Nogueira Nunes


A IDEOLOGIA DO REGIONALISMO:

PIGUARAS DE UMA CULTURA MESTIÇA

Itana Nogueira Nunes

Enquanto “fenômeno” de natureza literária, o regionalismo, como já é sabido, instaura-se nos textos ficcionais brasileiros de forma mais ostensiva a partir do Romantismo.

A partir de então, inúmeros textos têm acumulado ao longo da história reconhecido valor documental na construção do caráter identitário do povo brasileiro.

Na intenção de delinear uma evolução desse regionalismo e de se fazer uma interpretação mais aprofundada da sua aparição nos discursos ficcionais, muitos exegetas da nossa literatura têm-se empenhado em produzir conclusões ou argumentações sobre algumas das suas causas e dos seus efeitos. Com isso, concluiu-se que a diversidade de interpretações ou concepções acerca desta significativa manifestação literária brasileira é fato merecedor de atenção.

Estando incluído neste projeto de esclarecimento sobre tal temática, o crítico David Salles apresenta, como resultado de seus estudos sobre o regionalismo grapiúna (manifestação considerada como uma das vertentes do regionalismo nordestino) a sua tese de doutoramento Romance e Regionalismo na Saga do Cacau (1982), apontando cinco variantes mais conhecidas, consideradas como consequências de uma transformação literária deste regionalismo ao longo da sua trajetória.

“Pode-se falar de uma práxis regionalista. Por conseguinte, há vários regionalismos e, pelo menos, cinco variantes regionalistas brasileiras de articulação das formas literárias com a matéria que lhe é própria. Excluída a sua matriz nativista ou indianista de diferenciação, podem ser detectadas, e já o foram, as seguintes variantes, a partir de meados do século XIX: a) regionalismo romântico; b) regionalismo realista-naturalista; c) regionalismo “verista”; d) regionalismo “nordestino”, ou de trinta, ou modernista; e) regionalismo contemporâneo, ou metafísico”.[1]

Embora apresentasse esta distinção para as variantes regionalistas, que se dá, segundo DS, a partir de uma análise do que ele chamou de “códigos verbalizadores” desses regionalismos, o autor chama atenção para uma interdependência existente entre eles, oriunda de uma intencionalidade comum a todos: a de desenvolver um processo mimético de apreensão e recriação do ficcional dos espaços regionais brasileiros.

Nesse sentido, o regionalismo pode ser considerado um fenômeno originalmente único, que progressivamente se torna distinto, ao estabelecer os seus espaços culturais próprios.
Excluindo o regionalismo de fundação empreendido por José de Alencar como categoria à parte, David Salles afirma que cada uma dessas variantes demonstra conter as suas próprias especificidades, muito embora estejam todas elas interligadas por questões intencionais muito próximas e tenham sido originadas de uma mesma família.

Em linhas gerais, o regionalismo brasileiro, pela amplitude das suas manifestações, pelo largo período de sua duração na história literária, assim como pela importante elaboração linguística, temática e geográfica que resultou numa “revelação” do Brasil aos brasileiros, alcançou um teor qualitativo de grande importância.

No ciclo baiano, a zona cacaueira, representada principalmente por Adonias Filho e Jorge Amado, apresenta uma produção regionalista de grande significância. Também Euclides Neto ficcionalizou a saga dos trabalhadores e dos proprietários da lavoura do cacau, seguindo, de certo modo, o caminho aberto por Jorge Amado. Iararana é a obra de escritor grapiúna Sosígenes Costa, que atribui à região cacaueira a gênese da identidade nacional a partir de uma lenda cabocla, tendo também importante participação na construção dessa forma de regionalismo.

Junto a esses, outros tantos escritores da cultura cacaueira, como Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, seriam injustiçados no caso de um esquecimento natural de um ou outro nome. Portanto, sem intentar citar todos, ressaltamos aqui a grande contribuição dada à literatura brasileira por estes escritores, não somente àquela de feição regionalista, mas a nossa literatura como um todo.

Ainda na esteira da produção baiana, temos o escritor Herberto Salles, autor de Cascalho, publicado em 1944, que, segundo Sergio Milliet, em nota à terceira edição deste livro, é, na literatura, “[...] o primeiro grande romance da região diamantífera da Bahia”, tendo como foco de análise a figura do garimpeiro. O baiano Xavier Marques é reconhecido também como um regionalista de grande destaque, tendo a sua literatura praieira se revelado como o ponto alto da sua produção literária através de Jana e Joel (1899).

O sertão, representado por Eurico Alves em Feira de Santana, também colabora com relevância na construção de uma tradição regionalista na Bahia. Assim, concluímos que a importância da Bahia no cenário brasileiro soma uma forte representação dos costumes locais ou regionais como documentos vivos da nossa gente, fato que se confirma nas palavras do crítico Adonias Filho no prefácio dos Novos Contos da Região Cacaueira onde afirma que sendo “parte de uma literatura com identidade própria, a ficção grapiúna já é por demais conhecida para que a expliquemos nas causas e como presença indiscutível na ficção. Isso na verdade seria chover no molhado”.[2]

Dando continuidade ao mapeamento do regionalismo no Brasil, temos a tradição regionalista gaúcha com uma das principais fontes da sua ficção, que é Apolinário Porto Alegre. Como seu maior herdeiro, destaca-se no regionalismo sulino João Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas, que viveu sempre em sua província, mesmo numa época em que somente na capital teria o seu merecido reconhecimento como escritor. Em suas histórias, elegeu como herói o gaúcho pobre, o tropeiro, o humilde peão da estância, destacando-se na literatura regionalista como um dos escritores mais populares. Entre as obras de maior destaque, temos o Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Ao lado deste escritor, podemos citar também nomes como Augusto Meyer (na poesia), Alcides Maya, Érico Veríssimo, Luiz Antônio de Assis Brasil, Sérgio Faraco, entre outros.

Como estas duas vertentes, são conhecidas diversas outras manifestações empenhadas em representar a identidade brasileira, esta feição do “nacional” ou do “local”, enquanto retrato da nossa realidade. São inúmeros escritores ou ficcionistas brasileiros que, em seus textos regionalistas, expressam (muitos com êxito) a essência do nosso povo. Podemos aqui lembrar alguns destes mestres regionalistas, que, “aberta a picada” para a construção de uma estrada que daria na consolidação dos valores nacionais do povo brasileiro, souberam, através do seu engenho literário, demonstrar estes espaços históricos, sociais, culturais, ideológicos, étnicos, de forma diferenciada, como: Aluísio Azevedo, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Adonias Filho, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa e mais tantos outros. Estes escritores demonstram em suas obras um conhecimento íntimo e pleno do seu povo, não como um saber frio e científico, mas como um saber sensível e artístico, essencial à inspiração. Diríamos melhor: cada um deles é o próprio povo brasileiro.

