NÓS, POR EXEMPLO, ATORES DA POESIA
por Cid
Seixas
Esta é uma
mesa redonda de poetas, ou melhor, é um encontro de poesia. Um momento em que
todos nós teremos oportunidade de ouvir e de falar um pouco da criação poética.
Uns falando da sua própria experiência, outros falando do contexto no qual se
insere o seu processo criativo. Falando de outros poetas.
Devo começar
dizendo que a minha presença nesta mesa, ao lado de um criador de obra vasta e
nacionalmente reconhecida, como Ruy Espinheira Filho, – poeta que “escreve no
peito dos homens”, conforme o dizer do estudioso e crítico do modernismo
brasileiro Mário da Silva Brito – a minha presença pode ser atribuída à
generosidade e à amizade do professor doutor Francisco Ferreira de Lima e dos
seus colegas, organizadores deste encontro.
Estou aqui
presente na qualidade de poeta menor, de... – gravem a expressão irônica com a
qual me defino – meio-poeta.
Acredito que
nenhum criador, nenhum intelectual, deve medir a sua importância a partir da
autoavaliação, da autoestima, mas a partir do juízo isento e descomprometido de
terceiros; da crítica, portanto. Ou mesmo de uma crítica tendenciosa. Em 1979,
Flávio Renê Kothe, quando do lançamento do meu primeiro livro que alcançou
circulação nacional, com uma edição descabida de três mil exemplares, Fonte das pedras,
publicado pela Editora Civilização Brasileira, estampou dois artigos de
exaltada crítica demolidora, um no Rio e outro em São Paulo. Num dos trechos em
que procurava desmontar a produção deste autor, ele dizia:
“Cid Seixas
parece ser um desses tantos poetas que, só porque escreve algo parecido com
versos, também se acha no direito de dizer besteiras. Não é um poetastro
simplesmente menosprezível e que não saiba nada do que está fazendo, mas também
não é uma grande voz no horizonte da poesia. Com boa vontade pode ser até
considerado um poeta quase estadual. Seixas está mais para a espacialização de
Cummings do que para a sutileza de Mallarmé. Não que ele não queira ser sutil,
mas Salvador não é Paris, especialmente a Paris do sonho de qualquer
subdesenvolvido.”
Aceitando a
definição do crítico, estabeleço desde já que o meu papel no quadro da poesia
brasileira, ou mais modestamente, da poesia baiana, é de um coadjuvante; não de
um protagonista, como a maioria dos escrevedores de versos delira ser.
É, portanto,
na qualidade de poeta que, com boa vontade, no
dizer desse crítico, pode ser considerado quase estadual, que
participo desta mesa redonda para falar de poetas federais, de poetas estaduais
e municipais.
Lembre-se
que a conhecida expressão foi ironicamente usada por Drummond, no livro Alguma Poesia, de
1930, no contexto de um pequeno poema dedicado a Manuel Bandeira, em que dizia:
“O
poeta municipal
Discute
com o poeta estadual
Qual
deles é capaz de bater o poeta federal.
Enquanto
isso o poeta federal
Tira
ouro do nariz.”
Toda
literatura – quer seja aquela que se considera patrimônio da humanidade, quer
seja a literatura nacional, a literatura estadual, ou ainda o acervo de uma
região – toda literatura é constituída tanto por autores essenciais quanto por
autores secundários, terciários etc. Os primeiros, os grandes autores, os
poetas fortes, na terminologia do crítico norte-americano Harold Bloom, são
poucos, são raros. Os demais, os poetas menores, são muitos. Mas uma tradição
literária não dispensa nem a uns nem a outros. Os escritores secundários, os
continuadores de um processo, são responsáveis pelo estabelecimento do gosto,
pela fixação das conquistas trazidas pelos mestres.
Fernando
Pessoa só pôde ser reconhecido e compreendido, depois dos seus diluidores,
depois dos pequenos poetas que deram curso ao discurso imprevisto e inovador da
sua poesia. Todos aqueles que, mesmo não sendo grandes vozes, realizam um
trabalho sério e consciente, contribuem para a afirmação da literatura do seu
povo e da sua língua.
É, portanto,
penso eu, na qualidade de escritor secundário, ou mesmo terciário, que
participo desta mesa. Ou melhor: na condição de meio poeta (pedi que gravassem
a expressão). De meio poeta porque poeta-crítico. Um pouco poeta, um pouco
crítico. Como não atribuo a mim mesmo a designação de poeta (porque poeta é
Pessoa, é Drummond, é Shakespeare), como dispenso a designação, é na condição
de leitor da poesia presente em toda arte que aqui estou.
