Do Modernismo Paulista ao Regionalismo do Nordeste
por Cid Seixas
Agradeço
inicialmente o convite da doutora Sudha Swarnakar para proferir esta conferência
de abertura do Colóquio Jorge Internacionalmente Amado, na Universidade
Estadual da Paraíba. É de justiça também estender o agradecimento ao doutor Humberto
Oliveira, meu ex-aluno e atual colega na UEFS, que propiciou esta participação
no evento. Dito isso, passemos ao tema da nossa fala.
A
partir de 1928, com a guinada telúrica dos modernistas de 22, o Nordeste, até
então refratário às novidades europeizantes da Semana de Arte Moderna, encontra
uma possível identidade entre as suas embrionárias vertentes de modernidade
literária e as propostas “futuristas” e modernistas capitaneadas pela nova
metrópole econômica do país.
Seguindo,
deliberadamente ou não, o exemplo pioneiro de Gilberto Freyre, em Pernambuco,
Jorge Amado e outros jovens intelectuais da província inserem a Bahia no quadro
do pensamento artístico e social do Século XX. Posturas contrárias aos gritos
histriônicos da pauliceia desvairada eram vistas como forma de atraso cultural
do Nordeste, enquanto os escritores dessa região brasileira perseveravam na
gestação de uma nova consciência crítica que explodiria dois anos depois, com o
chamado Romance de 30.
Enquanto
a arte concebida pelos jovens do centro metropolitano construía sua identidade
a partir do alimento antropofágico digerido na Europa, os jovens da “roça”
tiravam da terra as raízes com que se alimentavam. Mesmo em São Paulo, um
intelectual como Monteiro Lobato, umbilicalmente moderno quando visto no quadro
de qualquer literatura de recepção mundial, adotou, pioneiramente, postura
similar a que viria a caracterizar a literatura nordestina, sendo de pronto
execrado pela vaia juvenil e visto como um passadista. Tais fatos – que daqui a
pouco serão anciões centenários, quando a Semana de 22 completará um século –
exigem um reexame com olhos do hoje.
Em
fevereiro de 2022 o Brasil estará celebrando a aventurosa eclosão da Semana de
Arte Moderna, nome pomposo para os três dias de eventos realizados no Teatro
Municipal de São Paulo. Artes plásticas, literatura e música foram os temas
centrais das discussões e performances distribuídas na segunda-feira, dia 13,
na quarta, dia 15, e na sexta-feira, dia 17 de fevereiro de 1922. Espera-se
que, no bojo do centenário, sejam vistos e compreendidos os fatos que, ao longo
do século XX, ganharam um estatuto mítico capaz de enublar tudo aquilo que não
representasse uma aceitação passiva e contritamente religiosa dos feitos e
fatos traquinados pelos seus corifeus.
O
espírito de corpo dos chamados modernistas conduzia um rolo compressor capaz de
esmagar, como uma camada de lama asfáltica, a todos aqueles que não
demonstrassem uma aceitação incondicional do pensamento considerado novo. Todos
conhecem o estigma imposto pelos vanguardistas ao “passadista” Monteiro Lobato.
Como o furacão da botocúndia derrubou os cavaletes da exposição de Anita
Malfatti, diagnosticada por Lobato como paranoia ou mistificação, os
pontas-de-lança do modernismo conseguiram, por algum tempo e em vários
contextos, esvanecer o esplendente vendaval com que Lobato enriqueceu a cultura
brasileira, desenterrando os tesouros escondidos no mato e nas ruas obscuras.
As ideias do Jeca Tatu, ironicamente esboçadas por Monteiro Lobato como
proposta de construção da identidade nacional, não foram percebidas num momento
em que o Brasil buscava uma fisionomia europeia.
É
verdade que a partir de 1928 o modernismo brasileiro passou a merecer este
adjetivo [brasileiro], mas o fosso estava cavado e dividia profundamente os
territórios da arte. Convém lembrar que Oswald de Andrade, passados os embates
da chamada fase demolidora do modernismo, mostrou o significativo fato de Urupês
ser anterior a Pau Brasil e à obra de Gilberto Freyre. Reconhecia, assim, o valor e a consistência
do pensamento de Monteiro Lobato, aproximando a guinada de 28 do pioneirismo do
velho amotinado de Taubaté, com a seguinte confissão: “nós também trazíamos nas
nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra
brasileira.” (Andrade, 1971, p. 4)
O
episódio constituído pela crítica de Lobato à pintora Anita Malfatti, publicada
em dezembro de 1917, oito dias após a abertura da exposição, demorou para ser
superado, especialmente pela declarada admiração do autor pela arte clássica e
pela crença na sua permanente e irretocável perfeição. Contraditoriamente ao
que ele realizou como escritor e como intelectual sensível à cultura
brasileira, no famigerado artigo cometeu um equívoco, aí sim, passadista ao
pontificar: “Todas as artes são regidas
por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude nem do
clima.” (Lobato, 1917/1967, p. 60)
Ao tempo em que arguía ferozmente a adesão de Anita às
vanguardas européias, o escritor exaltava seu talento e suas qualidades. No
pensamento crítico de Monteiro Lobato estava fortemente embutida a proposta de
construção de uma estética brasileira independente, livre de qualquer herança
colonial que representasse perda de identidade. Daí a intolerância que causou
ressentimentos.
