Do Velho Preciosismo
ao
Non Sense
Pós-Moderno
por Cid
Seixas
Carlos
Cunha publica seu primeiro livro de poesia no início dos tumultuados anos
sessenta. Nessa década se afirmam poetas como Florisvaldo Mattos, José Carlos
Capinan, Myriam Fraga, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Anísio Melhor, José
de Oliveira Falcón e outros. Dentre estes, os integrantes do grupo ou da
Geração Mapa atingem a maturidade poética e passam a desfrutar o prestígio
assegurado pela reiteração de leituras e julgamentos críticos.
Inicialmente
desvinculado desta atmosfera cultural densa e efervescente, o poeta Carlos
Cunha vai se integrando à chamada revolução intelectual dos anos sessenta e
abandonando os traços da sua formação familiar, originada no interior de
Sergipe. Filho de um antigo professor de Português, autor de manuais de boa
escrita, Cunha publica seu primeiro livro de versos em 1961, o preciosista Goivos de antófilos, quando, fascinado
pela ostentação verbal dos parnasianos e retardatários de exterioridade
simbolista, decorava as palavras com flores e arabescos.
O
fascínio pela estética ornamental começa pelo título do livro: goivo é uma planta ornamental de flores
rubras, raiadas de branco. Muito cheirosas e apreciadas para compor arranjos
decorativos, estas flores são encontradas também na cor amarela. Antófilo, como
se sabe, é o apreciador ou o entusiasta, quase obsessivo, das flores. Mas, goivo também é uma palavra que evoca
gozo ou alegria, uma vez que o nome da flor vem do latim gaudium, que segundo o dicionário dessa língua quer dizer
“satisfação, prazer, regozijo”.
Logo
cedo, o poeta Carlos Cunha percebeu a natureza passadista da sua filiação
poética inicial e, em 1963, deu uma guinada neorromântica, ao intitular o novo
livro Ilhas para morrer. Os anos
sessenta trouxeram de volta os aspectos libertários de um romantismo atualizado
pela rebeldia das novas gerações, a exemplo da poesia e das artes norte-americanas,
assinaladas por Jack Kerouac como pertencentes a uma outra renaissance. Se a ousadia e o “desligamento” da estética beat zen ficaram restritos aos jovens
intelectuais de San Francisco, na Califórnia, seus seguidores, assemelhados e
dissidentes, a reatualização da impetuosidade romântica teve consequências mais
amplas em outras partes do mundo.
Diante
deste quadro que adquiria contornos próprios no Brasil, Carlos Cunha liga-se à
geração da Moderna Poesia Baiana (caracterizada pela antologia do mesmo nome),
tornando-se um agitador cultural atuante e bem informado. O melhor da sua obra,
pequena mas frondosa, está espalhada em antologias, como Moderna poesia bahiana (com agá), Rio de Janeiro, 1967; Cinco poetas jóvenes de Bahia, Buenos
Ayres, 1968; 25 poetas da Bahia
(1633-1968), Salvador, 1968; Breve
romanceiro do Natal, 1972; Sete
cantares de amigo, 1975; Antologia de
poetas da Bahia em alfabeto Braille, 1976, etc.
Para
apagar as marcas de um início marcado pelo preciosismo de gosto neoparnasiano –
aqui relembrado, como fixação de um trajeto literário e como instrumento de
compreensão de uma obra de matizes diversas –, nosso poeta recolheu os
exemplares do livro de estreia e, mesmo na sua bibliografia, riscou a palavra antófilo do título do livro. Quando, em
1977, publicou o volume A flauta onírica,
Carlos Cunha fez constar da bibliografia o título reduzido para Goivos. Fez mais ainda: recolheu das
mãos de leitores conhecidos os exemplares dos dois livros da fase inicial, não
permitindo à posteridade o conhecimento desta produção, o que causa uma brecha
indesejável, especialmente numa coletânea como esta, agora organizada por Guido
Guerra. O leitor fica privado de acompanhar e comparar as diferentes estações
do trajeto poético deste escritor arredio mas significativo; posseiro de dicção
pessoal e inconfundível, no quadro da poesia baiana da segunda metade do século
XX.
