A
SEMIÓTICA ABERTA
DO ABC RE-OBTIDO
DO ABC RE-OBTIDO
Cid Seixas
O
livro Abc re-obtido, de Maria da
Conceição Paranhos,[1] foi, sob
vários aspectos, o mais importante lançamento de poesia do ano de 1974, na
Bahia.
Importante,
principalmente, como atualização da pesquisa estética que, enfrentando as proposições
da semiótica e da linguística, não aceita os limites de uma retórica
ornamental, mais apropriada para os discursos de formatura dos bacharéis
baianos do que para as descobertas da poesia.
Sabemos
que os sobreviventes dos tertúlias líricas da cidade se resguardam à sombra de
uma tradição cada vez mais fóssil e menos fácil de se impor perante as
exigências do tempo. Vivemos, se é possível a referência como paralelo, o
"mito da queda", colocado por Fernando Pessoa, em Mensagem. Entre nós ainda pesam os
preconceitos de uma poética retardatária e alheia aos rumos da vanguarda
brasileira. A Bahia — adotado um juízo de valores isento — anda, pelo menos,
alguns anos atrás de São Paulo, Minas, Pernambuco ou Rio de Janeiro, do ponto
de vista da sua criação poética. Poetas, temos em todas as esquinas, becos e
botecos, saudosas viúvas condoreiras de Cecéu. Mas amantes da palavra, oficiais
do ofício do texto, artesãos da sua arte, capazes de cumprimentar a beleza, não
temos muitos.
É
por isso que se deve destacar o novo livro de Maria da Conceição, aceitando a
polêmica sugerida pela autora ao realizar no território poético a dupla e
ambígua acumulação: texto/metatexto. Evidentemente, não se pretende estabelecer
uma hierarquia que vise conferir à autora um lugar privilegiado no contexto dos
seus pares. Longe, o intento, principalmente pelo valor inegável de poetas como
Ruy Espinheira Filho, Capinan, Myriam Fraga, Falcón, Carlos Cunha, Ildásio
Tavares, Florisvaldo Mattos ou Antonio Brasileiro ¾ pertencentes à
chamada geração da Moderna Poesia Baiana.
O
que tenta este texto é uma análise, tanto quanto possível descomprometida, de
projeto e procedimento do Abc re-obtido,
livro que se constitui numa quebra da praxe poética — oh! quão dessemelhante — da Velha Cidade de Gregório de Matos.
Re-obtenção
como metalinguagem
Sabemos
que a Poética é uma metalinguagem, enquanto o poema é operado através de uma
linguagem-objeto. A primeira é a análise do discurso; a segunda, a linguagem
como expressão de um conceito sugerido pelo mundo que nos rodeia. Os textos
sobre teoria da informação estética repetem, frequentemente, tal distinção, e o
leitor sabe que a obra literária se utiliza de uma linguagem-objeto — a
linguagem como instrumento através do qual a mensagem é transmitida. Inversamente,
na obra teórica, onde se discutem a realização de um poema ou os recursos
estilísticos de um autor, a linguagem deixa de ser o objeto ou o instrumento
através do qual se comunica a mensagem, passando a ser o próprio assunto a ser
comunicado.
Existem,
porém, poemas metalinguísticos, como a Arte
Poética, de Verlaine, ou a Procura da
Poesia, de Drummond; os exemplos são muitos, onde o tema do poema é a
Poética. O Abc re-obtido não se
inscreve propriamente nesta categoria, apesar se ser um conjunto de poemas metalinguísticos.
O livro não procura tratar da arte de fazer versos, mas realiza claramente a
metalinguagem, através da subversão do código linguístico. Ao procurar
reconstruir e revalorizar a linguagem, atribuindo nova carga semântica aos
elementos fundamentais da sua representação gráfica, o poeta está, consequentemente,
tomando o veículo como motivação. Tanto o mestre formalista Roman Jakobson,
quanto Barthes e Eco já observaram as afinidades entre poesia e metalinguagem.
