O HÓSPEDE
DAS TEMPESTADES
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por Cid Seixas
Um menino, filho de italianos, com seu registro de tenor, participando, em 1903, da ópera Carmem, de Bizet, impressionou de tal forma a Caruso, que o grande lírico queria levá-lo para Itália e ensiná-lo os segredos da sua arte. Mas ele preferiu ficar no Brasil e trocar a iniciação no canto lírico por uma carreira na música popular. Este é um dos fatos que envolvem a vida de Vicente Celestino, um dos maiores fenômenos da nossa música popular, ao lado de contemporâneos como Francisco Alves e Orlando Silva.
Quando se comemora nos palcos do Rio de Janeiro o centenário de nascimento deste artista, Guido Guerra publica pela Record O hóspede das tempestades.
Autor conhecido através dos seus livros de contos, ou de romances de ressonância nacional, além de cronista com passagem por vários jornais, Guido Guerra “abandona temporariamente a ficção”, conforme as palavras do seu editor, para apresentar ao público um livro escrito com ternura e admiração. Trata-se de um conjunto de textos díspares em torno da vida e da obra do tenor Vicente Celestino.
O hóspede das tempestades é um livro montado pela reunião de sete textos ou capítulos. Embora denominado pelo autor de ensaio-reportagem, rótulo que se aplica à maioria dos textos, dois deles, o primeiro e o último, merecem destaque por não se enquadrarem nesta designação.
“O mito à sombra do homem”, primeiro capítulo do livro, é um exercício de escrita que leva o leitor a imaginar que O hóspede das tempestades se constrói como uma espécie de biografia romanceada. Aí, o narrador é um jovem repórter dos Diários Associados que passa de entrevistador a amigo de Vicente Celestino. A sobreposição de episódios e a substituição do tempo cronológico da narrativa pelo tempo psicológico remetem o leitor ao território do romance-documento.
Mas nos cinco capítulos seguintes, Guido Guerra muda completamente de estilo, assumindo o lugar do ensaista, ou mesmo do repórter objetivo, embora crítico. O último capítulo, “A voz orgulho do Brasil”, é uma reunião das várias entrevistas, em forma de pergunta e resposta, que Guido publicou na imprensa baiana com Vicente Celestino. Ao contrário do que disse José Ramos Tinhorão, em crítica ao livro, a transcrição destes documentos, mesmo tendo servido de base aos textos anteriores, não são redundantes. Testemunham, de modo direto, e sem a refração do olhar do outro, a profunda lucidez e o senso crítico do velho tenor. É admirável a compreensão que um cantor e compositor da chamada velha guarda tem dos novos movimentos e do lugar que lhe é reservado. Não acalenta ilusões, mesmo diante de homenagens e palavras de reconhecimento, como o título de expressão máxima da nossa música, que lhe foi conferido pelo Festival Internacional da Canção, realizado em 1967, no Rio de Janeiro.
Vicente Celestino sabia que sua música não tinha mais lugar no gosto das novas gerações. Ele diz, numa das entrevistas a Guido Guerra, que ”cai bem reverenciar uma figura do passado, homenagear um velho cantor que conheceu os píncaros da glória, cuja popularidade ninguém discute: circulam piadas com meu nome, lendas de que quebrei copos de cristal com um simples agudo, que desafiei tenores para um dó-de-peito, coisas que estão enraizadas no anedotário popular. Quando uma mulher tinha seios volumosos, dizia-se que tinha mais peito que Vicente Celestino. Pois bem, retomando o fio da meada: uma coisa é o reconhecimento pelo que se fez. Outra é premiar pelo que se faz agora, no presente. No caso, foi uma homenagem hors concurs. Não é a mesma coisa. Se eu me inscrevesse, se disputasse uma classificação, aí a coisa seria bem diferente. Eu não estou enquadrado no que, hoje, o bom gosto musical consagra.”
Ele percebeu como os compositores e intérpretes da Bossa Nova criaram uma nova estética musical, destinada a sepultar o velho estilo de cantar. E afirma: “Ela veio porque teria de vir, porque os jovens surgiram em busca de caminho. Uma geração não se afirma copiando a outra, mas negando-a.” E acrescenta, comparando a durabilidade dos movimentos e modas em outros países com o consumismo relâmpago instaurado no Brasil: “Quando o rock surgiu nos Estados Unidos, com Elvis Plesley, não inviabilizou a balada, o fox, o blues, o jazz. Havia espaço para todas as vertentes. No Brasil, quando uma moda pega, parece que vira a cabeça de todo mundo e nada mais presta. Isto é terrível, porque cria uma unanimidade estética, um padrão exclusivo de cantar e compor, de ver o mundo sob a mesma ótica, ou seja, não se cria o confronto entre as várias tendências artísticas.”
Vê-se, portanto, como as reflexões do velho tenor continuam atuais, sendo de extrema importância a transcrição das suas próprias palavras, nas entrevistas concedidas a Guido Guerra.
O capítulo inicial e o final do livro O hóspede das tempestades, divergentes que são do corpo deste ensaio reportagem, cumprem porém um papel bem definido. O primeiro dá lugar à livre imaginação, redimensionando e refazendo os fatos acontecidos, o segundo amarra estes acontecimentos à estrita realidade.
Creio que o ponto forte do livro de Guido Guerra é a sua intimidade com o objeto eleito, a sua profunda e não ocultada simpatia por Vicente Celestino. Pelo homem e pelo artista. Este amor e esta proximidade obrigam o autor do livro a conhecer e nos revelar muito deste artista.
Se os capítulos que fixam a trajetória de Vicente Celestino revelam uma maior intimidade com o objeto da sua análise, o mesmo não se pode dizer do capítulo em que Guido Guerra analisa movimentos como a Bossa Nova, a Tropicália e a Jovem Guarda. Isto, críticos da música popular já o fizeram melhor. Mas esta incursão foi sentida pelo autor como uma necessidade de contextualização de Vicente Celestino.
São justas as suas reflexões sobre diversos fatos da carreira do compositor-intérprete. Quando, no auge das reverências e irreverências do Torpicalismo, Caetano gravou uma dos dramalhões musicais mais conhecidos de Vicente Celestino, público e artistas se dividiram no modo de receber e interpretar o acontecimento. Com isenção e propriedade, Guido Guerra observa no seu livro: “A interpretação de Coração Materno, na recriação de Caetano Veloso, demarcaria as diferenças entre o movimento nascente e o agonizante: a expectativa, anunciada a gravação, era de um tom crítico que expusesse o velho cantor ao ridículo, o que não ocorreu: observou-se, ao contrário, a supressão da carga dramática pela valorização da letra e, por via travessa, do conteúdo trágico; e aí saltava à vista o conflito entre duas gerações”.
Para os admiradores de Vicente Celestino, a publicação de O hóspede das tempestades é uma excelente oportunidade de reencontro com o velho tenor. Nesta celebração, envolvendo o autor e os leitores, a cumplicidade da emoção fala mais alto e renova na lembrança o tempo as auroras puras.
(Guido Guerra. O Hóspede das Tempestades. Ensaio-Reportagem sobre Vicente Celestino. Rio de Janeiro, Record, 1994. | O hóspede das tempestades (resenha de livro). “Livros & Idéias”, seção do jornal A Tarde, Salvador, 07 nov. 94, p. 5.)
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