Silviano Santiago, no seu Vale Quanto Pesa, comenta os primeiros textos que foram escritos para configurar “terra” e “homem” brasileiros. Para ele, estes textos escritos por portugueses, descrevendo ou ficcionalizando o território brasileiro e os seus habitantes (ou personagens), apesar de trazerem “violentas informações etnocêntricas” ou “eurocêntricas”, são considerados uma espécie de “farol”, por serem vistos como luzes que serviram para clarear os valores sociais, políticos e econômicos do País.

“O interesse direto que estes textos manifestam não é pelos habitantes que se transplantavam para cá, trazendo cargos, dinheiro e obediência irrestrita à Coroa Portuguesa, mas antes pelos que, adotando a nova pátria ou já nascidos nela, procuravam definir a si mesmos e à região em gestos de independência (relativa, é claro) com relação à Europa. O fim óbvio dos textos era apresentar o país como Nação e o súdito como independente. Ou por serem filhos adotivos, ou por serem filhos de terra desconhecida, se sentiam os brasileiros sem estatuto socioeconômico definido, em situação amorfa e negativa, portanto. Tudo isso propiciava aos que empunhavam a pena abordar os problemas da identidade, da liderança e da hierarquia”.[3]
Esses documentos serviram, portanto, para definir ou estabelecer o início de uma história sociocultural para a gente brasileira, cuja identidade se constituía numa incógnita.
Revisitemos, porém, a história no seu início.

Em direta concordância com as ideias de Silviano Santiago, já afirmava David Salles que os primeiros textos que descreveram a região do Brasil[4] e os seus habitantes são de origem portuguesa, sendo o primeiro destes a Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual os valores verdadeiramente indígenas, ao invés de serem destacados, são recalcados. Daí a ideia de serem os primeiros habitantes do Brasil considerados como “tábula rasa” ou “papel em branco”, onde se poderiam imprimir todos os desejos de crenças e costumes do europeu.

Por isso, para que se formasse o que hoje chamamos de identidade nacional, foi preciso dedicar esforços, tanto no sentido de “lembrar” (traços da nossa identidade destacados através da valorização de uma paisagem local) quanto no sentido de “esquecer” (qualquer referência que remetesse a uma herança cultural colonialista).

Recordando o que interessasse ser recordado e apagando da memória aquilo que não contribuísse para uma história gloriosa, fomos, num conhecido jogo dialético, tentando construir o esboço de uma tradição pré-romântica que assegurasse uma confiabilidade aos intelectuais brasileiros dos períodos subsequentes, o que significava um tipo de invenção retroativa da literatura brasileira, como quis Antônio Cândido.

Esses aspectos fizeram parte da construção de um processo histórico de onde emergiriam o sentimento nacionalista, de um lado, e a primeira figura representativa da nossa cultura, sob forma de herói nacional, o índio, do outro.

Todavia, marcados pelas trágicas lembranças da colonização, um povo e a sua cultura seguiam seu caminho sem conseguir, ao tempo em que o percorria, delineá-lo, ao menos no sentido de uma independência cultural ou de uma liberdade de expressão que lhe permitisse contar a sua própria história. Por conta deste estado de total falta de autonomia é que tantos autores ao longo deste período, o do Romantismo, se mantiveram em posições vacilantes, ora tentando destacar os valores ou as cores locais, ora se desviando totalmente para a cultura do colonizador, quase sempre em favor de uma tentativa utópica de conciliação de culturas.

Nessa busca de um lugar sob o sol da civilização ocidental, regida pelas nações cultural e economicamente independentes, a vida literária brasileira teve, no Romantismo, alguns intelectuais que tomaram para si o propósito de “fundação” desta identidade, dentre os quais um de maior destaque se fez indelével em nossa história: José de Alencar. Para Araripe Júnior, Alencar “adivinhou”, como bom charadista que reconhecidamente foi, um passado para a nação brasileira.

A propósito disto, retomemos neste ponto o título deste capítulo com o intuito de esclarecer o seu valoroso empréstimo ao texto de Elvya Pereira intitulado Piguara: Alencar e a invenção do Brasil sobre o importante papel do autor de O Guarani no processo de construção identitária nacional. Neste texto, o polêmico escritor, crítico e teórico das nossas letras românticas, é chamado de piguara, vocábulo indígena que significa “guia”, “senhor dos caminhos”, de onde podemos concluir os motivos da utilização de tal termo. É a própria autora quem diz sobre o escritor romântico:

“É incontestável o caráter programático de sua obra, sobretudo a vertente indianista, na qual ele avança investido de sua condição de piguara, senhor dos caminhos de uma literatura nacionalista estreitamente vinculada a um projeto cultural de nação emergente”.[5]

Assim, para Elvya Pereira, “Alencar vai definir o seu projeto literário nacionalista tendo como pressuposto básico “a invenção do passado”. [...] Contrapondo um estado de natureza inspirado, no nível da fábula pela mitologia do povo da floresta, mas inevitavelmente conduzido, no nível do discurso, pela ideologia do colonizador”.[6]

Neste projeto literário do escritor romântico é criado nosso maior representante, eleito herói das nossas selvas e da nossa cultura (apesar das adaptações sofridas para que pudesse se transformar em herói), importante elemento fundador da identidade nacional: o índio, protagonizado nas personagens emblemáticas de Peri, Iracema e Ubirajara, expostos aqui na ordem cronológica das suas criações.

A partir do cruzamento deste representante primeiro da nossa gente, cantado e ilustrado em páginas lendárias pertencentes ao seu veio indianista, com o elemento europeu, o branco, Alencar propõe a criação de uma raça, de uma nação essencialmente brasileira.
Para a ensaísta Lúcia Helena, Alencar cria o novo “cidadão” que, primeiramente ficcionalizado na imagem do índio Peri, representa os “sobreviventes das águas turvas das revoluções identitárias” incumbidos de construir o futuro da nova nação:

“Suas obras, que surpreendem pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a memória do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no século XIX.

