Jenner | A linguagem da pintura


JENNER E A LINGUAGEM
UNIVERSAL DA PINTURA

Cid Seixas

É muito comum se afirmar que a linguagem pictórica, ou a comunicação da mensagem através de elementos visuais ou plásticos, encerra em si mesma a universalidade do significante. Isso é parcialmente verdadeiro ¾ como, por exemplo, em relação à linguagem verbal, pois enquanto os que lavram a palavra podem levar as experiências dos sentidos e da razão apenas aos falantes da mesma língua, o pintor, ou o escultor, não está limitado por fronteiras linguísticas; o que, de certa maneira, é um privilégio.

Um quadro de um pintor japonês não nos será estranho na mesma intensidade que torna impossível a compreensão de um poema ou de um romance escritos nesse idioma por alguém que conheça apenas a língua portuguesa.

Mas o fenômeno não é absoluto: a linguagem pictórica possui seus símbolos e signos, alguns regionais, outros mais amplos, pois formados por elementos referenciais pertencentes a toda a Humanidade. Dessa maneira, a linguagem da pintura, em si mesma, não é completamente universal — ela se ramifica em dialetos pictóricos. Quando dizemos linguagem, estamos incorporando a existência de elementos convencionais, ou estabelecidos, ao longo dos tempos, pelo grupo social e pela inventividades dos artistas. Por isso mesmo, existe diferença entre um quadro oriental e outro ocidental, entre uma escultura de Miguel Ângelo e outra de Victor Brecheret. Cada época, cada cultura, elege um inventário simbólico próprio e, digamos, idiossincrásico. Na Rússia, onde os estudos semióticos eram vistos com rigor desde o início do século, o linguista Roman Jakobson, da Escola Poética Formalista, afirmou ser "preciso aprendermos a linguagem pictórica convencional para vermos o quadro, assim como não podemos compreender as palavras sem conhecermos a língua".

Os artistas modernos têm cada vez mais consciência da existência de símbolos e signos como instrumentos da comunicação. Alguns abusam desse inventário simbólico, sofisticando, de tal forma, o processo comunicativo que o público não consegue descodificar a mensagem. Daí o distanciamento entre o grande público e certos artistas, considerados herméticos. Algumas vezes esse distanciamento decorre da incapacidade do artista de transmitir sua mensagem; outras, da ignorância do código por parte do observador do quadro ou da escultura. Mas uma afirmação é indiscutível: a obra de arte possui uma linguagem que o fruidor não pode desconhecer.

Essas considerações permitem destacar um ponto de capital importância no trabalho do pintor Jenner Augusto: a relativa universidade da sua linguagem. Não se pode situar Jenner como um “pintor baiano de Alagados" ou, em contrapartida, como um retratador de temas burgueses para deleite dos abastados. Tanto na temática quanto na linguagem pictórica — ou, como preferem outros, na técnica — se verifica a procura de largueza de espaço e a abertura da obra no sentido tornado comum por Umberto Eco. Os signos pictóricos de cores e formas não pertencem apenas a uma determinada classe, faixa etária ou geo-social; eles são cuidadosamente recolhidos, aqui e ali, obedecendo a um primado estético de inegável importância: o bom-gosto.

É através desse primado que Jenner Augusto consegue reunir duas qualidades que em nossos dias tendem a se afastar gradativamente: a beleza e a verdade. A verdade, vista em toda a amplitude da expressão, incluindo as qualidades que distinguem o bom do mau artista, o criador inventivo do artesão medianamente hábil; ou dos repetidores de cânones. Os quadros de Jenner, além da beleza visual que assegura sua grande aceitação, encerram o traço inefável do oficial que dignifica o seu ofício. E, num tempo em que bem poucos conseguem a virtude de reunir esses dois elementos, não seria de estranhar a desconfiança com que alguns críticos preconceituosos vislumbram a facilidade com que Jenner Augusto fala através das cores, sem se descuidar da montagem desse paralelismo cromático, enquanto construtor de um encantamento visual que é a marca de qualidade inconfundível para a identificação do seu trabalho.

Num momento marcado pela ideologia do sofrimento, quando o artista sério, para muitos, está condenado a fazer uma arte desagradável, pesada e vincada pelo sufocamento da beleza, esquecemos que os grandes pintores e escultores do Renascimento faziam suas obras com intuito decorativo. Esquecemos que a pintura decorativa pode ser tão magistral quanto a das capelas e palácios da Itália, nascida sob este signo. Por que não proclamar esse pintor como alguém capaz de enfrentar o desafio de dar à sua linguagem o conteúdo de uma mensagem inquieta e sempre renovada, ao lado da expressão decorativa da beleza?

Sobre a amplitude da linguagem desse artista, Jorge Amado, com a intuição aguda do inventor, já havia observado: "tanta consciência soma-se a uma sensibilidade, a um bom-gosto de tal apuro que o nordestino de Lagarto parece chegado da Renascença como se nascido fidalgo em Florença ou em Veneza — fidalgo sergipano".

Esse requinte não pode, jamais, ser tomado como um abandono das origens e raízes telúricas; é, antes, uma revisão formal do regionalismo tão gasto e de lamentável pobreza expressiva, ao qual a mediana maioria não consegue transcender.

Jenner reinventa essas paisagens, revigora a sua linguagem, tornando universais os problemas da nossa gente e abrindo livre passagem para as denúncias do menino pobre de Sergipe, que foi, e que ainda está vivo em algum lugar do ser, para falar por aqueles que continuam sendo, e não são ouvidos.

O resultado desse processo singular, desse procedimento estético, portanto, é a configuração de uma obra aberta às várias classes de observadores: a proposição, única e verdadeiramente possível, da linguagem universal da pintura.

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Jenner e a linguagem universal da pintura. A Tarde, 06 de jun. 74, p. 4

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