MEMÓRIAS
E
FICÇÕES
DE UM ADVOGADO
por Cid Seixas
Muitos leitores
manifestam especial interesse pelos livros de memórias e biografias. Folheando
os catálogos das editoras, ou as listas dos mais vendidos, podemos ver que a
ficção perde espaço para estes gêneros, assim como para o chamado
ensaio-reportagem.
Se a partir da primeira
metade do século a poesia deixou de ser lida, o fim de século tem sido pouco
generoso para com a prosa de ficção. Alguns editores manifestam desconfiança
pelo conto, alegando ser um gênero destinado a um pequeno público. Cabe então a
pergunta: a literatura criativa estaria em crise; distanciada do gosto do
público?
Enquanto isso,
biografias, relatos, memórias e outros gêneros ocupam cada vez mais as
estantes. Os jornalistas deixam as páginas diárias e descartáveis para
escreverem grandes reportagens em forma de livro.
Estaria o trabalho de
carpintaria da obra literária afastando o leitor, mais interessado em textos
leves, de estrutura pouco elaborada e compreensão imediata?
Qualquer resposta
interpretativa corre o risco de ser desmentida pelos fatos e acontecimentos,
que ainda definem o panorama no fim do horizonte fin-de-siècle.
* * *
Diante de tal panorama
editorial, novas biografias e memórias são publicadas. O jornalista e advogado
Arnaldo Sampaio acaba de reunir em livro as lembranças dos seus anos no Rio de
Janeiro, na década de cinquenta.
Seguindo o exemplo de
milhares de jovens, ele também pegou o seu Ita, que vinha do Norte, e foi morar
no Rio. Um rapaz que concluía o curso de colégio e se preparava para entrar na
Faculdade de Direito foi procurar trabalho na Grande Capital. Lá,
foi boy numa redação de jornal, estudante de direito, repórter,
advogado, enfim, construiu uma vida como tantos migrantes da esperança.
Mas Arnaldo Sampaio
escreveu as suas memórias vestindo as roupas da ficção. A trama narrativa
começa às cinco horas de uma tarde de outono, no centro do Rio de Janeiro. Um
advogado criminalista assiste à morte de um velho colega, atropelado no meio da
rua. Ao socorrer o conhecido dos corredores da justiça, recebe uma incumbência,
como último pedido do homem à beira da morte: publicar as suas memórias.
O texto que lemos é, na
verdade da ficção, um livro inédito que foi deixado pelo velho Dr. Magalhães.
Seu colega Arnaldo Sampaio limita-se a editar os originais de uma narrativa em
primeira pessoa deixada por um certo (ou incerto) jornalista e advogado baiano,
morto no Rio de Janeiro.
Assim, as histórias se
confundem: as memórias de Arnaldo Sampaio e as ficções do seu protagonista. É
este personagem central que nos conta as previsões de um quiromante, feitas
ainda na Bahia. O adivinho leu nas mãos do jovem Magalhães, então balconista de
uma livraria de Salvador, as linhas de uma viagem e de dois acidentes. Dr.
Magalhães recorda de como se mudou para o Rio de Janeiro e de como um acidente
mudou a sua vida, conforme predisse o quiromante. Sobre o último e definitivo
acidente, nada é revelado. Mas nós, os leitores, já o conhecíamos, das
primeiras páginas do livro, quando o manuscrito é confiado a Sampaio.
O que lemos no livro de
Arnaldo Sampaio é, portanto, o livro do seu personagem, o velho advogado baiano
conhecido como Dr. Magalhães. O autor material do livro é apenas alguém que
recolheu o manuscrito deixado pelo morto. A partir deste gancho, muito usado
pelos escritores românticos, no século passado, e retomado pelo gosto popular
do século vinte, o autor tece a sua narrativa com sabor ficcional.
Como relato de um
jornalista e advogado, o livro merece a maior atenção do leitor. Sampaio conta
coisas de interesse de quantos militam na justiça, com a clareza de um
profissional da notícia. Ele sabe escrever e sabe encadear os fatos de forma a
prender a atenção do leitor.
Mas como texto de
escritor – e é o que parece ambicionar o livro, ao lançar mãos de tais recursos
ficcionais – a perspectiva crítica não pode ser a mesma. Arnaldo Sampaio
mistura o relato, ou a narrativa sobre o destino de alguns personagens do mundo
do crime, com aulas de interpretação do código penal, quebrando o ritmo do
discurso.
A estrutura novelesca
da obra começa a se tecer, quando o protagonista serve de elo ou ligação entre
episódios contando histórias do mundo do crime. Quando o livro ganha em
importância, o autor faz concessões ao tom professoral do Dr. Magalhães,
interpretando códigos e doutrinas; ou cede ao relato de anedotas surradas sobre
vigaristas e outros tipos da metrópole. Em meio às lições do velho advogado e
os casos conhecidos, o livro cai no lugar comum e deixa de suscitar interesse
enquanto texto literário.
Entenda-se: vejo a obra
literária como um texto que ultrapassa a circunstância de um sujeito e resiste
ao tempo e ao desgaste das leituras mais técnicas, através da coerência
interna; do poder de se inscrever na circunstância de outros sujeitos com
outros preferências e outra realidade.
Isso mostra que a
experiência da escrita jornalística precisa ser adicionada ao domínio de uma
outra técnica – a do fazer literário – quando se quer escrever um livro de
ficção. No território imprevisível da literatura, até mesmo um experiente
profissional das redações de jornal passa a ser um aprendiz.
Sabemos que muitos
escritores brasileiros associaram seu domínio da escrita jornalística ao
exercício da literatura, mas tiveram que aprender as regras do novo jogo. José
Cândido de Carvalho trabalhou durante anos a estrutura das suas crônicas de
casos e astuciados até produzir um grande livro,
O
coronel e o lobisomem. Oto Lara Resende aprimorou seus contos
reescrevendo a cada dia, após serem publicados aqui e ali; deixando-nos, como
legado derradeiro, obras altamente bem cuidadas.
O domínio da escrita, o
saber dizer de forma clara e objetiva é o que faz o jornalista. O
reescrever-se, o passar-se a limpo em busca do quase impossível é o que faz o
escritor.
Se sob o ângulo da
crítica literária um texto pode merecer reparos, sob um outro ângulo ele pode
merecer louvores. Louve-se então o modo com que Arnaldo Sampaio
reuniu os fatos dignos de ficarem na memória de um criminalista. Fatos e lições
que o velho advogado conta para os novos. Para aqueles que gostam de aprender
com a experiência vivida.
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Memórias e ficções de
um advogado. Artigo crítico sobre o livro Eu fui advogado criminal, de Arnaldo Sampaio. Salvador, EGBA, 1995,
210 p . Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 4 dez. 95, p. 7.