A colônia em que se era o outro, dera lugar ao país que não sabia o que era. Entre esses dois momentos, gente nascera, trabalhara e morrera, com um mal estar semelhante a uma doença crônica”.[7]

Este estado doentio de que fala Lúcia Helena faz referência ao mal-estar e à melancolia de que são acometidos muitos personagens alencarianos, pela dificuldade de inserção no processo de construção de uma cultura estabelecida, representando, com isso, a angústia do homem romântico.

Em História e Literatura (1999), o escritor Flávio Loureiro Chaves refere-se ao projeto de aquisição da identidade nacional empreendido por Alencar como uma busca de um modelo de herói para a sua pátria. Para ele, através deste modelo o escritor romântico vai destacar não somente no índio, mas no mestiço, no sertanejo, no gaúcho ou no bandeirante, “o novo homem surgido na América cujos atributos essenciais serão a força, a beleza, a coragem, a nobreza, fundidos enfim na solda moral proporcionada pela ‘consciência da liberdade’”.[8]

Alencar buscava nestas formas um diferencial para esse homem, que pudesse imprimir definitivamente uma marca peculiar para o povo brasileiro.

Para Loureiro, “a súmula do projeto identitário formulado na segunda metade do século XIX” se dá na fase intelectual mais madura de José de Alencar, quando publica Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, por estarem juntas, nesta etapa da sua obra, política e literatura. Para uma complementação do mito, Alencar reuniu história e literatura no terreno da ficção. Se, antes, já havia desenhado a nossa literatura, Alencar o fez depois com a história e estaria por último acrescentando aspectos da vida política do nosso país concluindo assim o seu projeto[9]. Com isso, o autor aponta O Gaúcho (1870) como o ponto culminante da instauração de uma tradição e de um tipo que fosse ao mesmo tempo brasileiro e americano, regional e nacional, numa relação de complementaridade necessária ao projeto alencariano.

Entretanto, a criação ficcional não foi a única empreitada a qual se propôs o representante maior do nosso romantismo. Também crítica e teoria literárias produzidas por Alencar foram matérias de discussões e polêmicas conhecidas, travadas com diversos intelectuais, a exemplo das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios[10] (1856), nas quais se contrapõe às ideias de Gonçalves de Magalhães. Mais outros dois textos também polêmicos: “Benção Paterna”[11] e Os Sonhos D’ouro[12], foram escritos como sínteses teóricas da literatura e da crítica brasileira daquele período. Nestes últimos, o autor vai-se ocupar do tema da nacionalidade brasileira, além de traçar uma autodefesa às críticas da época. Assim, para Elvya Pereira:

“O eixo central dessa crítica de Alencar movimenta sempre elementos que, argumentava ele, deveriam caracterizar a cultura e a literatura brasileiras, como a questão da liberdade linguística do português falado no Brasil, a temática indianista e o sentimento da natureza como a emanadora da própria ideia de nacionalidade. Também na crítica e na teoria literárias, Alencar proclamava-se um piguara”.[13]

Escritor, crítico e teórico se fundem em Alencar com o único propósito de gerar a nação brasileira, escrevendo sob o pretexto de lenda, de mito ou de fábula aquilo que acreditava poder representar a história da sua própria gente.

Pudemos, então, perceber até aqui que o projeto nacionalista de Alencar não comportava nem o negro como elemento constituinte na formação da nação brasileira, nem o problema da escravidão que dizia respeito a este. Ao menos nas obras de maior relevância do escritor, a preocupação com a contextualização destes não chega a ser significativa, deixando transparecer uma postura às vezes contraditória em algumas questões, a exemplo do romance O Tronco do Ipê, de 1871. Também no teatro, ensaia aqui e ali alguns papéis para o negro, mas nenhum que tivesse a relevância dada ao indígena brasileiro, não permitindo, assim, que este protagonizasse a cena romanesca ou representasse alguma parcela da identidade nacional.

Embora já tivesse aparição conhecida na criação do cenário nacional brasileiro em diversos outros espaços, somente temos uma inserção da figura do negro como herói e representante de nossa cultura, de forma mais definida e definitiva, na vertente que se chamou de “regionalismo nordestino”. Nas páginas de escritores como Jorge Amado, para tomar como referência um regionalismo geograficamente mais determinado, o negro pôde, enfim, ser visto como um verdadeiro modelo de força, virilidade e sensualidade, que traduz de uma forma quase encantada os traços do homem brasileiro.

Assim como Alencar, o escritor baiano, em boa parte da sua produção, toma para si a responsabilidade de fundador de uma identidade nacional complementando o que seria a tríade formadora da nossa identidade. Estaria, então, definitivamente assegurado um espaço para o negro no imaginário do povo brasileiro.

Tendo sido este último um elemento considerado inferior pelas correntes ideológicas evolucionistas e deterministas da nossa cultura, o que é sabido de todos, esteve o negro fadado muito tempo ao total esquecimento na literatura. Entretanto a atração por esta que é uma das mais fortes matrizes da alma e da cultura brasileira, a raça negra, fez com que o escritor baiano, este “amigo dos homens”, como quis chamá-lo o ensaísta alemão Günter Lorenz[14], se voltasse de forma tão apaixonada para a descrição viva e realística da cultura, da religião e dos costumes deste povo, paradoxalmente tão alegre e oprimido.

A prática da religião negra ou do culto afro-brasileiro foi durante muito tempo submetida à repressão e à perseguição pela nossa sociedade, assim como pela polícia, que invadia os terreiros de Candomblé sob o pretexto de limpar a cidade com a coibição de tal crença. Jorge Amado, como deputado pelo Partido Comunista, conseguiu através de um projeto de lei, em 1946, a legalização deste culto, do qual então passou a ser também frequentador, podendo com isso, segundo o próprio escritor, acompanhar de perto as atrocidades cometidas contra o povo negro. Foi legalizada, assim, a liberdade religiosa no Brasil.

Em Jubiabá (1935), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os Pastores da Noite (1964), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Tenda dos Milagres (1969) e em tantos outros seus romances, as cenas da crença afro-brasileira são recriadas em passagens descritas com emoção e realidade pelo escritor, a exemplo de Dona Flor assistindo a negra Andreza de Oxum, empunhando o estandarte da rainha das águas, dançar “um passo deslumbrante” ou em Os Pastores da Noite em que o padrinho do filho de Massu e Benedita, Felício, é o próprio Ogun.

