O ELO PERDIDO
COM O LEITOR
por Cid Seixas
O
leitor que busca no texto literário o prazer das descobertas, dos encontros
inesperados e dos reencontros; que sabe cumprimentar a alegria das
insignificantes banalidades do cotidiano e das grandes descobertas do espírito,
lerá mais de uma vez os contos de Aramis Ribeiro Costa em A assinatura perdida.
A
sua matéria, transmudada em arte, é a vida, a vida com seus vícios, virtudes,
grandezas e misérias. A pequenez e a redenção dos homens.
Sua
linguagem, contida e depurada, sugere a leitura atenta dos clássicos de todos
os tempos, brasileiros e estrangeiros. A naturalidade com que transita por
entre os artefatos e artifícios da construção ficcional revela o leitor e o
aprendiz dos narradores franceses e russos. Dos portugueses e brasileiros,
especialmente de um clássico da modernidade, Josué Montello, a quem o livro é
dedicado.
Com
isso não se aponta dependência ou falta de originalidade, mas a retomada
consciente e inventiva de uma tradição afortunada. Aramis Ribeiro Costa é um
narrador que sabe construir seu texto e contar uma história bem engendrada. Há
um sensível equilíbrio entre o domínio da linguagem, ou a construção do texto
vernáculo, e a fabulação de um mundo paralelo. Um mundo inventado com tanta
arte que parece competir com o mundo real.
A encruzilhada na qual
derrapam alguns dos novos ficcionistas brasileiros é o descompasso entre a
escrita e o invento. Autores, como o contista João Carrascosa (premiado
com Hotel Solidão, publicado em 1994 pela Scrtitta), que dominam de forma notável a linguagem
poética, fazendo do texto em prosa uma elegia à escritura, não engendram
conflitos e situações capazes de preencher os vastos descampados do discurso. O
leitor atento percebe que as conquistas formais deixadas pelo estruturalismo
constituem lições preciosas e, por isso mesmo, ainda presentes na criação
literária deste fim de século.
A
partir da consciência crítica do escritor e do domínio das metalinguagens do
ofício, novos prosadores apuram os recursos linguísticos disponíveis atingindo,
às vezes, um nível de linguagem classificado pelos teóricos da pós-modernidade
como neobarroco.
Os
contos de A assinatura perdida mantém-se
em outro patamar. Marcados pelo gosto clássico da narrativa, eles se reinventam
como expressões legítimas dos nossos dias. Expressões que não aspiram o
reluzente selo da vanguarda mas ocultam a não velada ambição da permanência.
O
crítico e contista Hélio Pólvora saudou com entusiasmo a aparição deste livro
de Ribeiro Costa: “Aleluia. Ainda se escrevem contos que são contos. O conto
que narra, a partir de um núcleo ficcional definido”. E sintetizou a natureza
da invenção do autor: “O conto na tradição dos clássicos, mas tocado pelo
espírito da modernidade.”
Convém,
a propósito, lembrar que os artistas clássicos faziam sua aprendizagem de modo
rigoroso. Antes de se considerarem artistas deviam se tornar artesãos
competentes e bem formados. Um escultor só passaria de artesão a artista depois
de domar os mistérios do mármore e vislumbrar por entre eles os mistérios do
mundo. Um poeta deveria, antes de tudo, saber escrever. Dominar os segredos da
língua do seu povo para depois criar a sua própria língua poética.
Mas
hoje, quanta gente incapaz de desenhar uma forma simples resolve pintar um
quadro revolucionário... Antes mesmo de aprendermos a escrever com clareza os
sentidos da prosa do dia a dia queremos inventar novos sentidos na intrincada
arquitetura do verso. Por isso a palavra não fala, cala. Muitos escritores, que
começaram a escrever antes de saber ler, perderam o elo com o leitor. Seus
livros pulam por aí, incompreendidos pelo mundo, à caça de editores e leitores.
Os
contos de A assinatura perdida,
ao contar uma história de forma quase irretocável – porque o modo de narrar e
aquilo que é narrado constituem um ao outro – estabelecem o elo perdido com o
leitor. O livro de Aramis Ribeiro Costa pede ser lido com prazer tanto pelo
leitor mais simples e menos afeito aos requintes da escrita, quanto pelo leitor
exigente que encontra aí um diálogo vivo e bem urdido com suas próprias
indagações.
Antes
de usar a escrita e pedir a palavra, Ribeiro Costa aprendeu a ouvir, tornou-se
leitor perspicaz e atento, para só depois dividir com os outros leitores a sua
versão do mundo.
Por
isso as doze narrativas de A
assinatura perdida são todas da melhor qualidade. Algumas podem ser
lidas uma, duas, muitas vezes, com renovado prazer. O autor sabe inventar,
inverter, o mundo que viu, ou gostaria de ter visto, e fazê-lo caber nas poucas
páginas do conto. Suas histórias obedecem ao arquétipo do conto. Por isso são
breves, as tramas são simples, compostas por um só núcleo. Mas a brevidade bem
tecida projeta na mente do leitor o perfil das personagens e a complexidade dos
temas sugeridos.
Mesmo
numa narrativa destoante do conjunto como é “Itapagipe”, o leitor é cativado,
aprisionado, pelo mundo ficcional construído. Aprisionado e liberto, porque a
ficção é um jogo que nos permite o retorno negado pela vida.
Destoante
do conjunto porque, se as outras onze narrativas do livro, na sua
circularidade, realizam a estrutura do conto, “Itapagipe” se tece como se
costurasse partes de uma narrativa maior: como capítulos de uma novela que
ainda não foi escrita. O conto, como bem demonstram as histórias deste livro, é
um mundo autônomo e completo, embora sintético. Na sua unidade lembra o ovo,
célula única, porém plena de vida.
Independentemente
das ressonâncias da mídia nacional, avara para com os autores da província,
arrisco avaliar (como é tarefa da crítica rodapé): estamos diante de um livro
definitivo. De um dos melhores exemplares do novo conto brasileiro.
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O
elo perdido com o leitor. Artigo crítico sobre o livro A assinatura perdida, de Aramis Ribeiro
Costa. Contos. São Paulo, Iluminuras, 1996, 120 p. Coluna “Leitura Crítica” do
jornal A Tarde, Salvador, 25
nov. 96, p. 7.
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