Edison
Carneiro,
o etnólogo
e o poeta DESCONHECIDO
e o poeta DESCONHECIDO
por Cid
Seixas
A pesquisa de fontes no âmbito dos estudos literários tem ganho
especial relevância no mundo acadêmico pela constante possibilidade de revisão
do saber estabelecido. Até alguns anos atrás, o trabalho de recuperação ou de
resgate dos documentos da memória cultural era pouco valorizado em meio aos
estudiosos universitários das letras. Somente após a chegada tardia dos Estudos
Culturais ao Brasil, em substituição aos estudos orientados pelo método
estrutural, foi plenamente reconhecida a importância do paciente e, muitas
vezes, infrutífero, ou não recompensado, trabalho de exploração das fontes
documentais.
Como a inteligência universitária brasileira insiste em se
realimentar sob o signo da exclusão, somos periodicamente assaltados pela
tentativa de desqualificação dos métodos, recursos e técnicas que, após
passarem pela relativamente longa fase ufanista, conseguem se estabelecer como
instrumentos auxiliares do trabalho de investigação. Passada a deslumbrada adolescência
de um modismo intelectual, ele consegue, finalmente, se integrar ao sistema de
produção da cultura e imprimir resultados que ultrapassem as circunstâncias em
que foi produzido. Nesse momento, infelizmente, a erudição apressada em seguir
a moda dos estilistas e costureiros da academia decreta a obsolescência das
práticas de domínio socializado, para propor incertas incursões por novos
caminhos que, por sua vez, também serão destituídos, ou destruídos, antes de
imprimirem resultados permanentes.
O mais produtivo, sabemos, sempre será a diversidade, assegurando
a continuidade dos caminhos abertos por uns e a tentativa de descoberta de
novos recursos e métodos por outros estudiosos, permitindo através da
pluralidade uma constante realimentação
cultural. O gosto arraigado pela exclusão prefere, no entanto,
desqualificar o definido para estabelecer o ainda difuso e confuso.
Tal aconteceu com a investigação das fontes e documentos da
memória cultural que, finalmente, anos atrás, voltou a ser valorizada. Aqui e
ali, investigadores solitários dão continuidade aos seus trabalhos sem
preocupação de sintonia fina com a direção dos ventos acadêmicos da estação.
Com um pé na academia e outro no mundo da rua, Gil Francisco continua se
ocupando de uma velha predileção, adquirida quando colaborava com pesquisadores
do campo da história. Ao longo de alguns anos, esse baiano radicado em Aracaju
vem reunindo, nas bibliotecas e nos arquivos públicos daqui, de lá e de outros
cantos, documentos do modernismo brasileiro e das suas manifestações na Bahia.
A incursão pelo ainda pouco conhecido rastro deixado pela Academia
dos Rebeldes é um dos resultados desse largo e longo caminho pacientemente
percorrido. Tenho insistido em artigos sobre o tema que a imagem que nos foi
passada da Academia dos Rebeldes – inclusive por Jorge Amado, durante muitos
anos – foi a de uma mera e falhada reunião de adolescentes malcriados.
Capitaneados pela, contraditoriamente, constelar e desagregadora figura de
Pinheiro Viegas, os jovens rebeldes de 1928 teriam apenas deixado seu fel
escorrer pelas ladeiras oleosas da Bahia – conforme a versão ainda corrente.
Nada mais impreciso. Esta antiacadêmica Academia dos Rebeldes,
apesar das aparentes e reais contradições, marcou uma resposta da cultura baiana,
através da melhor aquilatação do seu substrato negro-mestiço identificado com o
popular, aos caminhos do modernismo paulista de importação. Se o modernismo
eclodido com a Semana de Arte Moderna de 22 valorizava a experiência nacional
como moldagem de um figurino vindo de fora, os baianos do final da década de
vinte pareciam menos modernos e mais regionalistas porque partiam do local, do
regional e do popular para – atingir a utópica universalidade. Tanto assim que
os rebeldes baianos de 28 ajudaram a formar uma nova consciência que ganhou
visibilidade com o romance regionalista de 30.