Nas descrições dos seus pretos, Amado não poupava generosidade. Estes são, na maior parte, fortes, espertos, camaradas, centenários e estão sempre a exibir um “riso alvar”, “com seus dentes brancos, magníficos” como os de Honório, de Cacau (1933).

O crítico e ensaísta Cid Seixas, em seu texto produzido pela passagem do aniversário de oitenta anos do escritor Jorge Amado, nos dá um depoimento dessa exaltação do povo negro, percebida no seu universo ficcional, apresentando em medida exata a dimensão desse herói:

“Ao contar os feitos da gente do povo, especialmente do negro, Amado é generoso e pródigo em exaltação. O dominado, quer pelas antigas leis da escravidão, quer pelas modernas leis do liberalismo econômico, é herói incondicional, numa inversão violenta da perspectiva da tradição literária. [...] Como na velha Cidade da Bahia, o homem do povo se confunde com o negro e o mestiço, este, como suas crenças, seus valores, sua cultura, portanto, é o herói permanente da gesta amadiana”.[15]

Na visão de Antonio Candido, embora haja uma deformação inevitável na forma de descrição e poetização dos sentimentos e emoções do negro ao serem estes narrados por um homem de outra cor, “Jorge Amado trouxe os negros da Bahia para a arte e deu existência estética, isto é, permanente à sua humanidade. Arte é estilo, e estilo é convenção”.[16]

A este representante da literatura brasileira podemos atribuir, a partir disso, grande contribuição para a formação daquele “cidadão” ao qual se referia Lúcia Helena em ensaio aqui citado. Jorge Amado é, por sua vez, também um contador de histórias de sua gente, do povo baiano e, em maior projeção, do povo brasileiro. De outras histórias, é certo, situadas num outro espaço, num espaço povoado pelos mais diversos tipos humanos ou sociais, mas que certamente teve como intenção maior a representação de uma cultura que, mesmo tendo atravessado mais alguns séculos desde o seu nascimento, ainda se encontra em estágio de cognição da sua verdadeira identidade.

Por isso tomamos de empréstimo o termo piguara para tentar designar mais um dos maiores “guias” que já se revelaram em nossas letras: Jorge Amado.

Este representante maior do povo baiano e brasileiro ocupou, não à toa, na Academia Brasileira, a cadeira de nº 23, fundada por Machado de Assis, cujo patrono foi José de Alencar, para a qual a academia o elegeu, por ser Alencar seu legítimo antecessor e também, de certo modo, paradigma na fundação da nacionalidade brasileira. Ambos, Alencar e Amado, cada um a seu tempo, séculos XIX e XX, expressaram com imensa propriedade a vontade de “ser” nação da nossa gente brasileira. É o próprio criador de Gabriela quem diz sobre Alencar e a sua relação com o povo brasileiro:

“Alencar é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, de verdes mares bravios de nossa terra natal, excessiva e deslumbrante”.[17]

E, a respeito da crítica a Alencar, diz ainda:

“Que importa a Alencar o persistente silêncio de nossos ensaístas e de nossos críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar esta conspiração do silêncio, se suas edições crescem e multiplicam-se com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, lenda e carnaval e habitam para sempre nossos corações?”[18]

Há que se observar nessa defesa a Alencar uma auto referência do escritor baiano, que, ao sustentar assumidamente o seu desafeto com a crítica literária, defende mais a si mesmo que ao outro das maledicências sofridas em determinadas épocas da sua carreira de escritor através deste disfarçado espelhamento.

Sendo assim, podemos dizer que a fusão desses discursos fundadores da nossa cultura estava traçada desde o início. Mas o tempo teria que fazer o seu papel. Hoje, no alvorecer deste século, embalado pelos ruídos produzidos por essa avalanche dos estudos culturais, percebe-se com mais clareza a importância desses escritores-desbravadores da nossa história.

Nas suas descrições fabulosas e encantadas que povoarão para sempre o imaginário do povo brasileiro, passeiam índios, negros e brancos, seres de todas as cores e formas, caricaturas e beldades, com as suas manhas, manias e sabedorias que, de forma também encantada, deram à luz a figura de Macunaíma (alegoria da impossibilidade de tipificação do “ser” nacional), nem preto, nem branco, nem índio, nem nada...

Simplesmente o herói da nossa gente.

“Tem mais não”.



REFERÊNCIAS

[1] SALLES, David. Romance e Regionalismo na saga do cacau. Tese de doutoramento apresentada a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1982 , p..25.
[2] FILHO, Adonias. O nosso reino. In: NETO, Euclides (Org.). Novos contos da região cacaueira. Brasília: Horizonte Editora Ltda; Itabuna: PACCE, 1987. p. 05.
[3] SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.89.
[4] A expressão região foi utilizada nas primeiras descrições da nossa terra pelos cronistas europeus e é retomada por David Salles e por Silviano Santiago.
[5] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil. Feira de Santana: UEFS, 2002. p. 33.
[6] Ibidem. p.34.
[7] HELENA, Lúcia. Identidades em curso: José de Alencar e a hipótese Brasil. Légua & Meia – Revista de literatura e diversidade cultural, Feira de Santana, UEFS, . v. 1, 2001/2002. p. 11.
[8] CHAVES, F. Loureiro. História e Literatura. 3. ed. ampl. Porto Alegre: Editora universidade/ UFRGS, 1999. p. 17.
[9] Ibidem. p. 15.
[10]ALENCAR, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. In: CASTELLO, J. Aderaldo. A Polêmica sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953.
[11] ALENCAR, José de. Benção Paterna. In: Os Sonhos D’Ouro. São Paulo: Ática, 1981.
[12] Idem. op. cit.
[13] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil, op. Cit., p.37-38.
[14] SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBE, 1996.
[15] SEIXAS, Cid. O sumiço da santa: síntese do romance urbano de Jorge Amado. In: Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBA, 1996. p. 92.
[16] CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In.: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 52.
[17] AMADO, Jorge. Conversations avec Alice Rillard. Paris: Gallimard, 1990, apud BENÏCIO, Itazil. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 74.
[18] Ibidem. p.74.