No Brasil, Haroldo de Campos também percebeu o elo e, no ensaio
"Comunicação na Poesia de Vanguarda", cita uma observação de Hegel
bem a propósito do nosso problema: "Para a modernidade, a reflexão sobre a
arte passou a ser mais importante do que a própria arte".[2]
A
constante reflexão do artista em torno do código, confere à linguagem uma nova
posição, mais privilegiada que a de simples objeto de transmissão. O texto
moderno desloca o centro de gravidade do significado para o significante; a poesia
moderna radicaliza a tendência, sustentando sua proposição na forma do signo,
chegando a abandonar a referência ou o sentido, em favor da valorização dos
elementos sígnicos da expressão. Para usarmos a prata da casa, o concretista
Erthos Albino de Souza, criador da revista Código,
deixa transparecer nos seus trabalhos a constante preocupação neste sentido,
vinculando a poesia à ciência geral dos signos e promovendo a sua emancipação
do domínio linguístico. A este fenômeno chamamos, de certa feita, invertendo a
expressão de Eco, os conteúdos da forma.
Não
é sem causa que os concretistas brasileiros rendem tributo a Stéphane Mallarmé
e, principalmente, ao seu poema Un Coup
de Dés, talvez o primeiro a afirmar que a poesia se faz com palavras e não
com ideias.
É
aí que o livro de Maria Conceição se inscreve corajosa e independentemente
entre a poesia de vanguarda: o texto é auto reflexivo, não se trata de um
simples discurso emotivo ou de uma retórica comprometida, preocupada com os
fins a serem atingidos. A propósito, convém lembrar ainda Haroldo de Campos,
que dizia que o primeiro conteúdo do poema concreto é a sua estrutura. Com a
citação e frequente referência a esta corrente, não identificamos,
necessariamente, vanguarda e "concretismo". Tomamos a poesia concreta
como uma das possibilidades do engenho novo, uma vez que a redução obrigatória
de toda vanguarda brasileira aos preceitos concretos representa uma espécie de
imposição ao poeta de uma nova gramática, ou seja: uma poética normativa e unidirecional.
Os
caminhos da vanguarda são abertos, inclusive no sentido diacrônico; entendido
como um retorno para efeito de redescoberta. Por isso é que não vejo com olhos
de tédio a profecia de Décio Pignatari, ao falar das "redundâncias mais ou
menos aceitas e que formarão a linguagem comum universal do fim do
século". O código é gestante. Não existe, por enquanto, novo perigo de
saturação.
Mas
insistamos no caráter metalinguístico do livro de Conceição Paranhos, no qual é
impossível se estabelecer a dicotomia entre forma e conteúdo, já que o veículo
empregado para a transmissão da mensagem é a mensagem mesma. Neste sentido,
esta poesia se aproxima mais do modelo teórico do Poema do que qualquer outra
que tome a linguagem como instrumento de comunicação.
Sabe-se
que a estética hegeliana não admite a divisão entre forma e conteúdo; mas,
paradoxalmente, alguns dos pensadores
que se propõem herdeiros ideológicos de Lukács, ao tentarem o exercício da
criação, estabelecem a tão famigerada dicotomia, se prendendo ao objetivo a ser
atingido (a ideia que se pretende transmitir), esquecendo, portanto, a
indissolubilidade entre fim e meio. Esquecendo, se não no plano ético, pelo
menos no plano estético.
Toda
poesia que se sustenta na valorização unilateral da mensagem incorre em dois
erros essenciais: o primeiro, intrínseco, no sentido aristotélico (Poética 1460
b 13), a mímese imperfeita, em virtude da utilização arbitrária da linguagem; e
o segundo, historicamente equívoco, pela dicotomia evidente entre forma e conteúdo.
O
traço marcante do Abc re-obtido é a
exigência textual de se conciliar um discurso teórico com a leitura dos poemas.
Na descodificação da mensagem, o leitor realiza, forçosamente, uma recodificação,
atitude que implica dupla posição crítico/criativa, ou metalinguística no
sentido poemático. Na "Nota do Autor", precedendo o alfabeto
multissemiótico que foi incluído no fim do volume, a poeta chama a leitura do
seu livro de de/recodificação,
evidenciando a necessidade de reflexão. Paralelo ao processo de fruição, o
leitor estrutura um tipo de criação polifacética, de natureza, portanto, metalinguística,
ao considerar a diversidade de origem dos símbolos utilizados.