O etnólogo, o homem negro-mestiço que se integraria – como
intelectual bem formado nos cânones europeus – aos valores ancestrais da sua
gente, Edison Carneiro, teve um papel decisivo na aproximação de Jorge Amado
com a cultura plural e mestiça da Bahia. Desde muito jovem, o então poeta e
futuro etnólogo conduzia outros rebeldes
– erês desdgarrados – aos terreiros de encantado, onde foi dignificado
com o posto de ogã. Ao saudar a aparição do seu primeiro livro de estudos
antropológicos, Religiões negras: Notas de etnografia religiosa, de
1936, Jorge Amado não somente ombreia o jovem estreante de apenas 24 anos aos
clássicos do tema e dos estudos correlatos (Nina Rodrigues, Artur Ramos, Manoel
Quirino ou mesmo o grande Gilberto Freire) como ressalta a importância até
então impar do trabalho de Edison Carneiro: um estudioso da cultura negra que
viveu a realidade concreta do seu objeto de estudo, por se tratar, ele-mesmo,
de um entre os muitos agentes do mundo de mistérios dos orixás.
“É, além de tudo, um estudo
feito por um homem da mesma raça que os estudados. Edison Carneiro nesses
estudos nada tem de diletante. Com a raça africana da Bahia, ele sofreu, ele
riu em grandes gargalhadas, ele dançou nas macumbas, comeu comidas de estranhos
nomes, amou. É um deles e assim esse estudo, esse depoimento, ganha em força e
em verdade. Não fala um estudioso das religiões Negras. Fala um membro das
religiões negras que é ao mesmo tempo um dos sujeitos mais cultos do Brasil.”
(Amado, 1936, p. 43)
O texto acima, do então jovem e já consagrado romancista, que a
exemplo do etnólogo tinha apenas 24 anos, traz nas suas poucas palavras muito
do que o futuro autor da grande epopéia negro-mestiça da Bahia percebe e
elabora do caráter psíquico e social da cultura de raízes africanas. Observe-se
que, com brevidade concisa, ele chama atenção para o mal-estar do homem negro
numa cultura que se percebia e se queria branca: “ele sofreu”. Logo em seguida,
Amado assinala a extraordinária força de resistência cultural: “ele riu em
grandes gargalhadas...” É esta capacidade – dentre algumas outras – de reagir à
adversidade, através da alegria e do riso, legada pela raça negra à cultura
mestiça, que constitui um aspecto fundamental da identidade brasileira.
Convém firmar que a etnografia de Edison Carneiro não tinha nada
da visão exterior e estereotipada evidenciada por um Nina Rodrigues, por
exemplo. Daí, o jovem rebelde ter sido capaz – conforme já na época sublinhava
Jorge Amado – de reafirmar ou corrigir as especulações anteriores, fundado
tanto em pesquisas de campo quanto em “documentação notável”.
O futuro autor de Jubiabá encerra o seu artigo sobre Religiões
negras, de Edison Carneiro, com uma confissão que fornece os indícios para
que procuremos mais no companheiro de geração e menos no olímpico Gilberto
Freire as bases da sua visão sociológica do negro: “Eu o admiro e o amo como a
um irmão que sabe muito, que todo dia me ensina uma coisa nova”.
Mas voltemos um pouco mais no tempo, deixando em suspenso a
aparição do cientista social com o já nascido clássico Religiões negras:
Notas de etnografia religiosa, conforme a crítica favorável dos
companheiros da época. Voltemos no tempo para flagrar o poeta adolescente.
Em 1928, quando começam as atividades etílicas, boêmias e
intelectuais da Academia dos Rebeldes, tanto Jorge Amado quanto Edison
Carneiro, os dois mascotes do grupo, tinham apenas dezesseis anos. Antes de se
aventurarem nas páginas mais duradouras dos livros, ambos os escritores se
valeram das voláteis páginas dos jornais para dar vazão à inquietação
intelectual e à rebeldia incontidas. Assim, Edison Carneiro publica uma
coletânea formada por trinta poemas em moldes de folhetim. Embora esta palavra
seja habitualmente usada para os romances e novelas editados em fragmentos nas
páginas dos jornais, acreditamos ser também a que melhor define a publicação
igualmente fragmentária de Musa Capenga nas colunas do diário A Noite,
de Salvador, no período de 24 de setembro a 27 de novembro de 1928.
