Conversa de chifre enroscado
Houve tempo em que as
aventuras do país grapiúna eram escritas à lâmina de fação na mata virgem. As
enxadas nas roças de cacau traçavam o destino de um cultura. A riqueza parecia
não ter fim, até que a bruxa varreu os ventos da pujança.
Destruída a economia
cacaueira, abandonadas as léguas da promissão, as antigas aventuras vividas
precisam continuar vivas. É assim que surge uma nova vertente literária
renovando o filão aberto na literatura brasileira por Jorge Amado e Adonias
Filho. Eles foram os narradores da construção de um mundo novo, do
desbravamento das terras do sem fim. Mas este mundo teima em viver, através da
escrita de homens e mulheres que têm o umbigo enterrado numa cova de cacau.
Euclides Neto é um
mateiro que aprendeu os caminhos do mundo pelos caminhos da roça. Estudou na
cidade grande, viajou civilizações, percorreu os compêndios das leis, mas
voltou logo para sua gente, onde saberes ancestrais o aguardavam. É neste
espaço, ou melhor, ampliando este espaço, que ele constrói a sua obra de
escritor. Os romances Berimbau, Vida
Morta, Os Magros, O Patrão, Comercinho do Poço Fundo, Os Genros, Machombongo e
A Enxada (são oito) dão testemunho das muitas coisas que ele tem para
contar.
Como o seu texto de
contador de histórias é uma roça de cacaueiros resistente às vassouras-de-bruxa
da crítica, ele pode ser abordado pela crítica; pode ter seus defeitos postos à
luz da razão, porque as boas qualidades da escrita respondem aos eventuais
defeitos.
Muito se fala da
humildade e da modéstia deste escritor. Numa província de escreventes
empenachados, Euclides Neto não desdenha de uma opinião contrária, mas procura
descobrir nela um desafio para novos voos.
Quando, numa destas
leituras críticas, procurei levantar aspectos discutíveis no processo de construção
do romance Os Magros (ver o artigo
“Vozes sufocadas”, incluído no livro Triste
Bahia) em vez de sentir-se ofendido, Euclides Neto estabeleceu um diálogo
criativo e respondeu à provocação com a fábula redentora de A Enxada. Neste romance, carregado de
otimismo, ele procurou compensar o pessimismo demasiadamente esquemático de Os Magros.
Como a questão dá panos
para manga, incluí o estudo crítico da obra do autor num projeto de pesquisa
desenvolvido nos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UFBA. O primeiro trabalho
de vulto sobre seus romances vem sendo realizado pelo jornalista Elieser Cesar,
a quem propus tomar Os Magros como
eixo da sua dissertação de mestrado.
Mas peço licença ao
leitor para hoje dar notícia de um outro Euclides Neto: o lexicógrafo. Num
livrinho útil e pioneiro, ele reúne palavras e expressões correntes na região
sul da Bahia. Como sabe que a televisão, com o prestígio da linguagem enlatada,
mais dia menos dia, empobrecerá a língua falada no Brasil, quer deixar em letra
impressa os inventos e usos da gente da terra. De um lado, as novelas e
programas de TV impõem a linguagem dos estúdios aos falantes das mais diversas
realidades. Do outro lado, as rádios FM tomam por locutor um papagaio de fala
pasteurizada, desprovido de qualquer marca regional. No milênio que está
próximo, o que restará da língua e da cultura tão ricas e diversificadas destes
brasis? Em lugar do português surgirá, talvez, o televisês, ou o comuniquês;
o dialeto predador da mídia – o exterminador do futuro.
Era preciso, portanto,
que alguém iniciasse, no país do cacau, a tarefa de preservar o que hoje está
virando peça de museu: o jeito, a fala da gente. Não se espante: o que você
acabou de ouvir da boca do tabaréu, do homem da terra, já é coisa do passado,
conversa de cifre enroscado. Na rede
navega a nova linguagem.
Dicionareco
das roças de cacau e arredores é o título do trabalho
de sondagem, publicado pelo Editus, Editora da Universidade Estadual de Santa
Cruz (que, com todo respeito à Santa Cruz, bem poderia se chamar Universidade
Estadual Grapiúna).
Como o artista abre
caminhos e antecipa os movimentos da tropa, sem ser especialista, Euclides Neto
está dando de lambujem (ver o Dicionareco) aos professores de linguística
do português da UESC o chute inicial de possíveis trabalhos acadêmicos. Daqui a
vinte, trinta, cinquenta anos, pesquisadores do dialeto grapiúna tomarão este
livrinho como vade mecum, como
testemunho autorizado de uma época.
Por enquanto, o Dicionareco das roças de cacau e arredores serve de guia para a leitura dos escritores
da região, especialmente para nós, admiradores da escrita mateira, de-picado-a-largo de seo Ocride.
Conversa de chifre
enroscado. Artigo crítico sobre o livro
Dicionareco das roças de cacau e arredores, de Euclides Neto. Coluna
“Leitura Crítica” do jornal A Tarde,
Salvador, 2 fev. 98, p. 7.
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