Por isso,
não falarei do meu próprio trabalho, salvo se, acidentalmente, ele for lembrado
nas discussões que fecharão esta mesa-redonda. Falarei aqui da poesia baiana
como uma construção social, conjunta.
Os grandes
poetas causam uma espécie de vazio quando se vão. É como se inibissem o
surgimento de outras grandes vozes. Soam apenas as vozes saudosas. Depois do
fenômeno Castro Alves, a Bahia viveu uma espécie de baile da saudade das viúvas
e dos viúvos do arrebatamento lírico de Cecéu; como Castro Alves era tratado
pelos próximos.
Tivemos
dificuldade de sair do romantismo. Romantismo esse que vai impregnar os
parnasianos e os simbolistas baianos. Carentes de grandes vozes, nos apegamos
demasiadamente ao passado, à tradição. Vejam que quando o modernismo chegou à
Bahia, com a publicação da revista Arco & Flecha –
em 1928, e com a geração de poetas e teóricos como Eugênio Gomes, Godofredo
Filho, Afrânio Coutinho, Hélio Simões, Pinto de Aguiar e Carvalho Filho – vejam
que mesmo nesse momento de busca de novidades, o movimento modernista na Bahia
foi designado de “tradicionismo dinâmico”. Eles não ousavam romper com a
tradição. A tradição era mais forte do que a renovação.
Para melhor
compreensão da vida literária baiana dessa época, convém não perder de vista o
alvorecer do século, quando Afrânio Peixoto e Xavier Marques esboçaram um
procedimento estético que se tornou matriz para poetas, prosadores e
publicistas.
Entre os
nossos criadores mais destacados do início do século XX estão os chamados
"bravos rapazes" das revistas Nova Cruzada e Os Annaes, que
desempenharam o papel de disseminadores do simbolismo, no primeiro decênio do
século vinte. Mas os nomes de Pethion de Villar, Pedro Kilkerry, Durval de Moraes
e Arthur de Salles não poderiam transpor os limites do simbolismo visto da
província e anunciar a instauração do pensamento moderno. As condições do
ambiente cultural baiano criavam entraves para o grande salto que representaria
uma nova revolução na sua formação estética.
Bem verdade
que em outros estados nordestinos, poetas de inspiração parnasiana e simbolista
evoluíram para o modernismo, conforme o significativo exemplo de Jorge de Lima
– que começou como sonetista neoparnasiano, autor do antológico "Acendedor
de Lampiões", um dos XIV Alexandrinos,
e chegou a ostentar o título de "Príncipe dos Poetas de Alagoas".
Jorge de Lima conseguiu dar o salto e já com O Mundo do Menino
Impossível aderiu ao modernismo.
Até mesmo o
fenômeno Pedro Kilkerry, que foi uma espécie de "sistema de alarme
premonitório" da arte poética moderna, teve sua voz abafada pelo som
bombástico dos atabaques retóricos da Bahia. Surpreendentes são alguns trechos
de Kilkerry no Jornal
Moderno, em 1913:
–
"Olhos novos para o novo! Tudo é outro ou tende para outro!"
– “O metro é
livre: vivamo-lo. O mais importante, porém, de tudo, dessa complexidade, de
toda essa demência raciocinante é que as harmonias individuais, os caracteres
não podem ser velhos como os senadores de Roma ou os sete sábios que cofiaram
longas barbas na velha Grécia. Não se arrastam passos, braços não tremem; na
existência do século não se titubeia."
– "Ao
tempo em que escrevo estas linhas, já aí está a urgência suarenta do tipógrafo
a espiá-la e ouço a trepidação ansiosa do maquinismo impressor, a que estou
associando a ânsia dos leitores no nosso órgão, que é o do seu momento social,
da hora que soa."
Apesar da
sonora proposta vanguardista – Olhos novos para o
novo! – a província desconheceu ou não quis entender esse lado da
contribuição de Kilkerry, cujo pensamento foi encontrar paralelo anos depois,
não mais na Bahia, mas em São Paulo, pelo intrépido voyeur Oswald
de Andrade: "Ver com olhos livres", conforme notou e anotou atento
Augusto de Campos, traçando um paralelo entre os dois poetas.
Para
demonstrar a força da tradição entre nós, veja-se um caso emblemático: Em 1928
a Pongetti editava o livro Samba Verde, com
poemas nitidamente modernos, de Godofredo Filho que, antes mesmo do esperado
lançamento, recolheu toda a edição e afastou o seu autor do rol dos primeiros
modernistas brasileiros.
Teriam os
tambores antigos atingido os ouvidos cosmopolitas do modernista baiano,
abatendo o pássaro em voo pleno?
A tradição
fala mais forte na primeira capital da colônia, onde a vanguarda é tradicionista.