O caso Monteiro Lobato é, essencialmente, paradigmático
porque antecipa uma perspectiva artística similar que fez com que o modernismo
do nordeste só eclodisse plenamente – ou só fosse percebido como tal – com o
romance regionalista de 30. As manifestações anteriores, por terem sido
confundidas como contrárias à modernidade “desvairada”, não foram assimiladas
pela historiografia literária brasileira.
O modernismo paulista figura na memória nacional como um
inexcedível núcleo do pensamento de vanguarda, excluindo de modo maniqueísta
toda e qualquer oposição aos seus trejeitos, sob a pecha de passadismo. Por
isso, convém tentar equilibrar a balança de Diké – Filha de Themis –, assinalando que o
movimento moderno corresponde a um momento da história do país dominado pela
chamada “política café com leite”. As oligarquias e as elites quatrocentonas
produziram seu contraveneno, representado pelas manifestações de rebeldia
estética da Semana de Arte Moderna. Criou-se toda uma mitologia de apanágio ao
Modernismo do centro econômico do país, anulando qualquer significado possível
a ser atribuído à construção da modernidade artística em outras regiões do
país. Na Bahia, nós, por exemplo,[1]
bem intencionados intelectuais de província, fomos responsáveis por interpretar
os avanços e recuos do pensamento artístico da década de vinte como a mais
enfadonha forma de conservadorismo.
Como se sabe, a própria dinâmica social produz, em
qualquer parte, seus mecanismos de conservação das estruturas envelhecidas e de
irrupção das novas formas. Tanto no Nordeste patriarcal quanto no Centro Sul
capitalista os padrões estéticos europeus mais tradicionais constituíam moeda
de grande valor. A substituição automática das formas emboloradas, anteriormente
trazidas da Europa, por todo e qualquer grito de rebeldia que atravessasse o
Atlântico era a grande tentação dos jovens artistas brasileiros. Tanto lá, no
Centro Sul, quanto cá, no Nordeste, o atraso com relação à modernidade européia
era um fato sensível. As duas regiões do país reagiram de modo diverso e de
acordo com fatores culturais distintos. Ao contrário do que afirmou Lobato em
1917, as artes não são regidas por princípios imutáveis, nem por leis
fundamentais que não dependem da latitude nem do clima. As artes são
parcialmente condicionadas, antes que possam obedecer a princípios imutáveis. A
grande metrópole econômica do país estava marcada, para o bem e para o mal, por
uma realidade diversa daquela constituída em outras latitudes.
É desse modo que a obra de Jorge Amado desenvolve,
de forma consequente e definida, uma vertente identitária da nacionalidade
destinada a substituir a figura do índio, idealizada por Alencar, por outros
atores, incluindo a mistura de sangues dos diversos cantos do mundo. Desde os
árabes, que aqui chegaram para mercar suas quinquilharias, até os africanos
trazidos em porões de aviltantes navios do mercantilismo. Assim, tem lugar de
relevo, na obra amadiana, o negro real e palpável que conseguiu afirmar a sua
cultura, a despeito do aniquilamento do sujeito propiciado pela escravidão.
Centrando a noção de valor de um povo mestiço para além da história oficial,
Amado realiza com maior propriedade desde
Tenda dos Milagres (obra que explicita as questões levantadas com
exemplar picardia desde quando despiu a camisa-de-força do Partido
Comunista), até a madura construção de
obras como Tocaia grande e O sumiço da santa.
Desconstruir
a herança colonial europeia e fortalecer a autoestima da gente mestiça – ou do
povo brasileiro – é o que Jorge Amado começou a fazer, a partir dos anos 70,
por entre as frestas da história contada e por entre as festas dos sentidos
incendiados na tempestade do texto. O apimentado, o gorduroso e o farto uso de
frutos africanos, ao contrário de diminuir o valor da obra amadiana, como
queria uma prestigiada vertente da crítica universitária, vieram a se impor
como elementos definidores de um valor identitário já simbolizado nas coisas da
cozinha por Gilberto Freire.
Quando
o escritor traça seu próprio caminho, muitos estudiosos de formação socialista
passam a ver Jorge Amado como uma espécie de desertor da causa do proletariado.
Depois de aderir, com fervor juvenil e sem nenhuma crítica, aos princípios do
realismo socialista, ele se deixa tomar pelo desencanto e do desencontro que se
apoderaram da esquerda após a necrose do totalitarismo stalinista. Os crimes do
autoritarismo foram expostos aos olhos do mundo e, nesse balanço de perdas e
ganhos, houve quem descobrisse que os fins não justificam os meios.