Curiosamente, embora chamado de poeta, a existência do livro em
folhetim não era lembrada mesmo pelos amigos e admiradores que ainda trazem na
memória a atuação intelectual de Edison Carneiro. Bem verdade que Jorge Amado
sempre o identificou como poeta; inclusive, no já citado artigo “O jovem
feiticeiro”, o romancista reafirma a vocação poética do companheiro e
justifica, em termos condizentes com as crenças esposadas nos anos trinta, a
manifestação de um talento lírico através da pesquisa e do ensaio também
chamado de sociológico. Ao explicar a transmutação do lirismo, da sensualidade e da sentimentalidade baiana – fatos tão
próximos da poesia – em prosa, Amado também dá conta da sua própria
vocação poética que se espraiou nos primeiros romances. A crítica da época
destacava com frequência a poesia inerente à prosa amadiana, generosamente
derramada nas narrativas e nas falas do povo mestiço. Observe-se como as
palavras ditas a respeito do jovem etnólogo também se aplicam ao romancista das
terras e mares da Bahia:
“Leva na sua alma a alma
mística e sensual da Cidade da Bahia, corre as suas ruas de nomes poemáticos e
doces; é, por assim dizer, o seu filho mais amado. Noutra época menos
angustiosa que a nossa, Edison Carneiro não seria o ensaísta. Seria o grande
poeta desta Cidade da Bahia de Todos os Santos, poeta amado nas
escolas e nos salões pelos meninos, pelas moças e mesmo pelos almofadinhas,
porque cantaria os costumes e a vida da sua Cidade, a ingenuidade das meninas, a
sabedoria dos moleques.” (Amado, 1936, p. 42)
Os grifos da palavra amado, que aparece duas vezes nesta
passagem, são nossos, para sublinhar – através
de uma aligeirada hipótese de manifestação de uma fala subjacente – a
possível presença inconsciente de Amado na compreensão da obra do amigo. A
expressão a sabedoria dos moleques, que também sublinhamos, traduz outro
bordão característico da obra amadiana.
Mas voltemos ao poeta Edison Carneiro, deixando para um outro
texto o enfoque da passagem do Jorge Amado poeta para o Jorge Amado romancista.
Dizíamos que, curiosamente, embora chamado de poeta, o fato da existência do
livro em folhetim não era lembrado mesmo pelos amigos e admiradores que ainda
trazem na memória a atuação intelectual de Edison Carneiro. E tal continuaria
ocorrendo não fosse a acuidade investigatória de Gil Francisco. Pesquisando
documentos sobre Pinheiro Viegas e a Academia dos Rebeldes, este bendito e
ladino “rato de arquivos e bibliotecas” que é Gil Francisco atirou no que viu e
acertou no que não viu: resgatou, para surpresa de todos nós, o tão citado e
até então desconhecido poeta Edison Carneiro, revivificado num retrato de corpo
inteiro.
A Musa Capenga, de Edison Carneiro, e agora também um pouco
de Gil Francisco, nesta sua nova roupagem em moldes de livro, é uma coletânea
formada por trinta poemas curtos e vazado em versos de deliberada irreverência
modernista. O insólito da dicção corre por conta da ousada originalidade de um
talento intelectual em busca da sua própria expressão, que só chegaria a termo
anos mais tarde através da prosa ensaística. Aqui está um poeta ainda sem
maiores recursos, sem lograr a plena identificação com o leitor, mais já
despontando como um intelectual do seu tempo, sensível às questões que
identificariam sua futura obra de ensaísta.
Bem verdade que, muitas vezes, a abordagem dos temas ainda estava
preso aos preceitos e preconceitos que viriam a ser, por ele mesmo, derrubados,
como o tratamento dispensado ao negro, frequente na época mas hoje rechaçado como
estratégia de afirmação. Num poema intitulado “Ralhando”, o objetivo visado é
inteiramente apagado, na perspectiva do leitor de hoje, pela experiência do
irreverente humor do poema piada que fecha o texto.
O poema é aberto com os versos:
“Ah, negra faceira!
Que tolice, minha negra,
[...]
que você tenha
espichado
seu cabelo.
Para que
essa beleza
artificial?”
Ao começar defendendo a identidade negra e a valorização dos
encantos inerentes a esta raça, Edison Carneiro antecipa-se a todos que viriam
a exaltar as qualidades positivas do negro, a exemplo de Jorge Amado e de
Dorival Caymmi, na sua própria geração, ou de Caetano Veloso, numa das gerações
posteriores. Mas o poema perde a sua eficiência e se desvia do objetivo
pretendido quando cede à piada de gosto duvidoso. Com os primeiros anos do
modernismo surgiu o poema-piada, uma forma apressada de interpretar a
desconcertante simplicidade da linguagem proposta pela mais sólida concepção de
modernidade estética. Como consequência, os jovens intelectuais ainda pouco
imbuídos do sentido artístico da modernidade tomavam como regra os pontos
pitorescos e a aparente natureza pouco densa das inovações no processo de
construção literária. É o que se vê nos poemas da juventude de Edison Carneiro.
Para censurar o fato da sua “negra faceira” ter transformado os cabelos em
“ligas melenas”, isto é, em cabelos longos e soltos, ele recorre a uma forma de
humor corrosivo, senão depreciativo e desprovido de graça. Fazendo referência
às estradas de ferro e de rodagem em construção na época, o jovem poeta Edison
Carneiro arremata:
“E você
bem que podia
concorrer
com o pixaim
para cercá-las
a farpas de arame.”
