DA MEMÓRIA
À FICÇÃO
Zélia
Gattai se firmou, no começo dos anos oitenta, como uma das mais importantes
memorialistas da nossa literatura. A escritora começou a sua carreira na
maturidade, alguns anos antes de chegar à casa dos setenta anos, quando muita
gente deixa de trabalhar e não mais se sente motivada para qualquer projeto de
longo curso. Com Zélia Gattai ocorre o contrário: toda a sua energia criativa,
cultivada durante anos, eclodiu na mais completa maturidade. Daí a aparição de
uma escritora já pronta e capaz de escolher os mais ambiciosos caminhos.
Poucos
escritores, nas letras brasileiras, despontaram com o necessário domínio do seu
ofício. Quase sempre, aprenderam nas primeiras obras a contar uma história ou a
encontrar o melhor uso das chaves da linguagem. Convivendo com o escritor Jorge
Amado, desde 1945, Zélia Gattai aproximou-se do universo dos criadores e das
suas preocupações, muito embora não incluísse a criação literária nos seus
próprios projetos. Limitava-se a registrar pedaços de experiências, ora através
do realismo de uma câmera fotográfica, ora através de artigos para jornais e
periódicos do Brasil e do exterior.
Mas,
como ela própria costuma dizer, era uma contadora de histórias para os filhos e
os amigos. Histórias vividas na sua infância que, na memória permaneciam
frescas e cheias de vida como se ainda estivessem acontecendo; que ganhavam
novo colorido na sua fala simples, direta e, não raro, cheia de encantamento.
Sendo,
portanto, uma criadora nata de “literatura oral”, Zélia Gattai registrou suas
histórias letra por letra, para que elas não se perdessem e para que fossem
contadas a mais gente. Na solidão da escrita, soube cultivar o mesmo tom de
cordialidade sedutora da fala compartilhada. Soube prender os meninos e meninas
que, mesmo crescidos, continuam gostando de entrar no mundo maravilhoso das
histórias sucedidas.
Anarquistas,
graças a Deus, Uma chapéu para viagem, Senhora dona do baile, Jardim de inverno
e Chão de meninos são bons livros de histórias guardadas na memória,
escritos em pouco mais de dez anos. Mas... quem conta um conto aumenta um ponto
– e, ao fazer com que as suas histórias saíssem do mundo volátil das palavras
faladas, onde o dito flutuava na brisa como passarinho pequeno, Zélia Gattai
encontra na palavra escrita uma maneira de fotografar o voo da ave fugidia,
para que mais gente fosse testemunha do encanto.
Então,
ela não vivia com uma máquina fotográfica na mão colhendo instantâneos que
deviam ser eternizados? Muito da sua vida, dos seus filhos e do companheiro
Amado foi guardado por Zélia, num enfoque do seu olhar. As fotos estão nos
jornais, nos livros, no álbum de família. Ao tempo em que fotografava as
imagens, Zélia contava histórias, criava outras imagens, feitas de palavras. E
devia sentir pena de não poder também revelar imagens e ideias.
Assim,
trocou a câmera por uma máquina de escrever e passou a fotografar as imagens do
seu pensamento. Na solidão da escrita, colheu instantâneos de histórias que
gostava de contar. Fez-se escritora. Contou seus contos familiares. Como quem
conta um conto aumenta um ponto, o vivido ou o presenciado pareciam mais vivos
na escrita quando refeitos, quando aumentados um ponto aqui e apagados um ponto
adiante. Assim, a memorialista transitou suavemente entre as lembranças da
memória e astúcia da ficção.
Portanto,
não causa nenhuma surpresa que o romance de estreia de Zélia Gattai, Crônica
de uma namorada, também revele uma escritora madura e capaz de produzir no
leitor o prazer do encontro com obras de ficção da melhor qualidade.
As
lembranças dos anos passados são misturadas com fatos atuais e reconstituídos
na São Paulo dos anos cin-quenta. A paisagem humana é quase a mesma dos seus
livros de memórias, podendo a narradora se movimentar com desembaraço e
familiaridade. Mas, às vezes, a memória trai, e coisas de um tempo são
transpostas para outro tempo, quebrando um pouco desastradamente a
caracterização paisagística do chamado romance de época.
Crônica
de uma namorada é narrado em primeira pessoa por uma
menina que, logo cedo, perde a mãe e encontra a ilusão do amor. Em meio ao dia
a dia da pequena órfã, peripécias familiares e historinhas paralelas compõem o
enredo deste romance que é uma canção de amor à vida. Com seus percalços e
decepções, alegrias e sonhos, os habitantes do mundo romanesco de Zélia Gattai
sabem que é bom viver e contar sem ter vergonha de ser feliz.
Para
se contrapor ao mundo do neoliberalismo, onde o sonho acabou e os homens e as
mulheres são apenas estatística, a romancista cria um mundo perdido nos anos
cinquenta. Um mundo no qual a felicidade era sempre possível e onde a miséria
de uma emigrante nordestina seria substituída por um futuro de inesperada luz.
Onde os sofrimentos e humilhações preparavam pessoas mais tolerantes e capazes
de um generoso abraço na vida. Um mundo onde o desencantado homem deste fim de
século vai buscar farrapos de cores para compor o sonho e vai buscar força para
continuar acreditando que é possível tornar real um pouco daquilo que deseja.
A
narradora-protagonista desta Crônica de uma namorada quer nos devolver a
crença nos seres humanos e a alegria das grandes coisas pequenas. Gota de
mel em taça de veneno – seriam, para muitos, os clarões de fantasia. Ou
oásis em meio aos caminhos do deserto, para outros que teimam em seguir com a
caravana.
A
ingenuidade da personagem e sua crença no amor contrastam com a luz implacável
da realidade narrada. Por isso, o livro termina numa rara apoteose de ternura e
de beleza, quando uma quase adolescente passeia de mãos dadas com seu primeiro
namorado. Num tempo em que havia portões para um beijo delicado e calçadas e
jardins para se passear de mãos dadas pelas nuvens de um sonho vivido.
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Texto
publicado da coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, do dia 18 de
setembro de 1995, sobre o romance Crônica de uma namorada, de Zélia
Gattai. Rio de Janeiro, Record, 1995, 222 páginas.