É este
contexto cultural que nos estrutura, que fala por todos nós. Somos todos uma
consequência desta “Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante”, conforme o verso do
nosso poeta primeiro, Gregório de Mattos.
Algumas
cidades do interior contribuíram de modo notável para a formação do quadro de
poetas modernos da Bahia. Feira de Santana nos deu tanto Godofredo Filho, autor
do longo e famoso “Poema da Feira de Santana”, quanto Eurico Alves, poeta
telúrico, que fez os ventos da roça soprarem sobre os ares cosmopolitas do
modernismo.
Do sul do
estado, das roças de cacau, veio a poesia de Sosígenes Costa. O poeta transitou
do simbolismo para o modernismo. Seu texto que mais me fascina insere-se numa
trilogia brasileira formada por Martim Cererê, de
Cassiano Ricardo (publicado em 1928), Cobra Norato, de Raul Bopp (publicado em
1931), e Iararana,
de Sosígenes Costa, escrito por volta de 1933 e publicado postumamente em 1979,
com introdução, apuração do texto e glossário de José Paulo Paes.
Iararana documenta
os resultados do contato de Sosígenes Costa com as ideias estéticas que
constituíram a espinha dorsal da revolução modernista, iniciada em 1922. Mas,
ao mesmo tempo, marca os pontos de diferenciação entre o seu programa e o do
grupo paulista, numa frutífera e personalíssima independência. Iararana é a
grande epopeia do modernismo grapiúna , contando a história da raça brasileira
a partir da imposição dos valores civilizatórios greco-romanos às culturas
nativas do país.
O texto de
Sosígenes revela a compreensão de que à arte moderna cabe realizar a tarefa de
digerir os conceitos do mundo clássico, depois de destruí-los e devorá-los, antropofagicamente.
A proposta cultural da nossa Antropofagia não é uma simples formulação teórica
do manifesto oswaldiano, mas a tradução de uma prática elaborada pelo processo
criador de escritores brasileiros; ou de qualquer escritor comprometido com o
amanhã da sua arte.
Depois dessa
geração de precursores do modernismo e de modernistas baianos, os anos
cinquenta trouxeram algumas vozes expressivas, vozes destiladas pelo rigoroso
engenho da poesia de 45. Entre esses poetas podemos citar, entre outros, os
nomes de Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, Carlos Anísio Melhor, João Carlos
Teixeira Gomes e José Carlos Capinan.
Os primeiros
poemas de Florisvaldo Mattos que ganharam audiência e notoriedade são de 1953.
Esse autor da Geração Mapa foi cooptado por Glauber Rocha para o núcleo do que
viria a ser um dos movimentos culturais mais frutíferos da Bahia. Glauber e
outros jovens, quando leram os textos de Florisvaldo Mattos, identificaram no
companheiro, alguns anos mais velho do que eles, o tradutor das suas aspirações
intelectuais pela voz da poesia. Foi com entusiasmo e admiração que a troupe glauberiana
conquistou o novo aliado. Mesmo assim, ele só veio a publicar o seu primeiro
livro, Reverdor,
em 1965. Agora, no ano de 1996, a Fundação Casa de Jorge Amado publicou de
Florisvaldo Mattos A Caligrafia do
soluço & Poesia anterior, reunindo a sua produção poética.
Outros dois
integrantes da geração Mapa que só vieram a ser publicados em livro muitos anos
mais tarde são Carlos Anísio Melhor e João Carlos Teixeira Gomes.
Anísio viveu
como boêmio e deixou seus poemas perdidos nas mãos das muitas amadas. Parte da
sua vida foi vivida em mesas de bar, nos velhos tempos da boemia, e outra parte
em sanatórios psiquiátricos, onde, em meio aos loucos, tratava-se do vício da
bebida. Anísio gastou toda a sua fortuna, herança deixada pelo pai, em viagens
a cassinos e em orgias que duravam semanas. Ele costumava fechar as boates
exclusivamente para sua roda de amigos, que eram muitos. Acabada a fortuna,
passou a viver nos hospícios psiquiátricos, chegando a ser interno como
indigente. Recuperado da bebida, terminou os seus dias numa casinha humilde e
com um emprego de funcionário público. Somente em 1982, por
iniciativa dos amigos, foi publicado o seu único livro, Canto Agônico,
embora figure com destaque em várias revistas e antologias.
O velho
Anísio, na época das Jogralescas, criadas por Glauber Rocha nos tempos do
Colégio Central, tinha a preferência do público como declamador de poemas. Para
quem não sabe, nos anos cinquenta, as Jogralescas eram verdadeiros espetáculos
teatrais, onde os jovens estudantes construíam os cenários, as situações
dramáticas, enfim, toda uma movimentação cênica, interpretando seus
sentimentos, suas ideias – seus poemas.
