Gutembergue Cruz | Caricatura de baiano


CARICATURA DE BAIANO

Cid Seixas

A criatividade marota do baiano vem se revelando altamente frutífera na sátira e na crítica mordaz. Não é por acaso que a nossa música popular de consumo encontra sustentação no deboche e nas brincadeiras mais picantes, compensando a qualidade duvidosa com o humor deslavado.

Desde os tempos da colônia que somos moleques safados. O nosso primeiro grande poeta, o doutor Gregório de Matos, foi um satírico safado e engenhoso, pagando a pena da sua lira maldizente. Falar mal dos outros é uma diversão baiana prestes a ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico.

Antes da televisão transformar as pessoas em dóceis espectadores de novela, os ouvidos viviam atentos para os epigramas que corriam de boca em boca e os olhos viam no pensamento a imagem jocosa da “vítima”. Lulu Parola marcou presença pela verve desconcertante. Quase toda uma geração de intelectuais cultivou o verso satírico. Pelo menos, eventual e secretamente.

Todo desafeto ou candidato a possível desafeto se transformava num irresistível personagem epigramático. A vingança debochada sempre foi arma de baiano civilizado.

O escritor Wilson Lins, crítico perspicaz dos costumes, preparou um estudo chamado A musa vingadora, como resultado das suas investigações sobre epigramas e epigramistas de ontem e de hoje. Entre os novos, aparece o poeta Ildásio Tavares, que pode ser apontado como o caçula dos epigramistas da cidade. Um caçula cinquentão e de antiquíssima língua venenosa.

Mas não somente os artistas da palavra praticam a arte de bem falar mal dos outros. Os artistas plásticos, quer sejam pintores ou desenhistas, sempre foram atraídos pelo humor maldizente. Caricaturas, cartuns e quadrinhos encheram páginas e páginas de jornais com momentos de bom humor atrevido.

Trabalho análogo ao do mestre Wilson Lins foi o de Gutemberg Cruz na área do humor gráfico. O jornalista e estudioso de histórias em quadrinhos, charges e cartuns reconstituiu o percurso dos artistas do traço na Bahia, a partir da década de vinte. Vasculhou revistas, jornais e folhetos em busca dos trabalhos de seis artistas por ele considerados como mestres do humor gráfico na província: Manoel Paraguassu, K-Lunga, Nicolay Tishchenko, Sinésio Alves, Fernando Diniz e Gonzalo Cárcamo.

O resultado foi um livro que entremeia o estudo da vida e da obra de cada um dos artistas com a reprodução de alguns trabalhos. Não resta dúvida de que a tarefa da qual Gutemberg Cruz se incumbiu é da maior importância, como inclusive atesta o fato dele ter recebido, em São Paulo, o Troféu HQ Mix para os melhores de 1995.

Seu livro, embora publicado de forma precária, numa edição independente — porque Salvador não tem uma só editora com comercialização nacional — despertou a atenção dos estudiosos de grafismo e histórias em quadrinhos. Mas, como todo trabalho em processo, comporta reparos decorrentes de diferença de perspectiva.

Os textos sobre os artistas seriam mais úteis aos estudiosos se Gutemberg tivesse maior rigor ao trabalhar com as fontes localizadas nas suas exaustivas pesquisas. Conviria observar adequadamente as referências bibliográficas, de forma a facilitar aos leitores de O traço dos mestres o acesso ao material consultado. Algumas vezes temos dificuldade de saber a procedência das informações trazidas por Gutemberg Cruz. A adoção das normas bibliográficas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) é indispensável num trabalho desta natureza. Como Gutemberg abre um importante veio de pesquisa, inclusive para as dissertações e teses na Faculdade de Comunicação, seu trabalho desbravador passa a ser de consulta obrigatória. A revisão cuidadosa das citações e referências, de forma objetiva, é uma imposição da própria natureza pioneira do livro.

Outro ponto discutível é a inclusão de Gonzalo Cárcamo como mestre do humor gráfico na Bahia. Mesmo sendo um grande artista, o fato dele ter atuado durante três anos no Jornal na Bahia, ao residir em Salvador, não faz do seu humor um humor baiano. A situação deste chileno é diferente, por exemplo, da situação do russo Nicolay Tishchenko. Enquanto Tishchenko iniciou-se como artista gráfico na Rússia, radicando-se depois na Bahia, onde atuou pelo resto da vida profissional, Cárcamo é um viajante que esteve aqui por algum tempo, assim como esteve em outros lugares, colhendo dados, vivenciando culturas e enriquecendo sua formação andarilha.

Nicolay Tishchenko ligou sua vida à vida da cidade, do mesmo modo que o fez um outro estrangeiro — K-Lunga, um dos pseudônimos do pintor Raymundo Aguiar. Português de nascimento, Aguiar fez sua formação na Bahia, onde inclusive se tornou professor da Escola de Belas Artes.

Observe-se que Gutemberg Cruz dedica justamente ao menos baiano destes representantes do humor gráfico na Bahia o maior número de páginas do seu livro. A admiração do autor por este consagrado artista do traço, que é Cárcamo, fez o estudioso agir como o torcedor de futebol que pensa que Deus é brasileiro... Mas Cárcamo é tão baiano quanto Deus é brasileiro.

Talvez Gutemberg devesse registrar a passagem deste artista pela Bahia na parte introdutória do seu livro ou num apêndice, observando assim o estatuto de um jovem mestre do traço que durante algum tempo riscou por estas bandas.

Por fim, todos nós que desfrutamos os divertidos e bons momentos proporcionados pela leitura de O traço dos mestres, de Gutemberg Cruz, ficamos desejando que a mostragem dos cartuns, charges e caricaturas fosse bem maior. Gutemberg levantou um material gráfico publicado há vinte, trinta ou cinquenta anos atrás; às vezes em jornais e revistas de pequena circulação. Tem portanto, um acervo valiosíssimo. Uma próxima edição, que certamente virá, dados os méritos do trabalho, poderá trazer maior número de páginas dedicadas à iconografia dos mestres do humor gráfico na Bahia.

Gutemberg Cruz: O traço dos Mestres: Humor Gráfico na Bahia. Salvador, 1996, 144 p.

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