A IDEOLOGIA DO
REGIONALISMO:
PIGUARAS DE UMA CULTURA
MESTIÇA
Itana Nogueira Nunes
Enquanto
“fenômeno” de natureza literária, o regionalismo, como já é sabido, instaura-se
nos textos ficcionais brasileiros de forma mais ostensiva a partir do
Romantismo.
A partir de então, inúmeros textos têm acumulado ao longo da história reconhecido valor documental na construção do caráter identitário do povo brasileiro.
Na intenção de delinear uma evolução desse regionalismo e de se fazer uma interpretação mais aprofundada da sua aparição nos discursos ficcionais, muitos exegetas da nossa literatura têm-se empenhado em produzir conclusões ou argumentações sobre algumas das suas causas e dos seus efeitos. Com isso, concluiu-se que a diversidade de interpretações ou concepções acerca desta significativa manifestação literária brasileira é fato merecedor de atenção.
Estando incluído neste projeto de esclarecimento sobre tal temática, o crítico David Salles apresenta, como resultado de seus estudos sobre o regionalismo grapiúna (manifestação considerada como uma das vertentes do regionalismo nordestino) a sua tese de doutoramento Romance e Regionalismo na Saga do Cacau (1982), apontando cinco variantes mais conhecidas, consideradas como consequências de uma transformação literária deste regionalismo ao longo da sua trajetória.
“Pode-se falar de uma práxis regionalista. Por conseguinte, há vários regionalismos e, pelo menos, cinco variantes regionalistas brasileiras de articulação das formas literárias com a matéria que lhe é própria. Excluída a sua matriz nativista ou indianista de diferenciação, podem ser detectadas, e já o foram, as seguintes variantes, a partir de meados do século XIX: a) regionalismo romântico; b) regionalismo realista-naturalista; c) regionalismo “verista”; d) regionalismo “nordestino”, ou de trinta, ou modernista; e) regionalismo contemporâneo, ou metafísico”.[1]
Embora apresentasse esta distinção para as variantes regionalistas, que se dá, segundo DS, a partir de uma análise do que ele chamou de “códigos verbalizadores” desses regionalismos, o autor chama atenção para uma interdependência existente entre eles, oriunda de uma intencionalidade comum a todos: a de desenvolver um processo mimético de apreensão e recriação do ficcional dos espaços regionais brasileiros.
Nesse sentido, o regionalismo pode ser considerado um fenômeno originalmente único, que progressivamente se torna distinto, ao estabelecer os seus espaços culturais próprios.
Excluindo o regionalismo de fundação empreendido por José de Alencar como categoria à parte, David Salles afirma que cada uma dessas variantes demonstra conter as suas próprias especificidades, muito embora estejam todas elas interligadas por questões intencionais muito próximas e tenham sido originadas de uma mesma família.
Em linhas gerais, o regionalismo brasileiro, pela amplitude das suas manifestações, pelo largo período de sua duração na história literária, assim como pela importante elaboração linguística, temática e geográfica que resultou numa “revelação” do Brasil aos brasileiros, alcançou um teor qualitativo de grande importância.
No ciclo baiano, a zona cacaueira, representada principalmente por Adonias Filho e Jorge Amado, apresenta uma produção regionalista de grande significância. Também Euclides Neto ficcionalizou a saga dos trabalhadores e dos proprietários da lavoura do cacau, seguindo, de certo modo, o caminho aberto por Jorge Amado. Iararana é a obra de escritor grapiúna Sosígenes Costa, que atribui à região cacaueira a gênese da identidade nacional a partir de uma lenda cabocla, tendo também importante participação na construção dessa forma de regionalismo.
Junto a esses, outros tantos escritores da cultura cacaueira, como Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, seriam injustiçados no caso de um esquecimento natural de um ou outro nome. Portanto, sem intentar citar todos, ressaltamos aqui a grande contribuição dada à literatura brasileira por estes escritores, não somente àquela de feição regionalista, mas a nossa literatura como um todo.
Ainda na esteira da produção baiana, temos o escritor Herberto Salles, autor de Cascalho, publicado em 1944, que, segundo Sergio Milliet, em nota à terceira edição deste livro, é, na literatura, “[...] o primeiro grande romance da região diamantífera da Bahia”, tendo como foco de análise a figura do garimpeiro. O baiano Xavier Marques é reconhecido também como um regionalista de grande destaque, tendo a sua literatura praieira se revelado como o ponto alto da sua produção literária através de Jana e Joel (1899).
O sertão, representado por Eurico Alves em Feira de Santana, também colabora com relevância na construção de uma tradição regionalista na Bahia. Assim, concluímos que a importância da Bahia no cenário brasileiro soma uma forte representação dos costumes locais ou regionais como documentos vivos da nossa gente, fato que se confirma nas palavras do crítico Adonias Filho no prefácio dos Novos Contos da Região Cacaueira onde afirma que sendo “parte de uma literatura com identidade própria, a ficção grapiúna já é por demais conhecida para que a expliquemos nas causas e como presença indiscutível na ficção. Isso na verdade seria chover no molhado”.[2]
Dando continuidade ao mapeamento do regionalismo no Brasil, temos a tradição regionalista gaúcha com uma das principais fontes da sua ficção, que é Apolinário Porto Alegre. Como seu maior herdeiro, destaca-se no regionalismo sulino João Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas, que viveu sempre em sua província, mesmo numa época em que somente na capital teria o seu merecido reconhecimento como escritor. Em suas histórias, elegeu como herói o gaúcho pobre, o tropeiro, o humilde peão da estância, destacando-se na literatura regionalista como um dos escritores mais populares. Entre as obras de maior destaque, temos o Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Ao lado deste escritor, podemos citar também nomes como Augusto Meyer (na poesia), Alcides Maya, Érico Veríssimo, Luiz Antônio de Assis Brasil, Sérgio Faraco, entre outros.
Como estas duas vertentes, são conhecidas diversas outras manifestações empenhadas em representar a identidade brasileira, esta feição do “nacional” ou do “local”, enquanto retrato da nossa realidade. São inúmeros escritores ou ficcionistas brasileiros que, em seus textos regionalistas, expressam (muitos com êxito) a essência do nosso povo. Podemos aqui lembrar alguns destes mestres regionalistas, que, “aberta a picada” para a construção de uma estrada que daria na consolidação dos valores nacionais do povo brasileiro, souberam, através do seu engenho literário, demonstrar estes espaços históricos, sociais, culturais, ideológicos, étnicos, de forma diferenciada, como: Aluísio Azevedo, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Adonias Filho, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa e mais tantos outros. Estes escritores demonstram em suas obras um conhecimento íntimo e pleno do seu povo, não como um saber frio e científico, mas como um saber sensível e artístico, essencial à inspiração. Diríamos melhor: cada um deles é o próprio povo brasileiro.