Outros,
no entanto, continuaram impermeáveis ao senso do lugar comum: os fins não
justificam. Mas continuaram usando todos os meios para chegar aos fins
sonhados.
Considerado
este quadro, por que os anos sessenta principiaram a negação do valor da obra
amadiana? Até a metade do século, o arrebatamento pelo seu texto era quase
unânime, vindo, em seguida, um gradativo obscurecimento crítico. Nos anos
setenta, esta obra conheceu verdadeiro massacre, tanto do ponto de vista
político quanto cultural. No Brasil, a exemplo do que ocorreu nos Estados
Unidos, setores envolvidos com questões raciais apontaram a valorização da
mestiçagem no universo de Jorge Amado como mistura impura, ou como apagamento
da pureza racial negra. (Êpa, rei! Este filme já passou em algum lugar. E deu
no que não deu.)
De um
lado e do outro, o mito da pureza étnica gera segregações. Não é exagero
afirmar que a obra de Jorge Amado chegou a ser rejeitada por duas razões
contrárias: de um lado, os feitores da pureza africana desconfiavam da
construção romanesca de uma civilização negro-mestiça (vendo na mestiçagem o
embranquecimento); do outro lado, arianos e quase-brancos não toleravam a
elevação do negro e do mestiço à categoria mítica de herói incondicional (vendo
na exaltação da mestiçagem a apologia de raças até então ocupantes de espaços
exclusivamente periféricos).
A
valorização de uma mitologia crioula pela obra amadiana punha em pé de
igualdade velhos mitos europeus e novos mitos afro-brasileiros. Valores, quer
sejam politicamente corretos ou não, machistas, patriarcais, ou desconstrutores
do estabelecido – valores integrantes dos costumes crioulos da Bahia –
constituíram a isto que chamo de “mitologia crioula” da obra amadiana.
Sabemos
que a cultura impõe preceitos e preconceitos, mutáveis em vários tempos. Se,
hoje, a academia revaloriza a obra de Jorge Amado, convém lembrar que, há dez
ou vinte anos atrás, os cursos de Literatura das universidades baianas, seu
lugar de origem, não dedicavam nenhuma disciplina ao estudo dos livros do maior
contador de histórias da raça brasileira.
Hoje,
estudos de gênero admitem observar o lugar da mulher nos romances de Jorge
Amado, estudos étnicos percorrem a construção do orgulho negro e mestiço,
estudos culturais encontram importantes estratégias de descolonização do
pensamento.
Mas por
que a obra desse contador de histórias da civilização mestiça atravessou
turbulências e calmarias, quedas e baixas na bolsa de valores da crítica da
cultura?
Uma
hipótese é que isso decorre do fato de Jorge Amado ter sido, de início, um fiel
tradutor dos princípios e mandamentos do marxismo soviético, para em seguida
abandoná-los em favor do flerte mais aberto com os festins da pequena
burguesia. Se o romancista dos primeiros livros escrevia para comunista nenhum
botar defeito, ao se desligar das imposições do Partido, ele experimentou a
liberdade absoluta de criar, renunciando inclusive ao princípio segundo o qual
a literatura deve pôr em primeiro plano a sua função de construtora e forma do
conhecimento. Livre para criar, Amado procura a antítese da obra engajada: a
literatura feita para divertir.
Por
entre o riso solto e a narrativa de aparência meramente anedótica, o romancista
produz o melhor da sua obra, ocultando e entremostrando, velando e revelando o
compromisso social por entre as dobras de um tecido alegre. Do discurso marcado
pelo cumprimento de tarefas partidárias, evoluiu para um discurso pleno de
sentidos, armadilhas, sugestões e arremedilhos.
Ora, o
leitor habituado ao romance de tese, onde a mensagem política sobrepujava o
jogo do prazer, veria o novo figurino amadiano com a mesma suspeita dirigida à
figura intelectual do ex-comunista. Deixar o Partido por discordar das suas
práticas era um fato considerado equivalente à traição aos seus princípios. Daí
a metralhadora giratória do patrulhamento ter varrido a obra de Jorge Amado,
estimulando-o a aprofundar o distanciamento com as práticas ditadas pela
estética marxista dos anos de ferro.
Voltando
ao tema proposto, podemos concluir que as diferenças entre o modernismo
paulista e a olvidada modernidade nordestina permitiram a fixação dos traços
mais nítidos tanto do Romance de 30 quanto de obras como a de Jorge Amado,
cujos cem anos o Brasil e o mundo agora comemoram, em eventos como este Colóquio
Jorge Internacionalmente Amado, na Universidade Estadual da Paraíba.
_____________________________
[1]
“Nós, por exemplo” foi o título do espetáculo musical de inauguração do Teatro
Vila Velha, em 1964 na Bahia. Serviu de estopim do tropicalismo, que eclodiu três anos depois em São Paulo. Participaram
do show Caetano Veloso, Fernando Lona, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia,
Tom Zé e outros.
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