Professora Doutora Itana Nunes.
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Guido Guerra: fragmentos


DO JORNALISMO À CRIAÇÃO LITERÁRIA


por Cid Seixas


Auto-Retrato, antologia idealizada por James Amado, que tive o prazer de editar, em 2003, é um livro que se escreveu a muitas mãos e há muitos anos; ou melhor, ao longo dos anos. As mãos do escritor maduro e com seguro domínio dos seus instrumentos de trabalho, reunindo os textos que compõem esse livro de retalhos, ao completar sessenta anos, não são as mesmas mãos do incipiente cronista que, nos anos sessenta, verteu pelas páginas do velho Diário de Notícias golfadas de mel e de fel, às vezes misturadas numa mesma taça. São outras também, diversas das do cronista de Na casa do sem jeito, as mãos que escreveram O último salão grená e aquelas outras, definitivamente seguras, que traçaram as linhas precisas de Vila Nova da Rainha Doida.


Esse livro é, mais do que um painel, uma espiral. Ascendendo, depois de muitas voltas, idas e vindas, até achar o caminho mais simples e mais próximo da chegada: a maturidade.

Nascido a 19 janeiro de 1943, na cidade de Santa Luz, região sisaleira da Bahia, Guido Guerra viveu boa parte da infância e da adolescência (1947-1958) em Senhor do Bonfim, onde o seu pai, o futuro desembargador Adolfo Leitão Guerra, foi Juiz de Direito.

Em Salvador estudou no Ginásio Ipiranga, no Colégio de Aplicação da UFBA e, finalmente, no Colégio da Bahia (Central), onde começou a fazer o curso Clássico, que não chegou a concluir.
As redações de jornal foram responsáveis pela sua formação posterior. Mesmo sem curso universitário obteve o registro de Jornalista Profissional, após os muitos anos de aprendizado. Nesse ponto, sua trajetória foi idêntica a de muitos escritores brasileiros tanto do século XIX quanto do século XX, cuja escola superior foi o trabalho diário com a palavra escrita no calor da hora e na apressada contingência do jornal. Machado de Assis, Graciliano Ramos, ou o baiano Herberto Sales são apenas exemplos.

Ainda estudante no Central, começou o aprendizado no Jornal da Bahia, em 1961, recém-fundado diário que teve em seus quadros intelectuais como João Carlos Teixeira Gomes, Florisvaldo Mattos, Glauber Rocha, Ariovaldo Matos, David Salles, Paulo Gil Soares e outros. Pouco depois, por volta de 1962, transferiu-se para o Diário de Notícias, onde foi repórter e logo em seguida começou a assinar uma coluna.

Sobre os anos de atuação de Guido Guerra no velho DN, Jorge Amado deixou algumas páginas registradas no livro de memórias Navegação de Cabotagem que bem revelam o perfil combativo do jornalista e do futuro escritor. Em 1972, o jornalista responde pela primeira vez a um inquérito na Polícia Federal, órgão civil responsável pela censura e pela repressão aos adversários do regime militar implantado em 1964 e que, poucos anos depois, se caracterizaria como uma longa ditadura de direita, a serviço da política imperialista dos Estados Unidos, hoje plenamente hegemônica. A essa acusação de subversão, seguiram-se muitas outras. Guido Guerra respondeu a 17 inquéritos e interpelações do regime ditatorial. Algumas vezes foi afastado do jornal, para voltar em seguida e tornar a ser afastado, enquanto durou a censura e a presença dos oficiais militares nas redações dos jornais.
Em 1963, escreveu no semanário Folha da Bahia, jornal de esquerda empastelado pelo golpe militar de 64, cuja redação funcionava na sede do Partido Socialista Brasileiro, congregando militantes do clandestino Partido Comunista. 

Em seguida passou a colaborar com o Jornal IC, dirigido por Ariovaldo Matos e José Gorender, ambos anteriormente ligados à Folha da Bahia. A partir de 1977 retorna ao Jornal da Bahia, onde assina a coluna “Nariz de Cera”, transferindo-se em seguida para a Tribuna da Bahia, como redator principal da seção “Roda Viva”. Nos anos 80 torna-se editorialista e colunista do Jornal da Bahia, funções que deixa para assinar uma prestigiada coluna no recém-fundado Bahia Hoje, de vida curta.


O retorno ao conto
e a plenitude do escritor

Nos últimos vinte anos, Guido Guerra construiu seu espaço no quadro do romance brasileiro com livros como O último salão grená, Lili Passeata, Quatro estrelas no pijama e Percegonho Céu Azul do Sol Poente, todos publicados ou reeditados pela Record.

Jornalista por formação, começou pela narrativa curta, pela história feita para ser lida de uma só fôlego. História que reunia a agilidade da reportagem e o humor circunstancial da crônica. Depois, ele descobriu que precisava do tempo e do espaço romanescos para conferir densidade aos seus personagens, muitos deles nascidos do texto perecível de jornal.

Chegando ao romance, Guerra apurou sua artilharia narrativa e amadureceu como escritor. Vila Nova da Rainha Doida é o retorno ao campo de batalha da história curta. Nesse livro ele realiza alguns contos exemplares, capazes de permanecer na mente do leitor engendrando outras palavras. Palavras ditas do interior de cada um de nós quando tecemos o fio de ligação entre o destino dos seus personagens e o nosso cotidiano de leitores.

O mundo rural, as pequenas cidades do interior, tomadas como metáforas confortáveis da sociedade global, constituem o território mais luminoso da narrativa de Guido Guerra. As histórias transcorridas nesse mundo emblemático são as mais fascinantes, a exemplo daquelas passadas em Mirante dos Aflitos, cidade do Coronel Duarte e do seu fiel escudeiro Tibério Boa Morte.

Nesse espaço denso e trágico o ficcionista pode alcançar seus melhores relatos, transpondo para o domínio distante das ficções do interior, a opressão e a injustiça que caracterizam a reluzente miséria do neoliberalismo econômico.

Sem fazer apologia dos deserdados e sem nostalgia do engajamento dos anos sessenta, o texto desse escritor dispara certeiro e objetivo, guardando nos cofres do faz de conta os tesouros da solidariedade e da denúncia mais consequentes.

A força da tragédia banal dos homens simples é, às vezes, arrefecida pela busca do humor. Em meio ao desapontamento do narrador e do leitor diante das impassíveis engrenagens da máquina do mundo, Guido Guerra recorre ao humor de conformação um tanto irônica e cáustica, quebrando a tensão da narrativa. Mas os melhores momentos são aqueles em que ele enfrenta o destino das suas criaturas de papel, deixando que elas representem a rede da vida. Deixando que elas encenem o gesto falido ou o ensaio mambembe desse drama, cujo roteiro todos gostaríamos de reescrever. Mas esse drama não se passa num palco mas nas ruas do nosso tempo, onde o riso desconcertado toma o lugar que poderia ser ocupado por um soco no vazio – pelo impassível fluir do trágico.