Silviano Santiago, no seu Vale Quanto Pesa, comenta os primeiros textos que foram escritos para configurar “terra” e “homem” brasileiros. Para ele, estes textos escritos por portugueses, descrevendo ou ficcionalizando o território brasileiro e os seus habitantes (ou personagens), apesar de trazerem “violentas informações etnocêntricas” ou “eurocêntricas”, são considerados uma espécie de “farol”, por serem vistos como luzes que serviram para clarear os valores sociais, políticos e econômicos do País.
“O interesse direto que estes textos manifestam não é pelos habitantes que se transplantavam para cá, trazendo cargos, dinheiro e obediência irrestrita à Coroa Portuguesa, mas antes pelos que, adotando a nova pátria ou já nascidos nela, procuravam definir a si mesmos e à região em gestos de independência (relativa, é claro) com relação à Europa. O fim óbvio dos textos era apresentar o país como Nação e o súdito como independente. Ou por serem filhos adotivos, ou por serem filhos de terra desconhecida, se sentiam os brasileiros sem estatuto socioeconômico definido, em situação amorfa e negativa, portanto. Tudo isso propiciava aos que empunhavam a pena abordar os problemas da identidade, da liderança e da hierarquia”.[3]
Esses documentos serviram, portanto, para definir ou estabelecer o início de uma história sociocultural para a gente brasileira, cuja identidade se constituía numa incógnita.
Revisitemos, porém, a história no seu início.
Em direta concordância com as ideias de Silviano Santiago, já afirmava David Salles que os primeiros textos que descreveram a região do Brasil[4] e os seus habitantes são de origem portuguesa, sendo o primeiro destes a Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual os valores verdadeiramente indígenas, ao invés de serem destacados, são recalcados. Daí a ideia de serem os primeiros habitantes do Brasil considerados como “tábula rasa” ou “papel em branco”, onde se poderiam imprimir todos os desejos de crenças e costumes do europeu.
Por isso, para que se formasse o que hoje chamamos de identidade nacional, foi preciso dedicar esforços, tanto no sentido de “lembrar” (traços da nossa identidade destacados através da valorização de uma paisagem local) quanto no sentido de “esquecer” (qualquer referência que remetesse a uma herança cultural colonialista).
Recordando o que interessasse ser recordado e apagando da memória aquilo que não contribuísse para uma história gloriosa, fomos, num conhecido jogo dialético, tentando construir o esboço de uma tradição pré-romântica que assegurasse uma confiabilidade aos intelectuais brasileiros dos períodos subsequentes, o que significava um tipo de invenção retroativa da literatura brasileira, como quis Antônio Cândido.
Esses aspectos fizeram parte da construção de um processo histórico de onde emergiriam o sentimento nacionalista, de um lado, e a primeira figura representativa da nossa cultura, sob forma de herói nacional, o índio, do outro.
Todavia, marcados pelas trágicas lembranças da colonização, um povo e a sua cultura seguiam seu caminho sem conseguir, ao tempo em que o percorria, delineá-lo, ao menos no sentido de uma independência cultural ou de uma liberdade de expressão que lhe permitisse contar a sua própria história. Por conta deste estado de total falta de autonomia é que tantos autores ao longo deste período, o do Romantismo, se mantiveram em posições vacilantes, ora tentando destacar os valores ou as cores locais, ora se desviando totalmente para a cultura do colonizador, quase sempre em favor de uma tentativa utópica de conciliação de culturas.
Nessa busca de um lugar sob o sol da civilização ocidental, regida pelas nações cultural e economicamente independentes, a vida literária brasileira teve, no Romantismo, alguns intelectuais que tomaram para si o propósito de “fundação” desta identidade, dentre os quais um de maior destaque se fez indelével em nossa história: José de Alencar. Para Araripe Júnior, Alencar “adivinhou”, como bom charadista que reconhecidamente foi, um passado para a nação brasileira.
A propósito disto, retomemos neste ponto o título deste capítulo com o intuito de esclarecer o seu valoroso empréstimo ao texto de Elvya Pereira intitulado Piguara: Alencar e a invenção do Brasil sobre o importante papel do autor de O Guarani no processo de construção identitária nacional. Neste texto, o polêmico escritor, crítico e teórico das nossas letras românticas, é chamado de piguara, vocábulo indígena que significa “guia”, “senhor dos caminhos”, de onde podemos concluir os motivos da utilização de tal termo. É a própria autora quem diz sobre o escritor romântico:
“É incontestável o caráter programático de sua obra, sobretudo a vertente indianista, na qual ele avança investido de sua condição de piguara, senhor dos caminhos de uma literatura nacionalista estreitamente vinculada a um projeto cultural de nação emergente”.[5]
Assim, para Elvya Pereira, “Alencar vai definir o seu projeto literário nacionalista tendo como pressuposto básico “a invenção do passado”. [...] Contrapondo um estado de natureza inspirado, no nível da fábula pela mitologia do povo da floresta, mas inevitavelmente conduzido, no nível do discurso, pela ideologia do colonizador”.[6]
Neste projeto literário do escritor romântico é criado nosso maior representante, eleito herói das nossas selvas e da nossa cultura (apesar das adaptações sofridas para que pudesse se transformar em herói), importante elemento fundador da identidade nacional: o índio, protagonizado nas personagens emblemáticas de Peri, Iracema e Ubirajara, expostos aqui na ordem cronológica das suas criações.
A partir do cruzamento deste representante primeiro da nossa gente, cantado e ilustrado em páginas lendárias pertencentes ao seu veio indianista, com o elemento europeu, o branco, Alencar propõe a criação de uma raça, de uma nação essencialmente brasileira.
Para a ensaísta Lúcia Helena, Alencar cria o novo “cidadão” que, primeiramente ficcionalizado na imagem do índio Peri, representa os “sobreviventes das águas turvas das revoluções identitárias” incumbidos de construir o futuro da nova nação:
“Suas obras, que surpreendem pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a memória do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no século XIX.
