DO JORNALISMO À
CRIAÇÃO LITERÁRIA
por Cid Seixas
Auto-Retrato, antologia idealizada por James Amado,
que tive o prazer de editar, em 2003, é um livro que se escreveu a muitas mãos
e há muitos anos; ou melhor, ao longo dos anos. As mãos do escritor maduro e
com seguro domínio dos seus instrumentos de trabalho, reunindo os textos que
compõem esse livro de retalhos, ao completar sessenta anos, não são as mesmas
mãos do incipiente cronista que, nos anos sessenta, verteu pelas páginas do
velho Diário de Notícias golfadas de mel e de fel, às vezes
misturadas numa mesma taça. São outras também, diversas das do cronista
de Na casa do sem jeito, as mãos que escreveram O último
salão grená e aquelas outras, definitivamente seguras, que traçaram as
linhas precisas de Vila Nova da Rainha Doida.
Esse livro é, mais do que um painel,
uma espiral. Ascendendo, depois de muitas voltas, idas e vindas, até achar o
caminho mais simples e mais próximo da chegada: a maturidade.
Nascido a 19 janeiro de 1943, na cidade
de Santa Luz, região sisaleira da Bahia, Guido Guerra viveu boa parte da
infância e da adolescência (1947-1958) em Senhor do Bonfim, onde o seu pai, o
futuro desembargador Adolfo Leitão Guerra, foi Juiz de Direito.
Em Salvador estudou no Ginásio
Ipiranga, no Colégio de Aplicação da UFBA e, finalmente, no Colégio da Bahia
(Central), onde começou a fazer o curso Clássico, que não chegou a concluir.
As redações de jornal foram
responsáveis pela sua formação posterior. Mesmo sem curso universitário obteve
o registro de Jornalista Profissional, após os muitos anos de aprendizado.
Nesse ponto, sua trajetória foi idêntica a de muitos escritores brasileiros
tanto do século XIX quanto do século XX, cuja escola superior foi o trabalho
diário com a palavra escrita no calor da hora e na apressada contingência do
jornal. Machado de Assis, Graciliano Ramos, ou o baiano Herberto Sales são
apenas exemplos.
Ainda estudante no Central, começou o
aprendizado no Jornal da Bahia, em 1961, recém-fundado diário que
teve em seus quadros intelectuais como João Carlos Teixeira Gomes, Florisvaldo
Mattos, Glauber Rocha, Ariovaldo Matos, David Salles, Paulo Gil Soares e
outros. Pouco depois, por volta de 1962, transferiu-se para o Diário de
Notícias, onde foi repórter e logo em seguida começou a assinar uma coluna.
Sobre os anos de atuação de Guido
Guerra no velho DN, Jorge Amado deixou algumas páginas registradas no livro de
memórias Navegação de Cabotagem que bem revelam o perfil
combativo do jornalista e do futuro escritor. Em 1972, o jornalista responde
pela primeira vez a um inquérito na Polícia Federal, órgão civil responsável
pela censura e pela repressão aos adversários do regime militar implantado em
1964 e que, poucos anos depois, se caracterizaria como uma longa ditadura de
direita, a serviço da política imperialista dos Estados Unidos, hoje plenamente
hegemônica. A essa acusação de subversão, seguiram-se muitas outras. Guido
Guerra respondeu a 17 inquéritos e interpelações do regime ditatorial. Algumas
vezes foi afastado do jornal, para voltar em seguida e tornar a ser afastado,
enquanto durou a censura e a presença dos oficiais militares nas redações dos
jornais.
Em 1963, escreveu no semanário Folha
da Bahia, jornal de esquerda empastelado pelo golpe militar de 64, cuja
redação funcionava na sede do Partido Socialista Brasileiro, congregando
militantes do clandestino Partido Comunista.
Em seguida passou a colaborar com o
Jornal IC, dirigido por Ariovaldo Matos e José Gorender, ambos anteriormente
ligados à Folha da Bahia. A partir de 1977 retorna ao Jornal
da Bahia, onde assina a coluna “Nariz de Cera”, transferindo-se em seguida
para a Tribuna da Bahia, como redator principal da seção “Roda
Viva”. Nos anos 80 torna-se editorialista e colunista do Jornal da
Bahia, funções que deixa para assinar uma prestigiada coluna no
recém-fundado Bahia Hoje, de vida curta.
