Uma poesia
do cotidiano
Cid Seixas
Desde
Cesário Verde, poeta preferido de Pessoa, a poesia do cotidiano ganhou novo
alento na língua de Camões, onde o cantor da raça mestiça roça rimas caetanas.
Mas
o que é afinal uma poesia do cotidiano? A desconcertante escrita de Cesário, a
livre canção do modernismo, a repousante prosa-poesia de Adélia?
Mais,
bem mais. O cotidiano, o agora, neste lugar, embora não se preste a presunçosos
discursos da literatura sentenciosa, sempre teceu o encanto da criação poética,
em prosa ou em verso.
Daniel
Cruz dá o de melhor de si quando o cotidiano é a sua matéria, as coisas simples
e fugazes, os momentos mais íntimos erigidos à condição de momentos constantes,
eternos mesmo, na lembrança do leitor.
É
isto que gosto na escrita deste poeta que principia a definição do seu caminho.
Ao
reunir poemas para o segundo livro, a forte presença do dia-a-noite indica as
sendas por onde seguir. E Daniel não briga com as palavras: ele as acolhe. Aí
seus momentos maiores, seu traço distintivo, sua identidade, distante dos
textos de tecido áspero onde as fibras de que se tece brigam entre si.
Há
sem dúvida dois troncos distintos de onde se esgalha a arte da escrita: em um,
a construção artesanal rigorosa conduz às descobertas, no outro, o trovador trouve, encontra o encanto à beira das
frases. É o caso do nosso autor. A elaboração é substituída pelo achado
simples, singular, por isto mesmo, plural; comum a todos nós, leitores.
O
texto de Daniel é harmonicamente tecido nas teias cotidianas, a partir do
embate das forças essenciais geradoras da vida e da morte, de Eros e de Thânatos.
De um lado, a perda do pai, padrão primeiro; do outro, a excitação dos
sentidos, como no poema "Pesca no metrô", mordazmente bem-humorado.
Veja-se o delicioso despudor do voyer,
pouco significativo como poema, mas revelador do clima referido:
adoro pescar
seios no metrô
sensuais peixes pululando
sob anônimos
decotes
sexys recortes
ah delícia
deliciosíssima
içar trêmulos
seios no metrô
com olhos de cinéfilo pornô
como roubar
manga rosa
nos quintais da
infância
Enfim,
uma poesia para ser lida com prazer. Vale a pena. A pena que a escreveu.
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Daniel
Cruz. Inventarium; poesia. Salvador, Edição do Autor, 1992,
96 p.
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