A colônia em que se era o outro, dera lugar ao país que não sabia o que era. Entre esses dois momentos, gente nascera, trabalhara e morrera, com um mal estar semelhante a uma doença crônica”.[7]
Este estado doentio de que fala Lúcia Helena faz referência ao mal-estar e à melancolia de que são acometidos muitos personagens alencarianos, pela dificuldade de inserção no processo de construção de uma cultura estabelecida, representando, com isso, a angústia do homem romântico.
Em História e Literatura (1999), o escritor Flávio Loureiro Chaves refere-se ao projeto de aquisição da identidade nacional empreendido por Alencar como uma busca de um modelo de herói para a sua pátria. Para ele, através deste modelo o escritor romântico vai destacar não somente no índio, mas no mestiço, no sertanejo, no gaúcho ou no bandeirante, “o novo homem surgido na América cujos atributos essenciais serão a força, a beleza, a coragem, a nobreza, fundidos enfim na solda moral proporcionada pela ‘consciência da liberdade’”.[8]
Alencar buscava nestas formas um diferencial para esse homem, que pudesse imprimir definitivamente uma marca peculiar para o povo brasileiro.
Para Loureiro, “a súmula do projeto identitário formulado na segunda metade do século XIX” se dá na fase intelectual mais madura de José de Alencar, quando publica Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, por estarem juntas, nesta etapa da sua obra, política e literatura. Para uma complementação do mito, Alencar reuniu história e literatura no terreno da ficção. Se, antes, já havia desenhado a nossa literatura, Alencar o fez depois com a história e estaria por último acrescentando aspectos da vida política do nosso país concluindo assim o seu projeto[9]. Com isso, o autor aponta O Gaúcho (1870) como o ponto culminante da instauração de uma tradição e de um tipo que fosse ao mesmo tempo brasileiro e americano, regional e nacional, numa relação de complementaridade necessária ao projeto alencariano.
Entretanto, a criação ficcional não foi a única empreitada a qual se propôs o representante maior do nosso romantismo. Também crítica e teoria literárias produzidas por Alencar foram matérias de discussões e polêmicas conhecidas, travadas com diversos intelectuais, a exemplo das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios[10] (1856), nas quais se contrapõe às ideias de Gonçalves de Magalhães. Mais outros dois textos também polêmicos: “Benção Paterna”[11] e Os Sonhos D’ouro[12], foram escritos como sínteses teóricas da literatura e da crítica brasileira daquele período. Nestes últimos, o autor vai-se ocupar do tema da nacionalidade brasileira, além de traçar uma autodefesa às críticas da época. Assim, para Elvya Pereira:
“O eixo central dessa crítica de Alencar movimenta sempre elementos que, argumentava ele, deveriam caracterizar a cultura e a literatura brasileiras, como a questão da liberdade linguística do português falado no Brasil, a temática indianista e o sentimento da natureza como a emanadora da própria ideia de nacionalidade. Também na crítica e na teoria literárias, Alencar proclamava-se um piguara”.[13]
Escritor, crítico e teórico se fundem em Alencar com o único propósito de gerar a nação brasileira, escrevendo sob o pretexto de lenda, de mito ou de fábula aquilo que acreditava poder representar a história da sua própria gente.
Pudemos, então, perceber até aqui que o projeto nacionalista de Alencar não comportava nem o negro como elemento constituinte na formação da nação brasileira, nem o problema da escravidão que dizia respeito a este. Ao menos nas obras de maior relevância do escritor, a preocupação com a contextualização destes não chega a ser significativa, deixando transparecer uma postura às vezes contraditória em algumas questões, a exemplo do romance O Tronco do Ipê, de 1871. Também no teatro, ensaia aqui e ali alguns papéis para o negro, mas nenhum que tivesse a relevância dada ao indígena brasileiro, não permitindo, assim, que este protagonizasse a cena romanesca ou representasse alguma parcela da identidade nacional.
Embora já tivesse aparição conhecida na criação do cenário nacional brasileiro em diversos outros espaços, somente temos uma inserção da figura do negro como herói e representante de nossa cultura, de forma mais definida e definitiva, na vertente que se chamou de “regionalismo nordestino”. Nas páginas de escritores como Jorge Amado, para tomar como referência um regionalismo geograficamente mais determinado, o negro pôde, enfim, ser visto como um verdadeiro modelo de força, virilidade e sensualidade, que traduz de uma forma quase encantada os traços do homem brasileiro.
Assim como Alencar, o escritor baiano, em boa parte da sua produção, toma para si a responsabilidade de fundador de uma identidade nacional complementando o que seria a tríade formadora da nossa identidade. Estaria, então, definitivamente assegurado um espaço para o negro no imaginário do povo brasileiro.
Tendo sido este último um elemento considerado inferior pelas correntes ideológicas evolucionistas e deterministas da nossa cultura, o que é sabido de todos, esteve o negro fadado muito tempo ao total esquecimento na literatura. Entretanto a atração por esta que é uma das mais fortes matrizes da alma e da cultura brasileira, a raça negra, fez com que o escritor baiano, este “amigo dos homens”, como quis chamá-lo o ensaísta alemão Günter Lorenz[14], se voltasse de forma tão apaixonada para a descrição viva e realística da cultura, da religião e dos costumes deste povo, paradoxalmente tão alegre e oprimido.
A prática da religião negra ou do culto afro-brasileiro foi durante muito tempo submetida à repressão e à perseguição pela nossa sociedade, assim como pela polícia, que invadia os terreiros de Candomblé sob o pretexto de limpar a cidade com a coibição de tal crença. Jorge Amado, como deputado pelo Partido Comunista, conseguiu através de um projeto de lei, em 1946, a legalização deste culto, do qual então passou a ser também frequentador, podendo com isso, segundo o próprio escritor, acompanhar de perto as atrocidades cometidas contra o povo negro. Foi legalizada, assim, a liberdade religiosa no Brasil.
Em Jubiabá (1935), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os Pastores da Noite (1964), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Tenda dos Milagres (1969) e em tantos outros seus romances, as cenas da crença afro-brasileira são recriadas em passagens descritas com emoção e realidade pelo escritor, a exemplo de Dona Flor assistindo a negra Andreza de Oxum, empunhando o estandarte da rainha das águas, dançar “um passo deslumbrante” ou em Os Pastores da Noite em que o padrinho do filho de Massu e Benedita, Felício, é o próprio Ogun.