O retorno ao conto
e a plenitude do escritor
Nos últimos vinte anos, Guido Guerra construiu
seu espaço no quadro do romance brasileiro com livros como O último
salão grená, Lili Passeata, Quatro estrelas no pijama e Percegonho Céu Azul do
Sol Poente, todos publicados ou reeditados pela Record.
Jornalista por formação, começou pela
narrativa curta, pela história feita para ser lida de uma só fôlego. História
que reunia a agilidade da reportagem e o humor circunstancial da crônica.
Depois, ele descobriu que precisava do tempo e do espaço romanescos para
conferir densidade aos seus personagens, muitos deles nascidos do texto
perecível de jornal.
Chegando ao romance, Guerra apurou sua
artilharia narrativa e amadureceu como escritor. Vila Nova da Rainha
Doida é o retorno ao campo de batalha da história curta. Nesse livro
ele realiza alguns contos exemplares, capazes de permanecer na mente do leitor
engendrando outras palavras. Palavras ditas do interior de cada um de nós
quando tecemos o fio de ligação entre o destino dos seus personagens e o nosso
cotidiano de leitores.
O mundo rural, as pequenas cidades do
interior, tomadas como metáforas confortáveis da sociedade global, constituem o
território mais luminoso da narrativa de Guido Guerra. As histórias
transcorridas nesse mundo emblemático são as mais fascinantes, a exemplo
daquelas passadas em Mirante dos Aflitos, cidade do Coronel Duarte e do seu
fiel escudeiro Tibério Boa Morte.
Nesse espaço denso e trágico o
ficcionista pode alcançar seus melhores relatos, transpondo para o domínio
distante das ficções do interior, a opressão e a injustiça que caracterizam a
reluzente miséria do neoliberalismo econômico.
Sem fazer apologia dos deserdados e sem
nostalgia do engajamento dos anos sessenta, o texto desse escritor dispara
certeiro e objetivo, guardando nos cofres do faz de conta os tesouros da
solidariedade e da denúncia mais consequentes.
A força da tragédia banal dos homens
simples é, às vezes, arrefecida pela busca do humor. Em meio ao desapontamento
do narrador e do leitor diante das impassíveis engrenagens da máquina do mundo,
Guido Guerra recorre ao humor de conformação um tanto irônica e cáustica,
quebrando a tensão da narrativa. Mas os melhores momentos são aqueles em que
ele enfrenta o destino das suas criaturas de papel, deixando que elas
representem a rede da vida. Deixando que elas encenem o gesto falido ou o
ensaio mambembe desse drama, cujo roteiro todos gostaríamos de reescrever. Mas
esse drama não se passa num palco mas nas ruas do nosso tempo, onde o riso
desconcertado toma o lugar que poderia ser ocupado por um soco no vazio – pelo
impassível fluir do trágico.
Convergências:
jornalismo e literatura
Além dos laços de amizade, que se
ataram há mais de trinta anos, um outro longo laço me liga ao escritor Guido
Guerra: o jornalismo, como ponto de partida, como escola da vida e da arte.
Quando eu ainda era um inexperiente
colegial e aprendiz numa redação de jornal, Guido Guerra, embora jovem, era um
jornalista experiente, respeitado e, sobretudo, temido. Respeitado, por nós,
que começamos a seguir o caminho que ele sabia andar com admirável desembaraço.
Convém lembrar que aos dezenove anos Guido já assinava a sua própria coluna,
quando habitualmente todos levávamos alguns anos na condição de anônimos
repórteres.
Sua inquietação, sua ousadia e,
principalmente, seu talento abriram os caminhos do jornalismo para Guido
Guerra. Mas, se para nós, seus colegas, ele era querido e respeitado, para os
outros, os que não privavam da sua estima, ele não era objeto do mesmo
sentimento. Era temido. Como eram temidos os ventos encanados, as mordidas de
cobra, as assombrações e, principalmente, as más línguas.
Este homem cordial de agora, cuja
maturidade deu relevo às qualidades socialmente admiradas, era um gauche,
um daqueles a quem um anjo torto disse: vai, Guido, ser Guerra na vida.
E ele foi. Foi o Papagaio Devasso, foi
o Língua de Trapo, foi o irreverente guardião dos maus costumes.
Jorge Amado, quando precisava de um
personagem para demolir a ordem e os bons costumes, tirava das ruas, das
redações de jornal, um sujeito que tinha como predicados ser magro, narigudo,
fraco, mas abusado como o capeta chupando chupeta: Guido Guerra. Eis que pulava
para as páginas do romance de Amado o então pouco amado homem de guerra, o
aguerrido. E assim aparecia, em muitos textos do conhecido contador de
histórias da nossa gente, a cara e o nome do Língua de Trapo.