Convergências:
jornalismo e literatura

Além dos laços de amizade, que se ataram há mais de trinta anos, um outro longo laço me liga ao escritor Guido Guerra: o jornalismo, como ponto de partida, como escola da vida e da arte.

Quando eu ainda era um inexperiente colegial e aprendiz numa redação de jornal, Guido Guerra, embora jovem, era um jornalista experiente, respeitado e, sobretudo, temido. Respeitado, por nós, que começamos a seguir o caminho que ele sabia andar com admirável desembaraço. Convém lembrar que aos dezenove anos Guido já assinava a sua própria coluna, quando habitualmente todos levávamos alguns anos na condição de anônimos repórteres.

Sua inquietação, sua ousadia e, principalmente, seu talento abriram os caminhos do jornalismo para Guido Guerra. Mas, se para nós, seus colegas, ele era querido e respeitado, para os outros, os que não privavam da sua estima, ele não era objeto do mesmo sentimento. Era temido. Como eram temidos os ventos encanados, as mordidas de cobra, as assombrações e, principalmente, as más línguas.

Este homem cordial de agora, cuja maturidade deu relevo às qualidades socialmente admiradas, era um gauche, um daqueles a quem um anjo torto disse: vai, Guido, ser Guerra na vida.

E ele foi. Foi o Papagaio Devasso, foi o Língua de Trapo, foi o irreverente guardião dos maus costumes.

Jorge Amado, quando precisava de um personagem para demolir a ordem e os bons costumes, tirava das ruas, das redações de jornal, um sujeito que tinha como predicados ser magro, narigudo, fraco, mas abusado como o capeta chupando chupeta: Guido Guerra. Eis que pulava para as páginas do romance de Amado o então pouco amado homem de guerra, o aguerrido. E assim aparecia, em muitos textos do conhecido contador de histórias da nossa gente, a cara e o nome do Língua de Trapo.

Assim ele se fez conhecido.

Mas não foi assim que ele permaneceu. O tempo poliu a pedra bruta, a brita. As águas de muitos rios lavaram a língua, o trapo. E surgiu, reluzente, a luz do trabalho, da seriedade, do talento. Surgiu assim o escritor Guido Guerra.
Se nos primeiros livros, o jornalista tentava dar ares de ficção a uma reportagem única e recorrente: os fatos do seu mundo interior; em contrapartida, nos últimos livros, o jornalista – o artesão da escrita – se fez artista, se fez escritor.

Mas esse foi um longo caminho. Primeiro foram cometidos os indefectíveis poemas da mocidade. Os lacrimosos poemas de amor que todos nós, um dia, escrevemos. Nome da assombração, ou do livro de Guido que não se materializou:Encarnação do amor.

Desencarnado continuou esse livro até hoje, inédito, de cujo pecado Guido nunca se confessou. Folheando um velho livro é que eu soube que o nosso autor também cometeu o inocente “pecado” da poesia. Depois desses manuscritos inéditos, dessa poesia amorosa não confessada, vieram os contos de Dura realidade, publicados em 1965 pela Editora Progresso; a celebre editora de Pinto de Aguiar, que foi responsável por um raro momento de franca atividade intelectual na Bahia.
A Progresso foi uma editora baiana com dimensão e prestígio nacionais, que refletia um instante privilegiado das nossas atividades, do nosso mundo cultural.

Um instante em que a cultura baiana existia perante a nação, do ponto de vista da criatividade dos intelectuais e da resposta das instituições, e também do poder público. Um instante que, nos dias mais recentes, foi substituído pela falta de editoras e pela falta de políticas culturais conseqüentes. Mas naquela época de afirmação o paralisante momento não tinha começado ainda. Quando Guido publicou Dura realidade nós não tínhamos caído no conto do real. Uma geração ainda não havia constatado que o sonho acabou. A Bahia vivia os resultados dos anos de Edgard Santos, de uma Universidade atuante, viva, da Editora Progresso e de tanta coisa mais. Foi nesse clima propício à euforia que se deu a estréia em livro de Guido Guerra. Tendo publicado seu primeiro livro em 1965, ele estará comemorando em breve (2005) quarenta anos de literatura. Mas por agora, são sessenta anos de vida.

Com esforço, trabalho e confiança na escrita, o jovem jornalista de ontem, o rebelde sem causa, encontrou o seu caminho, a sua causa: a casa da palavra.

Quando os personagens do Guido Guerra dos anos setenta falavam era uma voz uníssona que dizia o seu sentimento. Somente anos depois veio a despersonalização, o dialogismo, a presença de vários sujeitos, verossímeis, verdadeiros, independentes do seu criador.

Anos depois, não mais uma voz uníssona dizia o seu sentimento, o pessoal e o intransferível; mas várias vozes de vários personagens diziam o sentimento do mundo, o impessoal, o transferível a todos nós, a toda voz. Várias vozes diziam que surgia um escritor.

Somente anos depois ele sairia da casa do sem jeito para o céu azul do sol poente, onde Dr. Salu anunciava as santas aparições da luz, da terra, do ficcionista Guido Guerra. Não mais o Papagaio Devasso, não mais o Língua de Trapo, mas o escritor, o criador de mundos e de criaturas. Aquele que aprendeu, através do diálogo bem tecido, da voz do outro, a dar voz a si mesmo.

As angústias, as inquietações do adolescente rebelde que antes explodiam em confissões pessoais e intransferíveis, finalmente foram postas à margem de si mesmo e diante do outro. Quando passou a falar não mais por si, mas pelo outro, por todos nós.

Por tudo isso, pelo talento, ou melhor, pelo trabalho, construiu-se o artista, o escritor. E um escritor não nasce do nada, ele nasce de um esforço, de uma determinação, de uma consciência construtiva.

Assim se fez o escritor Guido Guerra, presente de corpo inteiro nesse Auto-Retrato revelado a muitas mãos, nos seus sessenta anos.

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(Reunião de fragmentos de textos de Cid Seixas sobre Guido Guerra, por ocasião da publicação do livro Auto-retrato.)


Simbolismo e Cia.