Mesmo
antes da publicação do livro A flauta
onírica, reunindo a produção da fase mais recente de Carlos Cunha, marcada
pela sua ligação à geração de 60 e à Moderna Poesia Baiana, diversos poemas
eram lembrados de memória pelos seus leitores. “Breve comunicado do poeta
burguês”, “Somos”, “Canto do Natal no perímetro urbano” e “Tempo de criança”
são alguns exemplos de poemas selecionados pela antologia da lembrança. Poemas
que, recolhidos ou não em coletâneas, passaram a circular entre os apreciadores
da poesia.
Embora
distante e distinto dos livros anteriores, A
flauta onírica trai o seu processo de construção poética ao longo do tempo,
revelando, ora tendências mais conservadoras, ora mais avançadas, de uma
produção multiface.
A
dicção caudalosa e sincopada de alguns poemas antológicos de Carlos Cunha aponta
para esta tensão entre o antigo e o moderno mais radical. Assim, temos textos
marcados pela construção de ideias ou pela cogitação de emoções. A exemplo da
estética barroca, a obra de Cunha fragmenta-se entre o plano conceptivo e o exercício cultista de formas inusitadas e, às
vezes, esdrúxulas.
Alguns
dos seus poemas nasceram de longas preleções feitas aos amigos, quase sempre
sintetizadas numa frase lapidar. Esta frase, verso solto na língua, voando da
boca para o ouvido, ancora finalmente num novo poema. Outras vezes, a frase
síntese não brota do discurso oral, guardando-se para a gestação do poema, como
forma pressentida, sugerida e acabada.
O
neobarroquismo da construção frasal de Carlos Cunha nasce de uma tensão entre
tradição e ruptura. O gosto suspeito por expressões que denotam uma
suntuosidade envelhecida entra em choque com a recuperação de processos transgressivos
operados pelos poetas da alta modernidade. É nestes poetas do final do século
XIX e início do século XX, transgressores e malditos, que Carlos Cunha vai
buscar elementos que tocam os limites do pós-moderno. Bem sabemos que o projeto
da alta modernidade, radical no limiar do século XX foi diluído ao longo dos
anos. Já nos anos cinquenta, a modernidade abandonava os “excessos” de Mallarmé
e outros continuadores dos seus ousados lances de dados. Cem anos depois, com o
advento do século XXI a pós-modernidade volta a incorporar a quebra de
fronteiras entre o real e o invento, entre o dito e o não dito, o “bom senso” e
o non sense.
A
mistura impura, as contradições de uma dicção ora enfunada de prosápia ou de
ascendência parnasiana, ora surpreendida por ousadas quebras bruscas que
ultrapassam a dicção, aos poucos, cristalizada e acomodada pela modernidade,
fizeram com que a poesia de Carlos Cunha transitasse do concerto ao
desconcerto, construindo ao seu modo o vozerio neobarroco da pós-modernidade.
Creio que
a obra poética de Carlos Cunha ficou reduzida às três fases distintamente
marcadas pela publicação dos seus livros Goivos
de antófilo, Ilhas para morrer e A flauta onírica. Após a edição deste
último, o poeta deixa de aparecer em revistas e suplementos; não revelando
mesmo se continuava escrevendo poemas ou não. Seu silêncio com relação à
criação literária tornou-se intransponível. Absoluto.
Embora
presente na vida intelectual da cidade, hoje como executivo da Academia de
Letras da Bahia, Carlos Cunha insiste em se fazer ausente como escritor.
Recentemente, com a publicação da antologia A
Poesia Baiana do Século XX, organizada por Assis Brasil, não quis que seus
poemas fossem incluídos; numa incompreensível apagamento do seu nome do quadro
histórico da produção poética na Bahia. Daí a importância deste livro preparado
por Guido Guerra e nascido por inspiração do presidente da Fundação Gregório de
Matos, acadêmico Francisco Pessoa, ele mesmo admirador da poesia de Carlos
Cunha. O livro que o leitor tem o privilégio de ter em mãos repõe em circulação
e, consequentemente, preserva do esquecimento uma poesia inolvidável.
________________
Do
velho preciosismo ao non sense pós-moderno.
In CUNHA, Carlos. A flauta onírica e
novos poemas. Salvador, Edições Cidade da Bahia / Fundação Gregório de Matos,
2001, p. 151-159.
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