Assim ele se fez conhecido.
Mas não foi assim que ele permaneceu. O
tempo poliu a pedra bruta, a brita. As águas de muitos rios lavaram a língua, o
trapo. E surgiu, reluzente, a luz do trabalho, da seriedade, do talento. Surgiu
assim o escritor Guido Guerra.
Se nos primeiros livros, o jornalista
tentava dar ares de ficção a uma reportagem única e recorrente: os fatos do seu
mundo interior; em contrapartida, nos últimos livros, o jornalista – o artesão
da escrita – se fez artista, se fez escritor.
Mas esse foi um longo caminho. Primeiro
foram cometidos os indefectíveis poemas da mocidade. Os lacrimosos poemas de
amor que todos nós, um dia, escrevemos. Nome da assombração, ou do livro de
Guido que não se materializou:Encarnação do amor.
Desencarnado continuou esse livro até
hoje, inédito, de cujo pecado Guido nunca se confessou. Folheando um velho
livro é que eu soube que o nosso autor também cometeu o inocente “pecado” da
poesia. Depois desses manuscritos inéditos, dessa poesia amorosa não
confessada, vieram os contos de Dura realidade, publicados em 1965
pela Editora Progresso; a celebre editora de Pinto de Aguiar, que foi
responsável por um raro momento de franca atividade intelectual na Bahia.
A Progresso foi uma editora baiana com
dimensão e prestígio nacionais, que refletia um instante privilegiado das
nossas atividades, do nosso mundo cultural.
Um instante em que a cultura baiana
existia perante a nação, do ponto de vista da criatividade dos intelectuais e
da resposta das instituições, e também do poder público. Um instante que, nos
dias mais recentes, foi substituído pela falta de editoras e pela falta de
políticas culturais conseqüentes. Mas naquela época de afirmação o paralisante
momento não tinha começado ainda. Quando Guido publicou Dura realidade nós
não tínhamos caído no conto do real. Uma geração ainda não havia constatado
que o sonho acabou. A Bahia vivia os resultados dos anos de Edgard
Santos, de uma Universidade atuante, viva, da Editora Progresso e de tanta
coisa mais. Foi nesse clima propício à euforia que se deu a estréia em livro de
Guido Guerra. Tendo publicado seu primeiro livro em 1965, ele estará
comemorando em breve (2005) quarenta anos de literatura. Mas por agora, são
sessenta anos de vida.
Com esforço, trabalho e confiança na
escrita, o jovem jornalista de ontem, o rebelde sem causa, encontrou o seu
caminho, a sua causa: a casa da palavra.
Quando os personagens do Guido Guerra
dos anos setenta falavam era uma voz uníssona que dizia o seu sentimento.
Somente anos depois veio a despersonalização, o dialogismo, a presença de
vários sujeitos, verossímeis, verdadeiros, independentes do seu criador.
Anos depois, não mais uma voz uníssona
dizia o seu sentimento, o pessoal e o intransferível; mas várias vozes de
vários personagens diziam o sentimento do mundo, o impessoal, o transferível a
todos nós, a toda voz. Várias vozes diziam que surgia um escritor.
Somente anos depois ele sairia da casa
do sem jeito para o céu azul do sol poente, onde Dr.
Salu anunciava as santas aparições da luz, da terra, do ficcionista
Guido Guerra. Não mais o Papagaio Devasso, não mais o Língua de Trapo, mas o
escritor, o criador de mundos e de criaturas. Aquele que aprendeu, através do
diálogo bem tecido, da voz do outro, a dar voz a si mesmo.
As angústias, as inquietações do
adolescente rebelde que antes explodiam em confissões pessoais e
intransferíveis, finalmente foram postas à margem de si mesmo e diante do
outro. Quando passou a falar não mais por si, mas pelo outro, por todos nós.
Por tudo isso, pelo talento, ou melhor,
pelo trabalho, construiu-se o artista, o escritor. E um escritor não nasce do
nada, ele nasce de um esforço, de uma determinação, de uma consciência
construtiva.
Assim se fez o escritor Guido Guerra,
presente de corpo inteiro nesse Auto-Retrato revelado a muitas mãos, nos seus
sessenta anos.
___________________
(Reunião de fragmentos de textos de Cid
Seixas sobre Guido Guerra, por ocasião da publicação do livro Auto-retrato.)
Tantos anos depois, vokti a lembrar de quando comemoramos os sessenta anos do amigo de paz, Guido.
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