DAVID SALLES
E A CRÍTICA
DE
RODAPÉ
por Cid Seixas
David
Salles começou a publicar os primeiros contos quando Glauber Rocha, Florisvaldo
Matos, João Ubaldo Ribeiro, Calazans Neto, Paulo Gil Soares e outros formavam o
mais criativo grupo de escritores e artistas da Salvador que, na metade do
século, se debatia entre o provincianismo e o cosmopolitismo. As Jogralescas,
com as primeiras experiências cênicas de Glauber, o grupo Mapa, nascido em
torno da publicação do mesmo nome, e a revista Ângulos reuniam quantos tivessem talento ou pretensões
intelectuais.
O
conhecido suplemento literário do Diário de Notícias e as páginas
inovadoras do Jornal da Bahia acolheram em 1958 as primeiras
publicações de David Salles, época em que ele participou da revista Ângulos. Convém lembrar que o JB reunia
no seu corpo de redação os escritores e artistas mais expressivos do nosso meio
que, além do jornalismo diário, emprestavam uma dimensão surpreendente às
páginas de cultura.
Sua
estréia em livro se deu em 1961, no volume coletivo Reunião, ao lado de
Sônia Coutinho, João Ubaldo Ribeiro e Noêmio Spinola, este último então diretor
de Ângulos. Já no ano seguinte, publicava A traiçoeira invenção da
noite, pelas Edições Macunaíma, editora criada pelos remanescentes da revista Mapa.
Formado
em direito, a exemplo de outros companheiros de geração, David Salles trocou o
exercício da advocacia pelo início de uma nova carreira: matriculou-se no curso
de Letras e, após a conclusão, iniciou uma vida acadêmica que durou até a sua
morte prematura.
Foi
como professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal da Bahia e,
eventualmente, como professor visitante nos Estados Unidos que ele se dedicou
sistematicamente à crítica, deixando em suspenso a atividade de ficcionista.
Como crítico universitário publicou Primeiras manifestações da ficção na
Bahia(pela UFBA e, uma segunda edição ampliada, pela
Cultrix), O ficcionista Xavier Marques: um estudo da tradição
ornamental e o conjunto de ensaios intitulado Do ideal às ilusões:
alguns temas da evolução do romantismo brasileiro,
ambos
pela Civilização Brasileira.
Mais
de uma centena de textos dispersos foram publicados também em O Estado de São Paulo, no Minas Gerais Suplemento Literário e,
principalmente, em A Tarde, onde
manteve, desde os fins da década de setenta ao início da década de oitenta, a
coluna “Crítica de rodapé”.
Firam
inéditos um livro sobre Jorge Amado, mais um outro sobre ficção na Bahia e o
volume Crítica de rodapé.
Neste
último, reunia o que considerava essencial do seu pensamento crítico, centrado
em obras de ficção. A mesma atividade de ficção que ele interrompeu para se
dedicar integralmente à crítica.
É
do prefácio escrito por David para o último livro inédito que retiramos o
trecho seguinte:
“Aconteceu
em Washington. Procurei um renomado professor universitário, autor de vários
livros de crítica literária sobre a poesia em língua inglesa, e solicitei-lhe
informações acerca das principais correntes ou tendências contemporâneas de
abordagem na crítica literária norte-americana. Ele me lançou um olhar de quem
se sente ofendido e, como se condescendesse à minha ignorância, respondeu com
um desabafo de indignação: Não sou crítico literário; sou um scholar.”
Esta
passagem, que abre o volume Crítica
de rodapé, talvez sirva para sugerir a distância entre a crítica, como
atividade responsável pela criação de elos entre as obras e os leitores, e o
ensaismo universitário, mais voltado para si mesmo do que para a circulação do
texto literário.
O
crítico está mais interessado em arriscar uma leitura de livros, no momento em
que são publicados, respondendo pelos muitos equívocos e pelos possíveis
acertos. Sua atividade, desdenhada pelos criadores menos seguros, consiste numa
operação análoga ao do leitor: ler e expressar o seu gosto pela leitura.
Trata-se,
então, de fazer circular as ideias contidas nas obras; de trazer para a mídia
aquilo que quase sempre permanece distante da mídia.
Como
leitor comum que é, envolvido com o mundo real, com suas paixões e suas
desaventuras, um crítico emite opiniões tão distantes das opiniões de um outro
crítico, quanto um leitor possa divergir de outro leitor. E é bom que assim o
seja. A pluralidade assegura a possibilidade de inovações da literatura. Sendo
uma arte e não uma ciência, é o gosto de um momento histórico que constrói o
seu processo de transformação.
Observe-se
que os estudos universitários, mesmo quando revestidos de uma função crítica,
situam-se em posição diversa. O estudioso acadêmico quer fazer ciência, e só
considera a sua atividade legítima quando proclamada científica. Ele não
arrisca. Suas análises, quase sempre, se desenvolvem em terrenos firmes, não
cediços. O gosto é obliterado, qual filho bastardo de uma família de tradições.
Expulsa
da academia, à crítica de caráter impressionista só restam as páginas
descartáveis dos jornais. E mesmo nestas, quase nunca alcança os espaços de
destaque, tendo chegado aos cantos menos visíveis, aos rodapés. Daí a
designação – “crítica de rodapé” – atribuída à atividade dos leitores e amantes
dos textos que querem proclamar seu enamoramento e escrever em letras impressas
as qualidades do objeto amado.
Tal
foi a tarefa a que David Salles se dedicou, “consciente dos riscos que corre
abdicando ser scholar em
tempo integral, isto é, em todos os momentos de sua convivência com o texto
literário”, conforme as palavras deixadas à margem dos artigos que constituem o
livro inédito Crítica de rodapé.
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David
Salles e a crítica de rodapé. Artigo sobre o lugar do crítico David Salles no
panorama brasileiro. Coluna “Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 21 jul. 97, p. 7.
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