O plurissigno,
abertura operacional
Umberto
Eco postula como diferença fundamental entre as artes clássica e moderna o fato
da primeira introduzir figuras originais no interior de um sistema linguístico
permanente e de leis imutáveis, ao passo que a arte moderna afirma a sua
originalidade estabelecendo um novo sistema linguístico. Aprofundando a
questão, ele arremata: "O poeta contemporâneo propõe um sistema que não é
mais o da língua em que se exprime, mas também não é o de uma língua
inexistente: introduz módulos de desordem organizada no interior de um sistema
para aumentar-lhe a possibilidade de informação".[3]
É
isto que caracteriza a abertura da
obra, num dos muitos sentidos possíveis, e é neste sentido que o livro de Maria
da Conceição Paranhos representa uma semiótica aberta. Tomamos aqui a expressão
semiótica para representar um dos
vários sistemas semiológicos possíveis e a expressão Semiologia para a disciplina que estuda os diversos sistemas ou
semióticas existentes.[4]
Partindo de uma semiótica gerativa ou de base, que é a língua (veja-se mais
adiante a posição de Jakobson, que considera a linguagem como fundamento de
todo e qualquer sistema de comunicação), a autora pluraliza os seus signos,
transformando-os em plurissignos, isto é: as letras, ou sinais de um sistema de
escrita fonográfica passam a ser susceptíveis a várias leituras, porque são
apresentadas como signos de várias semióticas ou de vários sistemas semiológicos.
Desta
forma, o "A" — primeiro poema do volume — não representa apenas a
primeira letra de todos os alfabetos (exceto o etíope), mas aparece também como
um símbolo nos sistemas da Química, da Música, da Astrologia, da Álgebra ou da
Alquimia, onde o Alfa das escrituras é a pedra filosofal. O texto do Abc re-obtido se ocupa destas
disciplinas enquanto semióticas, ou sistemas de linguagem, reativando tais
códigos na mente do leitor para o ato de decodificação da mensagem poética. Em
síntese: não existe uma barreira de campo entre a Linguística e a Semiologia.
Utilizando extensivamente um conceito de Roman Jakobson,[5]
diríamos que a linguagem construída pela poeta nesse livro é constituída por
várias funções: temos a função predominante, que é a função linguística, e as
funções adicionais, que são assumidas pelas diversas semióticas que
possibilitam a reobtenção semiológica do Abc.
O
segundo poema do livro ¾ cujo título é "B" ¾ começa pelos versos:
Quantidade suposta
em álgebra:
na esfera, o ábaco
b mol, b quadro
existindo por cortarem-se
mais alto explode o b
em sustenido
o b quadrado volta e rasga
neutralizados os artefatos
brote a música
em cromatismo re-obtido
onde
a segunda letra do alfabeto é explorada como símbolo sujeito a várias leituras,
em sistemas como Álgebra, Música ou Química:
ou negativo trivalente
boro
metaloide
Outro
trecho deste mesmo poema faz alusão a Bach e a sua Arte da Fuga, obra inconclusa, posto que o autor morreu debruçado
sobre a partitura, quando transpunha o contraponto do tema “BACH”, ou seja: B =
si menor; A = lá; C = dó; H = si natural. Vejamos a estrofe:
Ó Johann Sebastian
B A C H
em si menor, em lá, em dó
em si, ao natural
teu nome interrompido
em ato, águia
que parasse
em voo, sem compasso
prosseguindo
sem tempo e sem espaço
catedral de som
que em som mudasse
em som se consentindo
eternizada.