Nas descrições dos seus pretos, Amado não poupava generosidade. Estes são, na maior parte, fortes, espertos, camaradas, centenários e estão sempre a exibir um “riso alvar”, “com seus dentes brancos, magníficos” como os de Honório, de Cacau (1933).
O crítico e ensaísta Cid Seixas, em seu texto produzido pela passagem do aniversário de oitenta anos do escritor Jorge Amado, nos dá um depoimento dessa exaltação do povo negro, percebida no seu universo ficcional, apresentando em medida exata a dimensão desse herói:
“Ao contar os feitos da gente do povo, especialmente do negro, Amado é generoso e pródigo em exaltação. O dominado, quer pelas antigas leis da escravidão, quer pelas modernas leis do liberalismo econômico, é herói incondicional, numa inversão violenta da perspectiva da tradição literária. [...] Como na velha Cidade da Bahia, o homem do povo se confunde com o negro e o mestiço, este, como suas crenças, seus valores, sua cultura, portanto, é o herói permanente da gesta amadiana”.[15]
Na visão de Antonio Candido, embora haja uma deformação inevitável na forma de descrição e poetização dos sentimentos e emoções do negro ao serem estes narrados por um homem de outra cor, “Jorge Amado trouxe os negros da Bahia para a arte e deu existência estética, isto é, permanente à sua humanidade. Arte é estilo, e estilo é convenção”.[16]
A este representante da literatura brasileira podemos atribuir, a partir disso, grande contribuição para a formação daquele “cidadão” ao qual se referia Lúcia Helena em ensaio aqui citado. Jorge Amado é, por sua vez, também um contador de histórias de sua gente, do povo baiano e, em maior projeção, do povo brasileiro. De outras histórias, é certo, situadas num outro espaço, num espaço povoado pelos mais diversos tipos humanos ou sociais, mas que certamente teve como intenção maior a representação de uma cultura que, mesmo tendo atravessado mais alguns séculos desde o seu nascimento, ainda se encontra em estágio de cognição da sua verdadeira identidade.
Por isso tomamos de empréstimo o termo piguara para tentar designar mais um dos maiores “guias” que já se revelaram em nossas letras: Jorge Amado.
Este representante maior do povo baiano e brasileiro ocupou, não à toa, na Academia Brasileira, a cadeira de nº 23, fundada por Machado de Assis, cujo patrono foi José de Alencar, para a qual a academia o elegeu, por ser Alencar seu legítimo antecessor e também, de certo modo, paradigma na fundação da nacionalidade brasileira. Ambos, Alencar e Amado, cada um a seu tempo, séculos XIX e XX, expressaram com imensa propriedade a vontade de “ser” nação da nossa gente brasileira. É o próprio criador de Gabriela quem diz sobre Alencar e a sua relação com o povo brasileiro:
“Alencar é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, de verdes mares bravios de nossa terra natal, excessiva e deslumbrante”.[17]
E, a respeito da crítica a Alencar, diz ainda:
“Que importa a Alencar o persistente silêncio de nossos ensaístas e de nossos críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar esta conspiração do silêncio, se suas edições crescem e multiplicam-se com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, lenda e carnaval e habitam para sempre nossos corações?”[18]
Há que se observar nessa defesa a Alencar uma auto referência do escritor baiano, que, ao sustentar assumidamente o seu desafeto com a crítica literária, defende mais a si mesmo que ao outro das maledicências sofridas em determinadas épocas da sua carreira de escritor através deste disfarçado espelhamento.
Sendo assim, podemos dizer que a fusão desses discursos fundadores da nossa cultura estava traçada desde o início. Mas o tempo teria que fazer o seu papel. Hoje, no alvorecer deste século, embalado pelos ruídos produzidos por essa avalanche dos estudos culturais, percebe-se com mais clareza a importância desses escritores-desbravadores da nossa história.
Nas suas descrições fabulosas e encantadas que povoarão para sempre o imaginário do povo brasileiro, passeiam índios, negros e brancos, seres de todas as cores e formas, caricaturas e beldades, com as suas manhas, manias e sabedorias que, de forma também encantada, deram à luz a figura de Macunaíma (alegoria da impossibilidade de tipificação do “ser” nacional), nem preto, nem branco, nem índio, nem nada...
Simplesmente o herói da nossa gente.
“Tem mais não”.
REFERÊNCIAS
[1] SALLES, David. Romance e Regionalismo na saga do cacau. Tese de doutoramento apresentada a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1982 , p..25.
[2] FILHO, Adonias. O nosso reino. In: NETO, Euclides (Org.). Novos contos da região cacaueira. Brasília: Horizonte Editora Ltda; Itabuna: PACCE, 1987. p. 05.
[3] SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.89.
[4] A expressão região foi utilizada nas primeiras descrições da nossa terra pelos cronistas europeus e é retomada por David Salles e por Silviano Santiago.
[5] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil. Feira de Santana: UEFS, 2002. p. 33.
[6] Ibidem. p.34.
[7] HELENA, Lúcia. Identidades em curso: José de Alencar e a hipótese Brasil. Légua & Meia – Revista de literatura e diversidade cultural, Feira de Santana, UEFS, . v. 1, 2001/2002. p. 11.
[8] CHAVES, F. Loureiro. História e Literatura. 3. ed. ampl. Porto Alegre: Editora universidade/ UFRGS, 1999. p. 17.
[9] Ibidem. p. 15.
[10]ALENCAR, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. In: CASTELLO, J. Aderaldo. A Polêmica sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953.
[11] ALENCAR, José de. Benção Paterna. In: Os Sonhos D’Ouro. São Paulo: Ática, 1981.
[12] Idem. op. cit.
[13] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil, op. Cit., p.37-38.
[14] SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBE, 1996.
[15] SEIXAS, Cid. O sumiço da santa: síntese do romance urbano de Jorge Amado. In: Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBA, 1996. p. 92.
[16] CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In.: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 52.
[17] AMADO, Jorge. Conversations avec Alice Rillard. Paris: Gallimard, 1990, apud BENÏCIO, Itazil. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 74.
[18] Ibidem. p.74.
A partir de então, inúmeros textos têm acumulado ao longo da história reconhecido valor documental na construção do caráter identitário do povo brasileiro.