A POESIA ‘FAMILIAR’
DE EMÍLIA LEITÃO GUERRA

por Cid Seixas

Neste limiar do século XX para o XXI, os estudos de gênero têm deixado um saldo positivo: a audiência de vozes femininas – antes perdidas no silêncio de velhos papéis – agora resgatadas pelo interesse em compreender o lugar da mulher no processo de construção da sociedade. Na Bahia, escritoras do século XIX e do início do século que ora se finda têm frequentado antologias e estudos acadêmicos.

Paralelo a este resgate e, talvez, influenciado por ele, o escritor Guido Guerra, folheando o álbum de família, selecionou alguns poemas da avó paterna, Emília Leitão Guerra, poeta baiana nascida em Pernambuco, no dia 18 de novembro de 1883.

Os sonetos e outras formas adotadas por Emília Leitão Guerra testemunham a conveniência de permitir a novos leitores o conhecimento de uma autora cujo universo poético ultrapassa as lembranças familiares e se inscreve no vasto e heterogêneo painel da poesia de inspiração romântico-parnasiano-simbolista. A autora começa a escrever e a publicar num momento em que a modernidade literária contagiava a uns e a tradição saudosista imunizava a maioria.

São seus contemporâneos poetas simbolistas como Pethion de Vilar (1870-1924, pseudônimo literário do professor Egas Moniz Barreto de Aragão, da Faculdade de Medicina da Bahia, mais médico e menos artista), Artur de Sales (1879-1952, o cada vez mais estudado artífice do verso), Francisco Mangabeira (1879-1904, poeta pouco conhecido, apesar de respeitado pela crítica simbolista), Durval de Morais (1882-1948, vindo de Maragogipe com sua poesia cristã, chegou a ser aclamado “o maior poeta da Bahia”) e Pedro Kilkerry (1885-1917, talvez o mais aberto à identificação do Simbolismo com a modernidade), para citar apenas os nomes masculinos de maior envergadura.

As mulheres – ou como eram chamadas naqueles tempos: as senhoras – não tinham lugar nas lides literárias. Mesmo as mais envolvidas com as letras e as artes tinham espaço tão somente quando reconhecidas como paladinas do lar, título que, mesmo soando irônico aos ouvidos de hoje, pode ser tomado como epíteto ou caracterização do papel imposto à mulher até a primeira metade do século XX. Acredita-se que o fato da revista A Paladina, fundada por Amélia Rodrigues em 1910, ter ganho no título um complemento que vale como qualificativo, restritivo – passando a ser denominada A Paladina do Lar, em 1912, quando Amélia deixa o grupo –, é uma enfática expressão desse lugar, periférico e subalterno, reservado à mulher nas letras e nas artes.

Para melhor conhecer o episódio aqui referido, ver a dissertação de mestrado de Aline Paim de Oliveira: As Paladinas do Lar; escrita feminina baiana (1910-1917),Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1999; resultante de pesquisa sob a orientação de Ívia Alves.

Observe-se que as forças conservadoras da sociedade não se limitavam a reduzir o espaço de atuação da mulher, mas quando esse precário espaço ganhava visibilidade, usava-se de artifícios para apagar a sua dimensão social. É como podemos interpretar a mudança de título da revista, após a morte de Amélia Rodrigues. A paladina foi aprisionada entre as quatro paredes do lar, para que a sua subversão não construísse resultados sensíveis.

Enquanto os homens aderiam ou se opunham às publicações que representavam tendências literárias em voga, marcando uma hipotética filiação artística, a criação literária das mulheres ficava à margem do processo de inserção intelectual, reservado exclusivamente aos varões. Observe-se que na Bahia, até a segunda metade do século vinte, as vozes femininas não se faziam ouvir, mesmo nos mais ruidosos momentos de afirmação de tendências estéticas. Poemas, contos ou romances escritos por mulheres, vistos sob esta ótica, pairavam no limbo de uma categoria alheia às tendências sociais da arte, ficando restritos aos arquivos e às relações familiares. É o caso destes versos de “Relembrando”, poema que a autora dedica ao irmão Albino Leitão Guerra, professor da cadeira de Dermatologia da velha Faculdade de Medicina da Bahia:

Relembro os dias de nossa infância
Quadra bendita do alegre riso,
Essa, da vida, a fagueira instância
Que tem, das rosas, doce fragrância,
Que tem as graças do Paraíso.

Legados também aos arquivos familiares são os muitos poemas de amor, implícita ou explicitamente dedicados ao marido da poetisa. Vejamos o soneto “Por que duvidas?”:

Fizeste mal em duvidar. Acaso
Desconhecias meu afeto ardente?
Não sabes, dize, que, por ti somente,
Do amor nas chamas divinais me abraso?

A minha ternura não conhece ocaso;
A tua imagem guarda reverente.
Assim, um belo, um precioso vaso,
Guarda os caros perfumes do Oriente.

Como é pequena a tua confiança!
E eu que sempre a julguei serena e forte
Qual a que tenho em ti; Pois bem; descansa!

– Enquanto eu viva, meu amor não finda;
Acabará, quando vier a morte,
Se, após a morte, não se amar ainda.

Após a leitura de sonetos como este, presentes na obra da autora, não se pode deixar de ressaltar o ânimo ou o acendimento amoroso de uma voz que não se deixa sufocar de todo, em meio às exigências e convenções sociais predominantes. A placidez e a força de caráter, que se deixam transbordar de modo harmônico e bem resolvido nessa voz feminina, sugerem uma maturidade capaz de solucionar conflitos antigos e sempre atuais. Num momento em que a mulher continuava sendo identificada como o sexo frágil, por isso mesmo devedora de obediência e submissão ao marido; força, determinação e placidez fazem-se presentes na expressão poética de Emília Leitão Guerra, pondo em xeque crenças estabelecidas ou impostas.

A respeito do papel subalterno reservado à mulher, José de Alencar escreveu um dos mais admiráveis romances, Senhora, construindo uma personagem que, através da afirmação econômica, valor maior da consciência burguesa, consegue inverter a posição das pedras de um sólido e imutável tabuleiro. Mas a independência econômica da mulher, vislumbrada pelo autor como mecanismo capaz de abalar a dominação do macho, ainda estava muito longe de se tornar uma consequência da vida social, transformando Aurélia numa espécie exótica e confinada ao território das ficções cotidianas...

