Cyro de Mattos, Berro


A força selvagem

por Cid Seixas

Berro de Fogo e outras histórias reúne dez contos escolhidos entre inéditos e livros esgotados de Cyro de Mattos. Acertadamente, a Universidade Estadual de Santa Cruz, a Fundação Casa de Jorge Amado e a UFBa se uniram para promover esta co-edição.

Obras como Berro de fogo, Violentos e desalmados, Os brabos, Duas narrativas rústicas e Os recuados estão há algum tempo esgotadas e inacessíveis ao leitor.

Quem não conhece o contista Cyro de Mattos terá a oportunidade de descobrir uma das vozes mais fortes da literatura produzida na região do cacau. O leitor de hoje talvez repita as palavras ditas por Ferreira de Castro, há mais de trinta anos: “Seus contos revelaram-me um novo escritor. Inventivo e de forte expressão.” A força da palavra e das situações engendradas marcam a presença do contista e inscrevem seu nome de forma vigorosa. Mas a alusão ao seu lugar entre os escritores regionais não quer limitar o alcance de uma obra, há muito conhecida e incluída entre as boas contribuições dos grapiúnas à literatura brasileira.

Sabe-se que o ciclo do cacau, ou a opulência econômica da região sul da Bahia, propiciou o aparecimento de narradores poderosos como Jorge Amado e Adonias Filho, para citar apenas os dois nomes mais conhecidos. Além deles, uma dezena de escritores (romancistas, poetas e contistas) buscaram seu próprio espaço e deram destaque à produção regional.

Nenhuma história da nossa literatura estará completa se ignorar a importância individual e conjunta dos escritores grapiúnas. É neste quadro onde a qualidade é um fato que a obra de Cyro de Mattos desponta e se inscreve. Esta coletânea, Berro de Fogo e outras histórias, traz mais de uma narrativa que pode ser incluída em qualquer antologia do conto brasileiro.

Isto quer dizer que Cyro de Mattos, apesar de não fazer parte do pequeno círculo de escritores contemporâneos abençoados pela mídia, se impõe por outros caminhos: pela força das suas narrativas. A crítica tem sido favorável à sua obra, e alguns dos nossos melhores escritores já leram e recomendaram a leitura deste contista.

Alceu Amoroso Lima surpreendeu-se com o que chamou de “admirável ficcionista”, ressaltando o “estilo profundamente impregnado de nossa fala brasileira”.

Neste livro agora publicado, chamo a atenção do leitor tanto para os contos inéditos quanto para outros já premiados e incluídos em antologias. “Os brabos”, história de um matador, que abre o volume, dá uma mostra expressiva do recurso usado constantemente por Cyro de Mattos. Ele constrói personagens rudes, quase selvagens, em meio a situações de desespero. Para que estes personagens de papel apareçam vivos e com sangue quente a correr nas faces, recolhe a linguagem  mais direta e característica deste gente.

O resultado da receita, simples e sem concessões ao maneirismo dos literatos, é uma escrita que parece história contada ao pé do fogo, nas noites da roça. O narrador consegue fotografar a força selvagem das situações para nos ofertar, encadernadas, num álbum de cores enrubescidas.

“Inocentes e selvagens” é outra história que permanece na mente do leitor graças a esta combinação de um tema marcado pela brutalidade do poder com o relato direto e sem concessões à reflexão ética ou filosófica. Em moldes de instantâneos, colhidos no calor da hora, Cyro de Mattos compõe seu painel de contos a partir de uma ótica que lembra um pouco o chamado cinema verdade. Este tipo de arte ganhou notoriedade na mesma época em que ele publicou os primeiros livros. A narrativa apenas conduz o olhar do leitor para os lugares onde a ação se desenvolve, flagrada na clareza solar ou na penumbra recolhida do silêncio.

Tudo isso confere duração ou permanência às tramas dos contos de Cyro de Mattos. Quanto o leitor, após o ato da leitura, volta a ruminar os acontecimentos do universo ficcional do autor é que percebe este traço durativo e compreende por que o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu a sentença: “São histórias que ficam na lembrança da gente.

Mas os contos de Cyro de Mattos não se sustentam apenas nos flagrantes da realidade social e na expressão objetiva da luta dos homens pela dominação ou pela sobrevivência. Há uma fabulação interior, uma reflexão contida e ocultada que conferem vida psíquica aos seus personagens. Eles não são apenas tipos polares que desempenham seu papel no palco dos conflitos sociais. Eles têm uma dimensão interior enraizada na explosão dos dramas e das misérias coletivas.

Quando um destes personagens se deixa surpreender na intimidade da vida familiar é que se percebe os desvão da sua alma. “Flor descoberta” pode ser tomado como o conto que se presta de forma exemplar à discussão da magnitude interior das rudes criaturas que transitam pelas veredas da roça.

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A força selvagem. Artigo crítico sobre o livro Berro de fogo e outras histórias, de Ciro de Mattos. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 23 mar. 98, p. 7.

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