Na intenção de delinear uma evolução desse regionalismo e de se fazer uma interpretação mais aprofundada da sua aparição nos discursos ficcionais, muitos exegetas da nossa literatura têm-se empenhado em produzir conclusões ou argumentações sobre algumas das suas causas e dos seus efeitos. Com isso, concluiu-se que a diversidade de interpretações ou concepções acerca desta significativa manifestação literária brasileira é fato merecedor de atenção.
Estando incluído neste projeto de esclarecimento sobre tal temática, o crítico David Salles apresenta, como resultado de seus estudos sobre o regionalismo grapiúna (manifestação considerada como uma das vertentes do regionalismo nordestino) a sua tese de doutoramento Romance e Regionalismo na Saga do Cacau (1982), apontando cinco variantes mais conhecidas, consideradas como consequências de uma transformação literária deste regionalismo ao longo da sua trajetória.
“Pode-se falar de uma práxis regionalista. Por conseguinte, há vários regionalismos e, pelo menos, cinco variantes regionalistas brasileiras de articulação das formas literárias com a matéria que lhe é própria. Excluída a sua matriz nativista ou indianista de diferenciação, podem ser detectadas, e já o foram, as seguintes variantes, a partir de meados do século XIX: a) regionalismo romântico; b) regionalismo realista-naturalista; c) regionalismo “verista”; d) regionalismo “nordestino”, ou de trinta, ou modernista; e) regionalismo contemporâneo, ou metafísico”.[1]
Embora apresentasse esta distinção para as variantes regionalistas, que se dá, segundo DS, a partir de uma análise do que ele chamou de “códigos verbalizadores” desses regionalismos, o autor chama atenção para uma interdependência existente entre eles, oriunda de uma intencionalidade comum a todos: a de desenvolver um processo mimético de apreensão e recriação do ficcional dos espaços regionais brasileiros.
Nesse sentido, o regionalismo pode ser considerado um fenômeno originalmente único, que progressivamente se torna distinto, ao estabelecer os seus espaços culturais próprios.
Excluindo o regionalismo de fundação empreendido por José de Alencar como categoria à parte, David Salles afirma que cada uma dessas variantes demonstra conter as suas próprias especificidades, muito embora estejam todas elas interligadas por questões intencionais muito próximas e tenham sido originadas de uma mesma família.
Em linhas gerais, o regionalismo brasileiro, pela amplitude das suas manifestações, pelo largo período de sua duração na história literária, assim como pela importante elaboração linguística, temática e geográfica que resultou numa “revelação” do Brasil aos brasileiros, alcançou um teor qualitativo de grande importância.
No ciclo baiano, a zona cacaueira, representada principalmente por Adonias Filho e Jorge Amado, apresenta uma produção regionalista de grande significância. Também Euclides Neto ficcionalizou a saga dos trabalhadores e dos proprietários da lavoura do cacau, seguindo, de certo modo, o caminho aberto por Jorge Amado. Iararana é a obra de escritor grapiúna Sosígenes Costa, que atribui à região cacaueira a gênese da identidade nacional a partir de uma lenda cabocla, tendo também importante participação na construção dessa forma de regionalismo.
Junto a esses, outros tantos escritores da cultura cacaueira, como Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Jorge Medauar, seriam injustiçados no caso de um esquecimento natural de um ou outro nome. Portanto, sem intentar citar todos, ressaltamos aqui a grande contribuição dada à literatura brasileira por estes escritores, não somente àquela de feição regionalista, mas a nossa literatura como um todo.
Ainda na esteira da produção baiana, temos o escritor Herberto Salles, autor de Cascalho, publicado em 1944, que, segundo Sergio Milliet, em nota à terceira edição deste livro, é, na literatura, “[...] o primeiro grande romance da região diamantífera da Bahia”, tendo como foco de análise a figura do garimpeiro. O baiano Xavier Marques é reconhecido também como um regionalista de grande destaque, tendo a sua literatura praieira se revelado como o ponto alto da sua produção literária através de Jana e Joel (1899).
O sertão, representado por Eurico Alves em Feira de Santana, também colabora com relevância na construção de uma tradição regionalista na Bahia. Assim, concluímos que a importância da Bahia no cenário brasileiro soma uma forte representação dos costumes locais ou regionais como documentos vivos da nossa gente, fato que se confirma nas palavras do crítico Adonias Filho no prefácio dos Novos Contos da Região Cacaueira onde afirma que sendo “parte de uma literatura com identidade própria, a ficção grapiúna já é por demais conhecida para que a expliquemos nas causas e como presença indiscutível na ficção. Isso na verdade seria chover no molhado”.[2]
Dando continuidade ao mapeamento do regionalismo no Brasil, temos a tradição regionalista gaúcha com uma das principais fontes da sua ficção, que é Apolinário Porto Alegre. Como seu maior herdeiro, destaca-se no regionalismo sulino João Simões Lopes Neto, gaúcho de Pelotas, que viveu sempre em sua província, mesmo numa época em que somente na capital teria o seu merecido reconhecimento como escritor. Em suas histórias, elegeu como herói o gaúcho pobre, o tropeiro, o humilde peão da estância, destacando-se na literatura regionalista como um dos escritores mais populares. Entre as obras de maior destaque, temos o Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Ao lado deste escritor, podemos citar também nomes como Augusto Meyer (na poesia), Alcides Maya, Érico Veríssimo, Luiz Antônio de Assis Brasil, Sérgio Faraco, entre outros.
Como estas duas vertentes, são conhecidas diversas outras manifestações empenhadas em representar a identidade brasileira, esta feição do “nacional” ou do “local”, enquanto retrato da nossa realidade. São inúmeros escritores ou ficcionistas brasileiros que, em seus textos regionalistas, expressam (muitos com êxito) a essência do nosso povo. Podemos aqui lembrar alguns destes mestres regionalistas, que, “aberta a picada” para a construção de uma estrada que daria na consolidação dos valores nacionais do povo brasileiro, souberam, através do seu engenho literário, demonstrar estes espaços históricos, sociais, culturais, ideológicos, étnicos, de forma diferenciada, como: Aluísio Azevedo, Monteiro Lobato, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Adonias Filho, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa e mais tantos outros. Estes escritores demonstram em suas obras um conhecimento íntimo e pleno do seu povo, não como um saber frio e científico, mas como um saber sensível e artístico, essencial à inspiração. Diríamos melhor: cada um deles é o próprio povo brasileiro.