A conclusão do poema, nada poética, sem dúvida, surpreenderia ao
futuro leitor do habitualmente correto e atento etnólogo Edison Carneiro.
Pode-se argumentar que, do mesmo modo que o irreverente compositor Gabriel, o
Pensador, faz humor em “Loura burra”, o poeta modernista dos anos vinte estaria
adotando similar efeito cômico. Mas, na perspectiva atual, quando se afirmam os
valores de uma raça e de uma cultura anteriormente humilhadas pela escravidão e
pela posterior condenação à desgraça econômica, qualquer sátira que permita ser
usada como valoração negativa pode ser evitada, para não reforçar os
preconceitos.
Não esqueçamos, porém, que o momento vivido por Edison Carneiro
era outro e que o conceito persecutório do politicamente correto, útil
por um lado e caricato por outro, ainda não ditava a conduta norte-americana,
politicamente incorreta. Pulando do político para o poético, digamos, portanto,
que não é poeticamente correto julgar um texto dos anos vinte numa
perspectiva de quase um século depois.
Mas em compensação ao mau gosto (e ao arame farpado) da chave
de ouro besouro do poema “Ralhando”, um pouco antes, em “Ameaça”, o
poeta-rebelde vai buscar na cultura negro-mestiça da Bahia e nas suas crenças
mais fortemente arraigadas o tema e o título do texto. Diante de uma historinha
de amor malsucedida e da desditosa dor de cotovelo, o jeitinho brasileiro mais
uma vez se aplica através da usual chantagem mística, evocando a macumba, seu
ebó ou seu padê:
“Vou ao Pau Miúdo
e trago,
para botar na sua porta
uma coisa feita,
dessas que fazem
morrer de amor,
preparada,
minha beleza,
pelas mãos
do grande mago
Jubiabá.”
Jorge Amado, anos depois, tomaria Jubiabá como tema de um dos seus
romances; muito provavelmente em consequência do conhecimento de Edison
Carneiro com o babalorixá do Pau Miúdo que incorporava o caboclo Jubiabá. Este
poema é talvez a primeira referência literária a Jubiabá que, mais
recentemente, na década de oitenta, reapareceria nos versos da chamada axé
music, na sua fase criativa e ainda não desvirtuada pela homofonia da
indústria cultural. Jerônimo, que foi um dos mais importantes criadores da
música baiana dessa época, evocava Jubiabá e seus poderes sobre os protegidos
pelos despachos e padês, nos versos do poema musical que diz:
“Toda nega faz amor com ele,
Toda branca tem o maior tesão.”
Confirmam-se assim, meio século depois, os poderes e as delícias
dos feitiços de amor.
Os incipientes poemas de Edison Carneiro, em Musa capenga,
não obstante denunciarem a procura de uma elocução literária inovadora e de uma
personalidade expressiva característica do seu autor, servem de manancial a
muitos cursos de água que podem ser derivados da sua cachoeira de sugestões e
aportes culturais.
Bem verdade que o próprio autor – apesar dos dezesseis anos, idade
em que a razão e a autocrítica não são parceiras constantes – vê a precariedade
da sua musa ou do seu invento artístico, propondo como referencial definidor o
epíteto capenga. Mas esta poesia gauche não foi vã. Foi um
primeiro campo de prova para as idéias e as palavras de um rebelde que deixaria
seu nome inscrito entre as mais fidedignas contribuições ao estudo da cultura
popular brasileira; estudo fundado na constituição étnica deste caleidoscópio
vivo chamado cultura brasileira.
A partir da descoberta destes textos por Gil Francisco, passamos,
todos nós que chegamos depois do seu achado, a dever ao abelhudo e afortunado
investigador o primeiro impulso ao estudo da gênese da escritura do poeta e
etnólogo Edison Carneiro. Estamos, portanto, diante de um caso bem-sucedido de
pesquisa de fontes e documentos da memória cultural. O mérito de Gil Francisco
reafirma a máxima de Pessoa que, pequena, aqui ressoa:
Tudo vale a pena...
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. O jovem
feiticeiro. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, n. 3, dez. 1936.
CRUZ, Gutemberg. Édison
Carneiro. Blog do Gutemberg, 2007. http://blogdogutemberg.blogspot.com/2007/05/edison-carneiro.html
GILFRANCISCO. Musa Capenga – Poemas de Edison Carneiro. Salvador, Letras da Bahia, 1996.
GILFRANCISCO. Musa Capenga – Poemas de Edison Carneiro. Salvador, Letras da Bahia, 1996.
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