Somente muito recentemente, nas sociedades economicamente mais liberais e desenvolvidas, as mulheres assumiram o papel de sujeito e agente de mudanças. Com a ascensão de algumas delas a cargos de relevo em grandes empresas, nos Estados Unidos, ou na condução do país, na Inglaterra, o que parecia ficção romântica no livro de José de Alencar passou a ser um fato visível e palpável.

Anteriormente, lembre-se, as viúvas de ricos homens, matriarcas incontestes, sempre afirmaram sua vontade sobre os varões da família e do lugar, sem que isso abalasse a crença no poder de mando inerente ao homem. Aceitar a hipótese descortinada no romance de Alencar seria uma forma de antecipar a possível decifração do enigma e decompor a esfinge.

Quebrada a tradição do impasse, que papel restaria aos machistas e às feministas? Homem e mulher dialogariam em igualdade de condições, desaparecendo o antagonismo. Deslocando ou desacreditando a questão econômica como fator condicionante, no mundo moderno (que tomou o lugar da força bruta, no mundo antigo), impõe-se a divisão de gênero como divisão de espécies conflitantes. O homem será sempre o lobo da mulher que, devorando-o como o cordeiro, será sempre a loba da matilha. Transformados em espécies conflitantes, o homem se uniria ao homem, como fazem os machistas nas suas reuniões entre pares; e as mulheres se uniriam às mulheres, como pede o paladar feminista. Mas o rei não pode estar nu. É preciso ver uma veste.

Como então situar, para o leitor contemporâneo, a poesia de Emília Leitão Guerra? Parnasiana, simbolista, neorromântica? Os autores desse momento são caracterizados menos pela natureza do seu texto poético e mais pelos laços de camaradagem intelectual com os grupos e revistas literárias. Se na França, de onde nos veio o modelo, o Simbolismo foi um marco de modernidade literária, ou uma espécie de saída estética para o pensamento decadentista; no Brasil, o Simbolismo pode ser compreendido como um rótulo para diversas tendências pós-românticas. Em cada estado brasileiro, uma publicação ou um grupo enfeixava sua produção sob o guarda-chuva de uma escola que, segundo Massaud Moisés, foi mais ligada à estética literária do que às transformações culturais e históricas. (Ver O Simbolismo. Volume III, de MoisésHistória da literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 7.)

O ideal da arte pela arte encontra plena realização nesse momento, quando o compromisso do fazer artístico com a realidade é substituído pelo compromisso único com o prazer proporcionado pelo desvendamento de símbolos e imagens que, antes de constituírem, apenas substituem o objeto.

Tal espécie de toalete literária pretendia apenas vestir e maquiar a realidade, dar a ela uma face mais jovem e faceira – encobrindo as dobras da pele. Creio que foi essa possível vertente aberta pelo Simbolismo a que mais encontrou adeptos, transformando a palavra (“simbolismo”) em mero rótulo para designar as mais diversas tendências pós-românticas.

O aproveitamento de experiências e conquistas formais do Parnasianismo – submetendo as caturrices da forma aos caprichos da expressão exaltada pelo espírito neorromântico e conduzida pela sutileza de imagens e símbolos – identifica a poesia de Emília Leitão Guerra com a produção de outros poetas que, nesse momento, souberam aliar a sensibilidade pessoal ao discurso das emoções interpessoais que aproximam e unem os indivíduos no espaço da poesia.

Foi Lélis Piedade quem publicou os primeiros versos da poetisa no Jornal de Notícias, de Salvador, e no periódico O Propulsor, de Feira de Santana, registrando uma fase marcada pela transição da adolescência. A passagem do século XIX para o XX marca também a maturidade poética da autora que produz em 1899 alguns dos seus melhores poemas.
Emília casou-se em 1907 com o médico Adolfo Santos Guerra que, dois anos depois, tomaria a iniciativa de fazer publicar o primeiro livro da esposa, Lírios da Juventude, impresso na Typographia Brasil, em Juiz de Fora, com prefácio do advogado e deputado federal Carlos Arthur da Silva Leitão, irmão da poetisa. Segundo Guido Guerra, esse irmão foi o responsável pela formação cultural da autora, inclusive no aprendizado de línguas estrangeiras como alemão, francês e inglês, que estão na base das suas leituras. Ainda conforme o escritor Guido Guerra, neto da autora, a obra foi saudada em artigo do poeta Ubaldo Osório Duque Estrada, noCorreio da Manhã.

O segundo e último livro, Evocações, foi publicado cinquenta anos depois do casamento de Emília, reunindo os poemas dedicados ao marido, em edição organizada, em 1957, pela professora Júlia Amélia Viana Leitão, sobrinha da poeta. Em 1964 sairia a segunda edição desse livro, com o selo da Imprensa Oficial do Estado da Bahia e introdução de Jorge Faria Góes. Já idosa e adoentada, Emília Leitão Guerra não compareceu ao lançamento, encarregando um dos seus filhos, o desembargador Adolfo Leitão Guerra, a autografar os exemplares. Dos onze filhos da poetisa, Salustino, José Martins, Emília, Adolfo e Dídia são falecidos; estando vivos Umbelina, Anísia, Cristina, Lúcia, Madalena e Júlio.

Em 1999, Lizir Arcanjo incluiu no volume intituladoMulheres escritoras na Bahia: as poetas sonetos e outros poemas publicados por Emília nos jornais em 1898, 1900, 1901 e 1903, além de alguns que figuram nos dois livros, o de 1907 e o de 1957, reeditado em 1964.

Ver o livro Mulheres escritoras: as poetas; antologia com organização e introdução de Lizir Arcanjo. Salvador, Étera, 1999, 294 p. ilustradas com fotos e fac-símiles de publicações. O volume resulta de paciente e trabalhosa pesquisa da organizadora em arquivos e bibliotecas da Bahia, de Pernambuco, e do Rio de Janeiro, revelando algumas autoras inteiramente esquecidas e encontradas nas páginas de desconhecidos periódicos publicados no século passado no interior baiano.

Emília Leitão Guerra, filha de Emília Magalhães da Silva Porto e do comerciante português e Coronel da Guarda Nacional Brasileira José Martins Leitão, morreu aos oitenta e três anos, no dia 23 de novembro de 1966, deixando, além dos livros publicados, vários poemas dispersos nos arquivos da família.
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In: Emília Leitão Guerra. Poemas escolhidos; organização e seleção de Guido Guerra; introdução de Cid Seixas. Salvador, Editora Cidade da Bahia, 2000.