Silviano Santiago, no seu Vale Quanto Pesa, comenta os primeiros textos que foram escritos para configurar “terra” e “homem” brasileiros. Para ele, estes textos escritos por portugueses, descrevendo ou ficcionalizando o território brasileiro e os seus habitantes (ou personagens), apesar de trazerem “violentas informações etnocêntricas” ou “eurocêntricas”, são considerados uma espécie de “farol”, por serem vistos como luzes que serviram para clarear os valores sociais, políticos e econômicos do País.
“O interesse direto que estes textos manifestam não é pelos habitantes que se transplantavam para cá, trazendo cargos, dinheiro e obediência irrestrita à Coroa Portuguesa, mas antes pelos que, adotando a nova pátria ou já nascidos nela, procuravam definir a si mesmos e à região em gestos de independência (relativa, é claro) com relação à Europa. O fim óbvio dos textos era apresentar o país como Nação e o súdito como independente. Ou por serem filhos adotivos, ou por serem filhos de terra desconhecida, se sentiam os brasileiros sem estatuto socioeconômico definido, em situação amorfa e negativa, portanto. Tudo isso propiciava aos que empunhavam a pena abordar os problemas da identidade, da liderança e da hierarquia”.[3]
Esses documentos serviram, portanto, para definir ou estabelecer o início de uma história sociocultural para a gente brasileira, cuja identidade se constituía numa incógnita.
Revisitemos, porém, a história no seu início.
Em direta concordância com as ideias de Silviano Santiago, já afirmava David Salles que os primeiros textos que descreveram a região do Brasil[4] e os seus habitantes são de origem portuguesa, sendo o primeiro destes a Carta de Pero Vaz de Caminha, na qual os valores verdadeiramente indígenas, ao invés de serem destacados, são recalcados. Daí a ideia de serem os primeiros habitantes do Brasil considerados como “tábula rasa” ou “papel em branco”, onde se poderiam imprimir todos os desejos de crenças e costumes do europeu.
Por isso, para que se formasse o que hoje chamamos de identidade nacional, foi preciso dedicar esforços, tanto no sentido de “lembrar” (traços da nossa identidade destacados através da valorização de uma paisagem local) quanto no sentido de “esquecer” (qualquer referência que remetesse a uma herança cultural colonialista).
Recordando o que interessasse ser recordado e apagando da memória aquilo que não contribuísse para uma história gloriosa, fomos, num conhecido jogo dialético, tentando construir o esboço de uma tradição pré-romântica que assegurasse uma confiabilidade aos intelectuais brasileiros dos períodos subsequentes, o que significava um tipo de invenção retroativa da literatura brasileira, como quis Antônio Cândido.
Esses aspectos fizeram parte da construção de um processo histórico de onde emergiriam o sentimento nacionalista, de um lado, e a primeira figura representativa da nossa cultura, sob forma de herói nacional, o índio, do outro.
Todavia, marcados pelas trágicas lembranças da colonização, um povo e a sua cultura seguiam seu caminho sem conseguir, ao tempo em que o percorria, delineá-lo, ao menos no sentido de uma independência cultural ou de uma liberdade de expressão que lhe permitisse contar a sua própria história. Por conta deste estado de total falta de autonomia é que tantos autores ao longo deste período, o do Romantismo, se mantiveram em posições vacilantes, ora tentando destacar os valores ou as cores locais, ora se desviando totalmente para a cultura do colonizador, quase sempre em favor de uma tentativa utópica de conciliação de culturas.
Nessa busca de um lugar sob o sol da civilização ocidental, regida pelas nações cultural e economicamente independentes, a vida literária brasileira teve, no Romantismo, alguns intelectuais que tomaram para si o propósito de “fundação” desta identidade, dentre os quais um de maior destaque se fez indelével em nossa história: José de Alencar. Para Araripe Júnior, Alencar “adivinhou”, como bom charadista que reconhecidamente foi, um passado para a nação brasileira.
A propósito disto, retomemos neste ponto o título deste capítulo com o intuito de esclarecer o seu valoroso empréstimo ao texto de Elvya Pereira intitulado Piguara: Alencar e a invenção do Brasil sobre o importante papel do autor de O Guarani no processo de construção identitária nacional. Neste texto, o polêmico escritor, crítico e teórico das nossas letras românticas, é chamado de piguara, vocábulo indígena que significa “guia”, “senhor dos caminhos”, de onde podemos concluir os motivos da utilização de tal termo. É a própria autora quem diz sobre o escritor romântico:
“É incontestável o caráter programático de sua obra, sobretudo a vertente indianista, na qual ele avança investido de sua condição de piguara, senhor dos caminhos de uma literatura nacionalista estreitamente vinculada a um projeto cultural de nação emergente”.[5]
Assim, para Elvya Pereira, “Alencar vai definir o seu projeto literário nacionalista tendo como pressuposto básico “a invenção do passado”. [...] Contrapondo um estado de natureza inspirado, no nível da fábula pela mitologia do povo da floresta, mas inevitavelmente conduzido, no nível do discurso, pela ideologia do colonizador”.[6]
Neste projeto literário do escritor romântico é criado nosso maior representante, eleito herói das nossas selvas e da nossa cultura (apesar das adaptações sofridas para que pudesse se transformar em herói), importante elemento fundador da identidade nacional: o índio, protagonizado nas personagens emblemáticas de Peri, Iracema e Ubirajara, expostos aqui na ordem cronológica das suas criações.
A partir do cruzamento deste representante primeiro da nossa gente, cantado e ilustrado em páginas lendárias pertencentes ao seu veio indianista, com o elemento europeu, o branco, Alencar propõe a criação de uma raça, de uma nação essencialmente brasileira.
Para a ensaísta Lúcia Helena, Alencar cria o novo “cidadão” que, primeiramente ficcionalizado na imagem do índio Peri, representa os “sobreviventes das águas turvas das revoluções identitárias” incumbidos de construir o futuro da nova nação:
“Suas obras, que surpreendem pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo à representação do país nascente, buscando construir a memória do cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem. Preside esta empresa a intenção de dizer o que era ser brasileiro no século XIX.