João Carlos
Teixeira Gomes – hoje jornalista e professor aposentado, crítico literário,
estudioso da obra de Gregório de Matos, sobre a qual escreveu um dos livros
essenciais – João Carlos Teixeira Gomes também teve o seu primeiro livro
publicado tardiamente, por iniciativa de Carlos Cunha e minha. Quando ocupei a
direção do Teatro Castro Alves, promovemos o lançamento do livro no foyer do
teatro. Ciclo
Imaginário é de 1975, mais de vinte anos depois das Jogralescas e
dezoito anos depois de ter se iniciado na literatura através da revista Mapa, a mesma
revista de Glauber Rocha, Florisvaldo Mattos, Paulo Gil Soares, Calasans Neto e
tantos outros. Em 1987 a Editora Nova Fronteira publicou, no Rio de
Janeiro, A
esfinge contemplada, o mais importante livro de Teixeira Gomes.
Por fim,
quando terminavam os anos cinquenta, isto é, em 1959, surge a poesia de José
Carlos Capinan. Ele marca o limite entre a geração dos anos cinquenta e a
chamada geração de sessenta. Poeta engajado, produziu uma obra vigorosa e
altamente expressiva, uma obra comprometida com o homem, com a luta política
pela emancipação social. Seus primeiro e mais importante livro é Inquisitorial,
publicado na Bahia em 1966 e agora, trinta anos depois, reeditado no Rio pela
Civilização Brasileira.
Capinan
levou muitos anos distanciado da poesia escrita. Tornou-se conhecido como
compositor de música popular, parceiro de Gilberto Gil e Caetano Veloso na
época revolucionária do Tropicalismo. Anos depois, retornou ao livro,
publicando algumas obras. Mas a poesia engajada de Inquisitorial constitui-se
o marco da sua expressão.
Chegamos
então aos anos sessenta, quando a poesia baiana é enriquecida por vozes múltiplas
e expressivas. Cito apenas alguns nomes, outros são igualmente dignos de
destaque. Myriam Fraga, autora de Sesmaria, Marinhas,
Femina e tantos outros livros. Ildásio Tavares, autor de Canto do homem
cotidiano, Tapete
do tempo, Ditado e, além de poeta, romancista expressivo com Roda de fogo, romance
que marca as angústias humanas e os equívocos da ditadura instaurada em 1964.
Da região de
Feira de Santana surge Antonio Brasileiro, uma das grandes vozes da moderna
poesia baiana. Ele começa a ser notado a partir de 1967, quando criou a revista Serial, de
poesia. Nos meus tempos de estudante, Antonio Brasileiro foi uma referência
importante. Brasileiro publicou Estudos, Fragmentos
de Agapanto, Os três movimentos da sonata, A pura mentira e outros.
Este ano, a Fundação Casa de Jorge Amado editou a sua Antologia poética; reunião
dos textos mais expressivos de Antonio Brasileiro.
Maria da
Conceição Paranhos é outra voz feminina da geração de sessenta, autora de Abc-reobtido, de Chão circular e
de outros livros. Neste ano de 1996, também pela Fundação Casa de Jorge Amado,
publicou As
esporas do tempo.
E encerrando
esta referência incompleta aos poetas surgidos nos anos sessenta, voltamos a
Ruy Espinheira Filho. O poeta baiano da sua geração de maior audiência aqui e
em nível nacional. Notem que Ruy começou a publicar relativamente tarde.
Nascido em 1942, somente em 1979, aos trinta e sete anos, com Julgado do vento,
mostrou seu trabalho ao país. E em 81, com suas Sombras luminosas,
recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza, instituído perlo Governo do
Paraná. É verdade que as Edições Cordel, mantidas em Feira de
Santana pelo amor à poesia, publicaram o pequeno volume Heléboro, nos
idos de 1974. Nesse livrinho em formato de cordel estão reunidos os poemas com
os quais o então estudante universitário Ruy Espinheira Filho ganhou por anos
consecutivos todos os concursos literários promovidos pela Universidade Federal
da Bahia, deixando nos estudantes da época, concorrentes de Ruy, a imagem do
imbatível lutador de palavras.
No mais,
conforme os versos do velho Gregório de Mattos, nosso poeta primeiro: “Isto
sois, minha Bahia, isto passa em vosso burgo”.
_________________
Nós, por
exemplo, atores da Poesia. Texto apresentado à mesa redonda sobre Poesia
Baiana, no I Seminário de Estudos Literários. Universidade Estadual de Feira de
Santana, 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário