Dandara, de Janaína Amado


Dandara,
uma utopia da liberdade

Cid Seixas

Dandara, de Janaína Amado, entrelaça duas histórias para compor o universo romanesco: o destino individual de um garimpeiro-lobisomem, que se apaixona por uma filha de escravos, e a utopia coletiva da liberdade, vivida por um quilombo perdido em algum lugar do sertão. O eixo em torno do qual o livro se desenvolve é o velho tema do amor impossível, encarnado por um lobisomem e uma quilombola. Dito a frio, para quem está de fora da trama do romance, o livro pode parecer sem grande interesse, mas dito pela escrita de Janaína Amado, não só o pulsar da cidadela utópica de Quibano, como também as incríveis peripécias de um lobisomem ganham corpo e interesse.

O tecer da trama e o esgueirar-se da escrita ficcional são dominados por esta romancista que faz sua estreia de forma deliciosa para o leitor. Dandara é um livro cuja leitura, uma vez iniciada, não é interrompida, porque o leitor segue com interesse e prazer seus descaminhos.

Mas, em se tratando de um estreia no romance, antes de outros comentários sobre a obra, o leitor pode querer saber quem é Janaína Amado. A autora tem vários livros publicados na área de História, disciplina da qual é professora titular na Universidade de Brasília. Nascida em Salvador, é filha de uma poeta pouco conhecida, porém fascinante, Jacinta Passos, e do escritor James Amado. Tem ainda na sua vida familiar a presença de dois grandes romancistas brasileiros: Jorge Amado, irmão do seu pai, e Graciliano Ramos, pai da sua mãe de criação. Tendo seguido carreira acadêmica, Janaína fez-se doutora em História e publicou livros como Conflito social no Brasil, pela Símbolo, em 1978; Navegar é preciso, Atual, 1989; Colombo e a América, Atual 1992; No tempo das caravelas, Contexto, 1993; História de Goiás em documentos, Universidade Federal de Goiás, 1994; tendo escrito ainda o livro Passando dos limites: A interdisciplinaridade nas ciências humanas.

O realismo de Dandara é costurado com o fantástico, já imposto por um dos protagonistas do livro, Pedro Lobisomem, extraído da imaginação romanesca e das velhas lendas orais que fascinam crianças e adultos do interior do Brasil. Desde esta escolha, Dandara começa a buscar um caminho de diálogos intertextuais, estabelecendo falas e ressonância do imaginário brasileiro. Mas, ao dialogar com as lendas e mitos da nossa gente, o livro abre passagem para um outro diálogo intertextual, com versos de canções populares, personagens da literatura etc.

No segundo capítulo, onde tomamos contato com o universo da cidade de Iagos, ficcionalmente situada em qualquer lugar do Brasil do século XVIII, a sua população é constituída também por figuras humanas que são nossos velhos conhecidos, de ler, de ouvir contar ou de assistir:

— “De todas as ruelas que desembocam na Praça do Poeta, vinha descendo uma multidão animada, tagarela: Manuel Verdureiro, Sargento Getúlio, o menino Miguilim, Joana-Peito-de-Pomba, Padre Amado, Pedro Pedreiro, Dorotéia Cajazeiras, os gêmeos Crispim e Crispiniano... O povo de Iagos, desde a véspera trancado dentro das casas, iniciava mais um dia.”

Depois destas aparições inesperadas, a gente fica a espreita de outros conhecidos que, como Godot, se inscrevem na ausência. Esperamos ainda ver outras gentes, mas elas ficam por aí, sem dar de cara. Pode-se mesmo dizer que Janaína Amado é uma ficcionista estreante que, aqui e ali, brinca com o romance, como os veteranos sabem brincar. Talvez a sua proximidade com a construção do texto histórico, narrativa verdadeira, mas necessariamente bem urdida, confira a Janaína uma certa intimidade com outras histórias.

Aqui, recuperamos as informações sobre a autora, que, antes de seguir as trilhas da ficção, escreveu alguns livros de investigação historiográfica.

Sem nenhum intuito de pseudo erudição, lembro a conhecida passagem da Poética de Aristóteles, na qual a história e a literatura são tomadas como referências contíguas mas antagônicas. A história trata do verdadeiro, do particular, daquilo que aconteceu. A literatura se ocupa do verossímil, do universal, do que poderia acontecer. Os personagens da história são situados e datados, homens que teriam existido e cujos feitos transcorreram num tempo e num lugar determinados; enquanto os personagens poéticos, quer de um velho poema épico, quer de um romance contemporâneo, têm seu tempo e o seu lugar situados em qualquer ponto que a imaginação alcance.

É precisamente isto que Janaína Amado faz no seu romance Dandara. Como historiadora, bem que poderia ir buscar no acontecimento investigado o seu tema favorito, mas preferiu outra direção. Ao abandonar o previsível caminho do romance histórico, preferiu romper com o verdadeiro e construir uma verossimilhança fantástica, inverossímil portanto. Radicaliza, assim, a dicotomia aristotélica e afirma-se como ficcionista sem querer dever à História. Mas não pode deixar de fincar nesta experiência a sua nova construção.

Em outros termos, mesmo desvinculando radicalmente o seu romance da sua condição de historiadora, Janaína Amado traz para a literatura uma bagagem incorporada nas suas viagens pela investigação historiográfica. Se, por um lado, a linguagem da autora, ou a tessitura do discurso, demonstra o exercício da narrativa — que, mesmo não sendo narrativa de ficção, é uma narrativa que visa ao estabelecimento do universo de uma historia —, por outro lado, ao se fixar numa época, o século XVIII, a autora deixa transparecer sua formação. Mas novamente aí ela dá o salto: Dandara não é romance de época. Assim como a cidade de Iagos se situa em qualquer lugar do país, a ação pode transcorrer em qualquer tempo, desde que compreendido numa faixa em que os quilombos se desenvolveram.

Janaína Amado apaga qualquer ligação com o verdadeiro, assentando sua criação na mais densa floresta do verossímil. No mais, é um romance capaz de prender o leitor pelas suas peripécias, ao tempo em que revela a consciência do trabalho de criação.

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Janaína Amado. Dandara; romance. São Paulo, Maltese, 1994.

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