A colônia em que se era o outro, dera lugar ao país que não sabia o que era. Entre esses dois momentos, gente nascera, trabalhara e morrera, com um mal estar semelhante a uma doença crônica”.[7]
Este estado doentio de que fala Lúcia Helena faz referência ao mal-estar e à melancolia de que são acometidos muitos personagens alencarianos, pela dificuldade de inserção no processo de construção de uma cultura estabelecida, representando, com isso, a angústia do homem romântico.
Em História e Literatura (1999), o escritor Flávio Loureiro Chaves refere-se ao projeto de aquisição da identidade nacional empreendido por Alencar como uma busca de um modelo de herói para a sua pátria. Para ele, através deste modelo o escritor romântico vai destacar não somente no índio, mas no mestiço, no sertanejo, no gaúcho ou no bandeirante, “o novo homem surgido na América cujos atributos essenciais serão a força, a beleza, a coragem, a nobreza, fundidos enfim na solda moral proporcionada pela ‘consciência da liberdade’”.[8]
Alencar buscava nestas formas um diferencial para esse homem, que pudesse imprimir definitivamente uma marca peculiar para o povo brasileiro.
Para Loureiro, “a súmula do projeto identitário formulado na segunda metade do século XIX” se dá na fase intelectual mais madura de José de Alencar, quando publica Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, por estarem juntas, nesta etapa da sua obra, política e literatura. Para uma complementação do mito, Alencar reuniu história e literatura no terreno da ficção. Se, antes, já havia desenhado a nossa literatura, Alencar o fez depois com a história e estaria por último acrescentando aspectos da vida política do nosso país concluindo assim o seu projeto[9]. Com isso, o autor aponta O Gaúcho (1870) como o ponto culminante da instauração de uma tradição e de um tipo que fosse ao mesmo tempo brasileiro e americano, regional e nacional, numa relação de complementaridade necessária ao projeto alencariano.
Entretanto, a criação ficcional não foi a única empreitada a qual se propôs o representante maior do nosso romantismo. Também crítica e teoria literárias produzidas por Alencar foram matérias de discussões e polêmicas conhecidas, travadas com diversos intelectuais, a exemplo das Cartas sobre a Confederação dos Tamoios[10] (1856), nas quais se contrapõe às ideias de Gonçalves de Magalhães. Mais outros dois textos também polêmicos: “Benção Paterna”[11] e Os Sonhos D’ouro[12], foram escritos como sínteses teóricas da literatura e da crítica brasileira daquele período. Nestes últimos, o autor vai-se ocupar do tema da nacionalidade brasileira, além de traçar uma autodefesa às críticas da época. Assim, para Elvya Pereira:
“O eixo central dessa crítica de Alencar movimenta sempre elementos que, argumentava ele, deveriam caracterizar a cultura e a literatura brasileiras, como a questão da liberdade linguística do português falado no Brasil, a temática indianista e o sentimento da natureza como a emanadora da própria ideia de nacionalidade. Também na crítica e na teoria literárias, Alencar proclamava-se um piguara”.[13]
Escritor, crítico e teórico se fundem em Alencar com o único propósito de gerar a nação brasileira, escrevendo sob o pretexto de lenda, de mito ou de fábula aquilo que acreditava poder representar a história da sua própria gente.
Pudemos, então, perceber até aqui que o projeto nacionalista de Alencar não comportava nem o negro como elemento constituinte na formação da nação brasileira, nem o problema da escravidão que dizia respeito a este. Ao menos nas obras de maior relevância do escritor, a preocupação com a contextualização destes não chega a ser significativa, deixando transparecer uma postura às vezes contraditória em algumas questões, a exemplo do romance O Tronco do Ipê, de 1871. Também no teatro, ensaia aqui e ali alguns papéis para o negro, mas nenhum que tivesse a relevância dada ao indígena brasileiro, não permitindo, assim, que este protagonizasse a cena romanesca ou representasse alguma parcela da identidade nacional.
Embora já tivesse aparição conhecida na criação do cenário nacional brasileiro em diversos outros espaços, somente temos uma inserção da figura do negro como herói e representante de nossa cultura, de forma mais definida e definitiva, na vertente que se chamou de “regionalismo nordestino”. Nas páginas de escritores como Jorge Amado, para tomar como referência um regionalismo geograficamente mais determinado, o negro pôde, enfim, ser visto como um verdadeiro modelo de força, virilidade e sensualidade, que traduz de uma forma quase encantada os traços do homem brasileiro.
Assim como Alencar, o escritor baiano, em boa parte da sua produção, toma para si a responsabilidade de fundador de uma identidade nacional complementando o que seria a tríade formadora da nossa identidade. Estaria, então, definitivamente assegurado um espaço para o negro no imaginário do povo brasileiro.
Tendo sido este último um elemento considerado inferior pelas correntes ideológicas evolucionistas e deterministas da nossa cultura, o que é sabido de todos, esteve o negro fadado muito tempo ao total esquecimento na literatura. Entretanto a atração por esta que é uma das mais fortes matrizes da alma e da cultura brasileira, a raça negra, fez com que o escritor baiano, este “amigo dos homens”, como quis chamá-lo o ensaísta alemão Günter Lorenz[14], se voltasse de forma tão apaixonada para a descrição viva e realística da cultura, da religião e dos costumes deste povo, paradoxalmente tão alegre e oprimido.
A prática da religião negra ou do culto afro-brasileiro foi durante muito tempo submetida à repressão e à perseguição pela nossa sociedade, assim como pela polícia, que invadia os terreiros de Candomblé sob o pretexto de limpar a cidade com a coibição de tal crença. Jorge Amado, como deputado pelo Partido Comunista, conseguiu através de um projeto de lei, em 1946, a legalização deste culto, do qual então passou a ser também frequentador, podendo com isso, segundo o próprio escritor, acompanhar de perto as atrocidades cometidas contra o povo negro. Foi legalizada, assim, a liberdade religiosa no Brasil.
Em Jubiabá (1935), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os Pastores da Noite (1964), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Tenda dos Milagres (1969) e em tantos outros seus romances, as cenas da crença afro-brasileira são recriadas em passagens descritas com emoção e realidade pelo escritor, a exemplo de Dona Flor assistindo a negra Andreza de Oxum, empunhando o estandarte da rainha das águas, dançar “um passo deslumbrante” ou em Os Pastores da Noite em que o padrinho do filho de Massu e Benedita, Felício, é o próprio Ogun.