O
que se chama de semiótica aberta é a reunião de signos pertencentes a vários
códigos num mesmo inventário semântico, trabalho a que a autora se propôs. Com
base na língua, ela renova e amplia as possibilidades do sistema, demonstrando
no poema o axioma jakobsoniano: "A linguagem [verbal] não é um meio de
comunicação entre outros; é o fundamento de toda comunicação. A linguagem é
realmente o próprio fundamento da cultura. Em relação à linguagem, todos os
outros sistemas de símbolos são acessórios ou derivados".[6]
Partindo
daí, o poeta, neste seu livro-proposta, através de um projeto estrutural sólido
e cuidadosamente elaborado, constrói um admirável modelo de vanguarda voltada
para o verbo. Enquanto uma corrente declara implicitamente, nos seus textos de
criação, a morte da palavra — ou o seu desmantelo — Maria da Conceição parte em
busca da reobtenção expressiva, através da submissão das semióticas à língua[7]. A
palavra está morta, proclamam as vanguardas antidiscursivas. Sim, morta como
relíquia de uma linguagem poética estratificada, mas o mesmo não se pode dizer,
quando ela passa a ser elemento do idioleto
de um Guimarães Rosa ou das fragmentações & montagens do linossigno de um Cassiano Ricardo, entre
outros magos do verbo alquímico. A autora viu e sentiu as possibilidades
abertas pelos mestres e feiticeiros, e iniciou o seu trabalho, numa mesma linha
de transmutação do chumbo em ouro ouvido ou lido.
Na
verdade, a tarefa que Maria da Conceição Paranhos se impôs é ampla, o que
justifica e explica o fato de não ter realizado poemas individualmente
acabados, mas um livro de estrutura bem definida. Este não é um volume para ser
tomado por partes; não acredito que existam poemas que, isoladamente, se
imponham ao gosto do leitor, mas um livro para ser analisado como um bloco, ou
melhor: um sistema de comunicação poética.
Seu
sistema, que a partir do livro pertence a todos nós, testemunha aquela
responsabilidade referida por Ezra Pound, no Abc of reading, ou por T. S. Eliot, que expressa sua ideia irmã sob
outros ângulos: "Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só
indiretamente voltado para seu povo: seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar
preservar, em segundo ampliar e melhorar".[8]
As
lições essenciais, Maria da Conceição Paranhos aprendeu, e antecipou, com as
antenas do poeta;[9] e nos
transmite do modo que são feitas as grandes revelações: a Poesia.
___________________________
Maria
da Conceição Paranhos: Abc re-obtido,
prefácio de Rosa Virgínia Mattos e Silva, capa de Jan Ewald Jr., Salvador,
1974, 67 p.
A semiótica aberta do Abc-reobtido. Jornal de Cultura; suplemento do Diário de Notícias. Ano III, nº 20. Salvador, 5 jan. 75, p. 5.
NOTAS
[1]. Maria da
Conceição Paranhos: Abc re-obtido,
prefácio de Rosa Virgínia Mattos e Silva, capa de Jan Ewald Jr., Salvador,
1974, 67 p.
[2]. Haroldo de
Campos: A arte no Horizonte do Provável,
2ª ed., Perspectiva, São Paulo, Perspectiva, 1972,150 p.
[3]. Umberto Eco: Obra Aberta, 2.ed., São Paulo,
Perspectiva, 1971, p. 124.
[4]. Umberto Eco: A estrutura Ausente, São Paulo,
Perspectiva, 1971, p. 385-419.
[5]. Roman
Jakobson: Lingüística e comunicação,
5ª ed. São Paulo, Perspectiva, 1971, p. 129.
[6]. Roman
Jakobson: Relação entre a ciência da
linguagem e as outras ciências, Lisboa, Bertrand, 1974. Eco na já citada Obra Aberta, p. 73, insere citação de
igual teor, tanto de Jakobson quanto de Nicolas Ruwet, prefaciador dos ensaios
do mestre formalista.
[7]. Ronald
Barthes: Elementos da Semiologia, 2ª
ed., São Paulo, Cultrix, 1972, p. 11-13.
[8].
T. S. Eliot: A Essência da Poesia,
Rio de Janeiro, Artenova, 1972, p. 35.
[9].
Marshall McLuhan: Os meios de comunicação
como extensões do homem, 4.ed., São Paulo, Cultrix, 1973, p. 9-15.
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