Marcelo Torres: Futebol é uma cachaça


Futebol é uma cachaça

Marcelo Torres

Para início de conversa, perguntemos: como se chama o ato ou a cena de abertura de uma partida de futebol?
Pontapé inicial, este é o nome.
Que coisa mais emblemática, o espetáculo ter início com um pontapé.
E olha que, ao pé da letra, o lance não é lá esses pontapés todos.
Não!
É um toquezinho leve, até protocolar.
É um passe curtinho de um atleta para outro.
Ali no centro do gramado, na grande lua. 
Mas por que não o chamam de abertura?
Por que não toque inicial?
Por que tem que ser logo pontapé, se nem pontapé ele é? 
Ora, pensemos, se o toque inaugural — tão leve, tão inofensivo —, se o toque primeiro carrega toda essa simbologia de violência, o que esperar de outros lances, de outras cenas, de outros atos do futebol?
— Futebol é esporte de contato físico — dizem os narradores, dizem os comentaristas, dizem os atletas, os árbitros, os cartolas, os torcedores.    
Na brincadeira de bola de crianças, na partida de um torneio juvenil ou num amistoso entre veteranos, quando um jogador reclama de uma jogada dura, às vezes desleal, o infrator estufa o peito e retruca:
—  Futebol não é pra moça! Futebol é pra macho.
O futebol se faz com os pés.
Pés que soltam chutes, chutões, canhões.
Que soltam petardos, pontapés, pancadas, pauladas.
No futebol, todos xingam a mãe do juiz.
Depois escarram e cospem.
— Futebol é assim mesmo — dizem.
Estamos acostumados, resignados.
Fazemos ouvidos moucos aos cânticos de guerra.
Achamos normais os xingamentos, os gritos de preconceitos e discriminação.
— Corno!
— Veado!
— Filho da puta!
— Ei, juiz, vá tomar no cu!
Contemporizamos: — Ah, isso faz parte do futebol.
No futebol tem-se a retranca, o time defensivo.
Tem o time com poderio ofensivo.
Tem o que joga no ataque, um time agressivo.
E ela, a violência, se sentindo a dona da bola.
A violência se vê como a bela dona do pedaço.
Até a regra oficial do futebol evoca violência.
Porque toda falta é punida com um tiro.
Tem o tiro livre.
Tem o tiro livre direto.
Tem o tiro livre indireto.
Tem o tiro de meta.
O tiro de canto.
Tem o tiro penal.
Com tanto tiro, o nome deveria ser outro.
Deveria ser tiroteio.
Temos o atirador, o artilheiro.
Temos o matador.
Temos o confronto direto.
Temos o campo inimigo.
Temos o duelo, o combate.
E tem ela, a pior de todas as expressões do campo de batalha: o mata-mata.
Mata-mata significa partida eliminatória.
Eliminação, neste caso, é a morte.
E olha que já houve até uma tal “morte súbita”.
Agora, veja só que coisa simbólica: um atleta mostra categoria quando “mata a bola no peito”.
Aliás, o grande cronista esportivo Armando Nogueira dizia o seguinte: “No futebol, matar a bola é um ato de amor”.
Eis aí.
Tudo no mundo da bola tem um quê de violência.
Os atos, os fatos, as cenas.
Os papéis, os personagens.
O palco, as plateias.
Tudo.
Um universo de guerra.
É o confronto, é o combate.
É a zona entre o estádio e o entorno.
Aquilo é uma zona de conflitos.
Tem-se dois lados.
Duas equipes.
Duas torcidas.
É como se fossem dois exércitos.
Com comandantes e comandados.
Com táticas e técnicas.
Com hinos e bandeiras.
Com escudos e uniformes.
Com heróis e vilões.
O palco: o campo de jogo.
Mais parece arena de gladiadores.
Às vezes chamam-no campo de batalha.
A praça esportiva, praça de guerra.
Um filme cheio de tiros e violência.
Onde o papel principal é do artilheiro.
O artilheiro é a estrela.
É o herói, o ídolo.
É o matador.
Não se fala mais em goleador.
Hoje, todas as honras e todas as glórias vão para ele, o matador.
No futebol, a violência é algo banal.
A morte não causa mais espanto.
Domingo passado o Inter de Porto Alegre sagrou-se campeão mundial.*
Ganhou surpreendentemente do favoritíssimo Barcelona.
E na capital gaúcha uma mulher gremista matou o marido colorado.
Pirraça pra lá, pirraça pra cá, ela enfiou a faca.
Fé cega, faca amolada.
Veja: o futebol glorifica o matador.
Já o vôlei prefere festejar o maior pontuador.
E o melhor saque, o melhor bloqueio, o melhor passe, a melhor recepção.
No basquete, o destaque não é artilheiro-matador.
É o cestinha.
O maior ídolo do nosso basquete, Oscar, tem um apelido singelo: "Mão Santa".
No vôlei e no basquete não se mata nem se morre.
E olha que, diferentemente do futebol, esses esportes não admitem empate.
Um vai perder, outro vai ganhar. 
Outra coisa: as torcidas de futebol.
Credo em cruz!
Tem a Fúria, tem a Mancha, tem o Comando.
Tem a Facção, tem a Gangue, tem a Falange.
E as músicas? Cânticos de guerra.
E os símbolos? Caveiras, arcos, flechas. 
São pequenos exércitos preparados para a guerra.
Mas que guerra, cara-pálida?
O futebol não é um esporte?
E o esporte não é coisa lúdica?
Não é saúde e vida?
Então, por que fazer dele uma guerra?  
O futebol é uma metáfora da vida — dizem.
Não.
O futebol é uma metáfora da guerra, isto sim.
Com seu vocabulário de violência.
O futebol é uma praga.
Uma ilusão.
Uma paixão.
Uma cachaça.
O futebol, meu irmão, é essa doença.
Uma doença sem cura.
Palavra de um torcedor-doente.

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