Nas descrições dos seus pretos, Amado não poupava generosidade. Estes são, na maior parte, fortes, espertos, camaradas, centenários e estão sempre a exibir um “riso alvar”, “com seus dentes brancos, magníficos” como os de Honório, de Cacau (1933).
O crítico e ensaísta Cid Seixas, em seu texto produzido pela passagem do aniversário de oitenta anos do escritor Jorge Amado, nos dá um depoimento dessa exaltação do povo negro, percebida no seu universo ficcional, apresentando em medida exata a dimensão desse herói:
“Ao contar os feitos da gente do povo, especialmente do negro, Amado é generoso e pródigo em exaltação. O dominado, quer pelas antigas leis da escravidão, quer pelas modernas leis do liberalismo econômico, é herói incondicional, numa inversão violenta da perspectiva da tradição literária. [...] Como na velha Cidade da Bahia, o homem do povo se confunde com o negro e o mestiço, este, como suas crenças, seus valores, sua cultura, portanto, é o herói permanente da gesta amadiana”.[15]
Na visão de Antonio Candido, embora haja uma deformação inevitável na forma de descrição e poetização dos sentimentos e emoções do negro ao serem estes narrados por um homem de outra cor, “Jorge Amado trouxe os negros da Bahia para a arte e deu existência estética, isto é, permanente à sua humanidade. Arte é estilo, e estilo é convenção”.[16]
A este representante da literatura brasileira podemos atribuir, a partir disso, grande contribuição para a formação daquele “cidadão” ao qual se referia Lúcia Helena em ensaio aqui citado. Jorge Amado é, por sua vez, também um contador de histórias de sua gente, do povo baiano e, em maior projeção, do povo brasileiro. De outras histórias, é certo, situadas num outro espaço, num espaço povoado pelos mais diversos tipos humanos ou sociais, mas que certamente teve como intenção maior a representação de uma cultura que, mesmo tendo atravessado mais alguns séculos desde o seu nascimento, ainda se encontra em estágio de cognição da sua verdadeira identidade.
Por isso tomamos de empréstimo o termo piguara para tentar designar mais um dos maiores “guias” que já se revelaram em nossas letras: Jorge Amado.
Este representante maior do povo baiano e brasileiro ocupou, não à toa, na Academia Brasileira, a cadeira de nº 23, fundada por Machado de Assis, cujo patrono foi José de Alencar, para a qual a academia o elegeu, por ser Alencar seu legítimo antecessor e também, de certo modo, paradigma na fundação da nacionalidade brasileira. Ambos, Alencar e Amado, cada um a seu tempo, séculos XIX e XX, expressaram com imensa propriedade a vontade de “ser” nação da nossa gente brasileira. É o próprio criador de Gabriela quem diz sobre Alencar e a sua relação com o povo brasileiro:
“Alencar é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, de verdes mares bravios de nossa terra natal, excessiva e deslumbrante”.[17]
E, a respeito da crítica a Alencar, diz ainda:
“Que importa a Alencar o persistente silêncio de nossos ensaístas e de nossos críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar esta conspiração do silêncio, se suas edições crescem e multiplicam-se com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, lenda e carnaval e habitam para sempre nossos corações?”[18]
Há que se observar nessa defesa a Alencar uma auto referência do escritor baiano, que, ao sustentar assumidamente o seu desafeto com a crítica literária, defende mais a si mesmo que ao outro das maledicências sofridas em determinadas épocas da sua carreira de escritor através deste disfarçado espelhamento.
Sendo assim, podemos dizer que a fusão desses discursos fundadores da nossa cultura estava traçada desde o início. Mas o tempo teria que fazer o seu papel. Hoje, no alvorecer deste século, embalado pelos ruídos produzidos por essa avalanche dos estudos culturais, percebe-se com mais clareza a importância desses escritores-desbravadores da nossa história.
Nas suas descrições fabulosas e encantadas que povoarão para sempre o imaginário do povo brasileiro, passeiam índios, negros e brancos, seres de todas as cores e formas, caricaturas e beldades, com as suas manhas, manias e sabedorias que, de forma também encantada, deram à luz a figura de Macunaíma (alegoria da impossibilidade de tipificação do “ser” nacional), nem preto, nem branco, nem índio, nem nada...
Simplesmente o herói da nossa gente.
“Tem mais não”.
REFERÊNCIAS
[1] SALLES, David. Romance e Regionalismo na saga do cacau. Tese de doutoramento apresentada a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1982 , p..25.
[2] FILHO, Adonias. O nosso reino. In: NETO, Euclides (Org.). Novos contos da região cacaueira. Brasília: Horizonte Editora Ltda; Itabuna: PACCE, 1987. p. 05.
[3] SANTIAGO, Silviano. Liderança e hierarquia em Alencar. In. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p.89.
[4] A expressão região foi utilizada nas primeiras descrições da nossa terra pelos cronistas europeus e é retomada por David Salles e por Silviano Santiago.
[5] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil. Feira de Santana: UEFS, 2002. p. 33.
[6] Ibidem. p.34.
[7] HELENA, Lúcia. Identidades em curso: José de Alencar e a hipótese Brasil. Légua & Meia – Revista de literatura e diversidade cultural, Feira de Santana, UEFS, . v. 1, 2001/2002. p. 11.
[8] CHAVES, F. Loureiro. História e Literatura. 3. ed. ampl. Porto Alegre: Editora universidade/ UFRGS, 1999. p. 17.
[9] Ibidem. p. 15.
[10]ALENCAR, José de. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. In: CASTELLO, J. Aderaldo. A Polêmica sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953.
[11] ALENCAR, José de. Benção Paterna. In: Os Sonhos D’Ouro. São Paulo: Ática, 1981.
[12] Idem. op. cit.
[13] PEREIRA, Elvya. Piguara: Alencar e a invenção do Brasil, op. Cit., p.37-38.
[14] SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBE, 1996.
[15] SEIXAS, Cid. O sumiço da santa: síntese do romance urbano de Jorge Amado. In: Triste Bahia, oh! quão dessemelhante: notas sobre a literatura na Bahia. Salvador: EGBA, 1996. p. 92.
[16] CANDIDO, Antonio. Poesia, documento e história. In.: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 52.
[17] AMADO, Jorge. Conversations avec Alice Rillard. Paris: Gallimard, 1990, apud BENÏCIO, Itazil. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 74.
[18] Ibidem. p.74.
Professora
Doutora Itana Nunes.
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