Ildásio Tavares: A técnica de dizer coisas simples


A Técnica de Dizer
Coisas Simples

Cid Seixas

A marca mais evidente da poesia de Ildásio Tavares é a busca da simplicidade, de uma dicção coloquial capaz de recriar a oralidade do discurso cotidiano com sua força e seus dizeres de maturada experiência. O scholar, o bem formado profissional acadêmico, sempre atento às técnicas de construção do texto e aos labirintos da linguagem persegue uma poesia despojada e de surpreendente simplicidade.

É evidente que este parti pris estabelece de pronto uma polaridade: a aceitação ou a rejeição por parte do leitor. É como se o poeta intencionalmente exigisse uma definição radical. Tão radical quanto a sua própria intransigência enquanto intelectual combativo e inquieto. É neste aspecto que o compromisso político do autor mais se evidencia.

Mesmo quando não pratica uma poesia de deliberado engajamento quanto à mensagem veiculada, Ildásio mantém-se fiel à orientação ideológica assumida desde a juventude.

A arquitetura do seu verso e a dicção do seu texto são de um poeta político, de um poeta que quer atuar a toda hora, que quer participar ativamente da vida da cidade. Mesmo ao falar dos insondados labirintos do sujeito e de tomar a lira para cantar o sentimento de um eu que se isola como centro do universo afetivo, ele o faz através de uma linguagem de assumida simplicidade que coletiviza este eu, que o identifica com o homem comum.

E aqui é necessário se fazer referência ao projeto de um livro escrito de 1964 a 1969, a primeira data, quando se deu um golpe de estado de direita no país, e a segunda, ano em que os militares lastrearam uma ditadura destinada a mantê-los indefinidamente no poder. Os mentores civis do golpe eram aqueles que acreditavam na supremacia das elites econômicas e defendiam a sua hegemonia política. Que viam a participação do homem comum, do trabalhador, do assalariado nas decisões nacionais como um “risco vermelho” ou como uma forma de avanço do comunismo.

Foi como reação intelectual a estes tecelões do liberalismo econômico de ontem e de hoje que surgiu o projeto e a construção dos poemas do livro O canto do homem cotidiano (publicado somente em 1977). Mas em 1968 Ildásio publicara seu primeiro livro, Somente um canto, dando conta não só do lirismo dos tempos juvenis como também desta tomada de posição que viria a caracterizar a sua linguagem poética. No poema “O tempo dos homens” ele anunciava:

O tempo dos homens é feito de pedra,
É feito de carne, de sangue, de dor.

Neste mesmo livro, no “Anti-canto a um poema de Richard Eberhardt”, insistia:

Não posso ver no campo apenas margaridas;

para fechar o volume com uma glosa aos versos de Gil Vicente:

Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas.

Os Poemas seletos de Ildásio Tavares publicados pela Fundação Casa de Jorge Amado, na coleção Prêmio Copene, dão conta de todo o trajeto do poeta, reunindo um pouco dos seus vários livros. São incluídos desde os textos mais antigos, sob a rubrica de “Versos jovens”, até os sonetos da maturidade, nos quais ele colhe os frutos de um complexo aprendizado.

Falar destes Poemas seletos é, portanto, fazer uma revisão de toda obra poética aí representada. Alguns volumes, de poucas páginas, como Imago, por exemplo, são integralmente ou quase integralmente incluídos nos Poemas seletos. Este livro, ao lado de Ditado (lançados respectivamente em 1972 e 1974), representa a outra face polarizante da poesia de Ildásio Tavares: a eleição de uma forma como eixo e pretexto de sugeridos dizeres. A economia sintagmática é contraposta à sintaxe visual ou à eleição do espaço como elemento constituinte do discurso verbal.

Nelson Werneck Sodré, há cerca de vinte anos, chamou atenção para o modo que o poeta põe a técnica a serviço do homem, ou o dizer a serviço do que é dito: “Em Ildásio Tavares é fácil compreender a alta qualidade do poeta. Em primeiro lugar pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade de, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou: as diferentes maneiras de dizer a verdade.”

A fusão destas tendências, que em alguns poetas são antagônicas, e a busca de uma síntese somatória começa a ser feita em Tapete do tempo (com poemas escritos de 1975 a 1977 e publicado em 1980). Aí Ildásio assume claramente a conciliação entre uma poesia que experimenta formas de dizer e busca nestas formas sustentação para uma dicção coloquialmente simples. João Ubaldo Ribeiro já escreveu o essencial a respeito deste lugar de chegada da poesia de Ildásio Tavares: “Seus versos, que eu sei e percebo trabalhados minuciosamente, são, não obstante o seu apuro técnico, tão maravilhosamente simples, que parecem, em muitos casos, recolhidos de um cancioneiro popular”.

Ao assumir um lugar de onde fala, o poeta também assume a fala deste lugar. A dicção do homem comum é a forma encontrada para encenar o drama cotidiano. Ou ainda: a busca da simplicidade revela a ambição de ser complexamente percebido pelos mais simples. Sua opção por uma poesia comprometida com o homem, sem usar as fórmulas desgastadas do panfleto partidário, encontra equivalência na sua prosa de ficção, especialmente no romance Roda de fogo, grito e gargalhada de toda uma geração que viveu os dias de incerteza instaurados pelo golpe de 64.

Concordando com a avaliação feita por Jorge Amado, estamos diante de um poeta cheio de interrogações, “buscando ansioso resposta para uma quantidade de perguntas que estão em muitas bocas mudas.” Quer na poesia ou na prosa, convém repetir, Ildásio Tavares é um escritor que constrói a sua circunstância poética a partir da condição política do ser humano.

A mensagem do seu discurso e a linguagem do seu invento buscam uma mesma direção, um mesmo objetivo: dizer o essencial de todos os homens e mulheres para o maior número possível de homens e mulheres, colocando a técnica e os mais complexos saberes a serviço das coisas simples.

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Artigo crítico sobre o livro Poemas seletos, de Ildásio Tavares. (Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996, 146 p.) Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 1 jul. 96, p. 7.

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