CÓDIGO
II:
CÓDICES DO PRESENTE
CÓDICES DO PRESENTE
Cid Seixas
Quando
em 1968 o primeiro número da revista Porto
de Todos os Santos incluía na sua seção de poesia um trabalho do engenheiro
Erthos Albino de Souza, era ainda muito limitado o número de escritores baianos
voltados para a poesia concreta. A partir daquela época, com a divulgação do
seu "Crisálida Rosal" e de outros inventos, Erthos começou a atuar
mais intensamente como centro solar de uma nova galáxia, empenhado na revisão
dos valores poéticos da velha província.
Hoje,
os brados retóricos e barrocos não formam sozinhos o des/curso poético da
cidade. Embora numericamente muito superiores, os bacharéis do verso verboso já
dividem os ducados metafóricos dos feudos de Garcia D'Ávila com um pequeno
grupo que se lhe opõe radicalmente o pensamento estético. Tanto que, em 1973,
quando o poeta Carlos Cunha e eu organizamos a II Feira da Poesia, não pudemos
dispensar a participação do grupo concreto baiano, ao lado de outros poetas de
vanguarda. Foi incluída na programação oficial da Feira a Noite da Poesia Concreta, constando de exposição de trabalhos de
criação, em praça pública, além de lançamentos e noite de autógrafos. Na
barraca da poesia concreta estavam à venda também os livros das estrelas
maiores do centro de irradiação paulista, como Re-visão de Kilkerry, de Augusto de Campos (que muito deve a Erthos
as primeiras pesquisas em torno do simbolismo baiano) e Re-visão de Sousândrade, outro trabalho de recolocação de autor
brasileiro no lugar que sua obra exige; também com o concurso de Erthos Albino
de Souza.
O
ano passado, este mesmo grupo (que participou da Feira da Poesia), reunido em
torno da figura do Poeta-Engenheiro, como o chamou Haroldo de Campos na nota
introdutória ao livro de Mallarmé, fundava a revista Código. Era uma publicação baiana, mas com pretensões e caráter
eminentemente nacionais. Já trazia nomes locais que, pouco a pouco, mereceriam
respeito intelectual, como Antônio Risério, bem atualizado e bem informado nos
seus artigos e ensaios publicados em jornais. E a revista se impôs como
documento indispensável a todo aquele que deseje uma visão crítica do panorama
histórico da literatura baiana.
Surge
agora o número dois de Código, com
participação de Augusto de Campos, Antônio Risério, Beto G. Cerqueira, Caetano
Veloso, Décio Pignatari, Erthos Albino de Souza, Haroldo de Campos, Héctor
Olea, José Lino Grunewald, João Patinhas, José Luís Geraldi, José Roberto
Lakatos, Lena Coutinho e Raquel.
Convém
cavar o chão de alguns dos trabalhos incluídos neste novo número, lendo aqui e
deslendo lá o que é possível desvendar. Héctor Olea constrói seu Luzaluz através do processo constante de
palavra/montagem, onde os signos linguísticos são acumulados e fundidos num
morfema-sintagma. As palavras conservam seu sentido conotativo e/ou denotativo
primeiro, enquanto, conjuntamente, adquirem nova carga semântica. O processo
vem sendo trabalhado de há muito pela vanguarda brasileira, sendo encontrado
também em alguns momentos de poetas do Modernismo como Cassiano Ricardo ou
Carlos Drummond de Andrade.
Antônio
Risério e Caetano Veloso traduziram alguns provérbios do Inferno de William Blake, o místico e mágico codificador de
mistérios. Augusto de Campos entra com o que ele chamava de uma intradução do trovador provençal Bernart
de Ventardorn, onde são entrevistos dois versos decassilábicos que, linearmente
postos, dizem:
se eu não vejo a mulher que eu mais desejo
nada que eu veja vale o que eu não vejo
José Lino Grunewald, que abre a revista com
uma composição de signos & símbolos, reaparece em outra página com um poema
que explora as potencialidades da palavra através do processo anagramático.
Partindo da máxima "a ordem dos fatores não altera o produto", o
axioma é invertido nas oito linhas que antecedem a frase. Deste modo, o axioma
é transformado em teorema, um teorema que não é demonstrado, pois, no caso, a
ordem dos fatores altera o produto. José Lino joga neste texto não somente com
a inversão e o entrelaçamento no plano sintático, mas fonético.
Os
“anagramas” de Grunewald não se prendem ao sentido saussuriano da expressão anagrama: "palavra ou frase que se
forma com as letras de outra (do grego: ana
+ grama). Estes anti-anagramas visam
apenas o plano fonético e não fonológico, isto é, não se prendem aos domínios
da língua, buscando uma nova entidade semântica, através da reconstrução de
semantemas com o material apurado na desmontagem dos vários morfemas. Raros são
os anagramas fonológicos, como relata
construído a partir de altera; estofar, a partir de fatores; e rodem, a partir de ordem.
Enquanto ele conseguiu reconstruir com esta última palavra (ordem) mais duas outras: rodem e dorme, se perdeu num discurso transracional ao enveredar por um
exercício meramente fonético (ou melhor: fônico), não aproveitando ainda outras
possibilidades oferecidas pela língua a quem a ela se atém. Com esta mesma
palavra, ordem, formaria ainda morde; com altera formaria alerta,
etc. A linguagem e seus sentidos estão aí, ambos mais ricos, talvez, com
certeza, que o som sem sentido.
Os
velhos poetas da antiguidade já jogavam este lance de dados com mãos de mestre,
descobrindo as palavras sob as palavras. Mas José Lino Grunewald não quis
trabalhar dentro dos limites linguísticos, indo em busca de uma translinguagem,
digamos assim. E isso conseguiu, brincando com seus brincos sonoros. Nada mais.
Infelizmente,
a ampla tela de tintas oferecida à poesia de vanguarda não é usada nem prevista
pela cartilha concreta: ao partir para a captura da palavra como materialidade,
esta tradição (já temos uma tradição do impasse, desde 1950) desvia a mira do
alvo quando a palavra se mostra sem ser material. O vasto campo da linguagem
verbal, das formas da expressão às formas do conteúdo, não é visado pelo
invento dos Campos. No texto em tela, se Grunewald assentasse seu sentido na
sintaxe chegaria a resultados mais ricos ao evidenciar, com o jogo de
possibilidades em torno do adágio adornado — "A ordem dos fatores não
altera o produto", a perda de autonomia da palavra portuguesa, e românica,
em relação à latina, onde a tese não comporta antítese. A sintaxe latina prevê
o que Chomsky chamaria de outras construções,
invertendo a ordem das palavras sem inverter a ordem do sentido. Do produto,
portanto. Tudo isso estaria em jogo se o poeta não jogasse apenas com letras,
mas com palavras, ou com a linguagem ¾ como um todo;
tirando seu leite das pedras de dentro de língua, como faziam Mallarmé,
Guimarães Rosa ou mesmo Safo.
E
as odes sáficas se safaram melhor que os brincos concretos. Mas como Décio
disse: ninguém consegue sempre se superar a si mesmo. Mesmo em estrambolices.
Código 2 traz ainda o Pháneron, de Décio Pignatari, fragmentos
das Galáxias, de Haroldo de Campos,
dentre outros textos & temas. Enfim: uma publicação não apenas para ser lida
ou tida, em casa, sobre a estante ou o aparelho de TV (onde esta toma o lugar
dos livros), mas para ser debatida. Como aqui se faz.
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Código
II: códigos do presente. A Tarde.
Salvador, 12 de julho de 75, p. 4.
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