vosso, já é nosso, de todo leitor. Minha certeza é fria como uma lâmina quente. E confunde muito mais do que explica.

        Oh! quão desmelhante.

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Clóvis Sampaio.  Rudá; poemas. Salvador, S.O.S. / Movimento Editorial Alternativo, 1992, 68 p.

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