As fábulas
do cotidiano
por Cid Seixas
O telefone dos mortos,
de João Carlos Teixeira Gomes, é um livro que vem reafirmar um traço distintivo
do autor: o domínio da escrita. Profissional do texto em suas múltiplas
possibilidades, ele publicou os trabalhos iniciais ao lado de outros
companheiros da chamada Geração Mapa. Com Glauber Rocha empreendeu as primeiras
aventuras literárias, nos tempos do Colégio da Bahia e, depois, da Faculdade de
Direito.
Convém
lembrar que o resultado do início de uma aventura intelectual conjunta de Joca
e Glauber permitiu ao primeiro escrever um livro que foi considerado a mais
abalizada biografia do cineasta: Glauber
Rocha, esse vulcão, recém lançado pela Nova Fronteira.
João
Ubaldo Ribeiro, outro companheiro de juventude, diz que este livro “não é
apenas o mais importante e completo já escrito sobre a obra e a vida de Glauber
Rocha. É também um extenso documento de época, baseado em pesquisa de tal modo
abrangente que o transforma em inigualável fonte de informações para os
estudiosos de nosso cinema – especialmente o Cinema Novo – e da cultura
brasileira em geral.”
Profissional
de palavra, empenhado em muitas frentes, tais como o jornalismo, a crítica
literária, o ensaísmo, João Carlos Teixeira Gomes é também um escritor
criativo. Sua aventura intelectual ganhou consistência no Jornal da Bahia, verdadeira escola de jornalismo informativo e de
jornalismo cultural, por onde passaram também Glauber Rocha, Paulo Gil Soares,
Florisvaldo Mattos, David Salles, João Ubaldo e quase todos os intelectuais
baianos desta geração.
Esta
equipe privilegiada aprendeu a reunir num mesmo contexto a objetividade,
indispensável à informação segura, e a sensibilidade, necessária para construir
sentidos paralelos ao mundo objetivo. Daí ter impulsionado dois saltos qualitativos:
a construção de um jornalismo moderno na Bahia e a formação de artistas e
escritores responsáveis por importantes vertentes da cultura brasileira.
Neste
quadro, Teixeira Gomes ocupa lugar de destaque, conforme testemunho de João
Ubaldo Ribeiro quando lembra da inquieta geração dos anos 50: “Glauber foi um
grande amigo e João Carlos Teixeira Gomes continua sendo. Aliás, quando o
conheci, ele não se apresentava com este nome grave, em redondilha de tons
lusitanos. Era apenas o Joca [...], logo respeitado como crítico literário e
poeta, e admirado como o bravo jornalista que sempre foi.”
Graças
ao domínio seguro do texto (adquirido através de imprevistos exercícios
diários, desde os tempos do Jornal da
Bahia), ao se apresentar ao público leitor como contista, Teixeira Gomes
reafirma as qualidades já manifestadas como poeta e como crítico.
O telefone dos mortos
(Nova Fronteira, 1998) dispõe vinte narrativas curtas em duas partes: “As
verazes fantasias” e “As fábulas do quotidiano”. A primeira, com onze contos,
constrói uma atmosfera absurda carregada de realismo fantástico.
O
tom opressivo das verazes fantasias cria, às vezes, um timbre monocórdico e
entediante que se quebra ao esbarrar em narrativas primorosas. O leitor que,
pela primeira vez, adentra pelos largos e sinuosos corredores desta caverna de
sonhos e pesadelos que é o mundo ficcional de João Carlos Teixeira Gomes, mesmo
atordoado pelo ar rarefeito dos subterrâneos, tem a certeza de estar pisando
num chão bem sedimentado, embora pródigo de areias e urzes fantásticas.
Na
segunda parte do livro, o tom se modifica, a intromissão opressiva das sombras
e dos fantasmas projetados pelas chamas do caldeirão de bruxo cede lugar às
insólitas fábulas do cotidiano. Mas continua perceptível a melancólica visão de
mundo sustentada pelo autor; continua presente um certo pessimismo ou um
incerto desesperar de quem pouco espera do tumultuado mundo dos homens.
“O
dia era da caça”, o último conto da primeira parte traz uma fascinante alegoria
reveladora do processo de criação literária, onde os deuses do cosmo são
rivalizados por um outro demiurgo: o criador do universo do texto. O velho
Sallábico, morto aos 84 anos por um dos seus personagens, é um arquetípico
construtor de homens de papel e tinta. Nas suas sentenças estão definidos os
destinos de homens e mulheres, a vida e a morte. O velho descobre que está em
suas mãos de condutor da narrativa o curso da vida de um mendigo ou de um rico
industrial. Como um deus perverso ele se compraz em distribuir benesses e
malefícios. Ao riscar uma sentença e escrever outra, ele destrói toda uma vida
de opulência, faz surgir uma doença mortal, um atropelo ou um acidente
qualquer.
A
segurança do ficcionista João Carlos Teixeira Gomes na construção do seu texto
e dos seus personagens revela um leitor dos clássicos brasileiros e
estrangeiros do nosso tempo. A ironia cortante de Machado de Assis é retomada e
renovada por um escrita pessoal que funde o sabor do passado com os ritmos do
presente.
Na
segunda parte de O telefone dos mortos
destacam-se, entre outros contos, “O
homem que enganou a morte” e “A morte no trapézio”, duas variações em torno do
mesmo tema que costura as páginas do livro.
A
primeira narrativa é uma espécie de reescritura moderna da impossibilidade do
homem fugir aos desígnios dos deuses. Se os heróis da tragédia grega
desenvolvem peripécias destinadas a alterar o destino revelado pelos oráculos –
e cumprem, inconscientemente, o que estava escrito –, a tentativa burlesca de
Caio Ferrão enganar a morte resulta num divertido esforço de vida. Mas as mãos
invisíveis da morte terminam escrevendo o discurso da vida e colocando o ponto
final no lugar pretendido.
“A
morte no trapézio” é uma história construída com os elementos estruturais
presentes nas narrativas que se tornaram clássicas pelo dom da permanência e da
constante atualidade. Este conto dialoga, na mente do leitor, com a doce ironia
das histórias curtas de Oscar Wilde e o relevo atribuído aos deserdados do
amor.
Para
concluir: o livro de João Carlos Teixeira Gomes é um apelo à sensibilidade e à
perspicácia do leitor que sabe usá-las. Um livro para ser lido aos poucos, com
o mesmo vagar e melancólica concentração com que foi escrito.
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As
fábulas do cotidiano. Artigo crítico sobre o livro O telefone dos mortos, de João Carlos Teixeira Gomes. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 2 mar. 98, p. 7.
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