Modernismo
e tradicionismo
na Bahia
por Cid
Seixas
Hélio
Simões, além de ter exercido um papel de destacado protagonismo nas relações
culturais luso-brasileiras na Bahia, participou do núcleo criador da revista Arco & Flexa (sic), uma das
publicações baianas responsáveis pela introdução da arte moderna no Brasil. O
fato de estados com a Bahia e Pernambuco, de relevante passado colonial, terem
desempenhado importantes papéis na construção da identidade brasileira,
acentuou o processo de defesa das tradições nacionais contra a importação de
modelos estrangeiros. Tal resistência ainda é considerada como uma forma de
impermeabilidade à estética da modernidade. A paradoxal conexão do modernismo com
o tradicionismo dinâmico que caracterizou a estética de Arco & Flexa foi um modo inteligente
de Carlos Chiacchio tentar abrandar a reação dos conservadores aos escritores
postos sob sua orientação.
Antes
de desenvolver o tema, agradeço à organização do XXII Congresso de Literatura
Portuguesa o convite para integrar esta mesa plenária sobre a Memória do Ensino
e da Pesquisa da Literatura Portuguesa no Brasil. Para minha surpresa e honrosa
alegria, aqui estão presentes, como expositores, dois grandes mestres da
atualidade que dão forma e relevo à memória mais viva dos estudos literários em
nosso país: os professores Cleonice Berardinelli e Massaud Moisés.
Peço
licença a ambos para iniciar a apresentação do assunto que me foi proposto e
que pode ser resumido no título “Hélio Simões: do poeta modernista ao
fomentador das relações luso-brasileiras”. Os dois mestres aqui presentes
conheceram muito de perto o homenageado neste texto. Os três viveram tanto os
momentos de fundação dos estudos portugueses em nosso país quanto o
desdobramento da Semana de Arte Moderna.
Permitam-me
então repetir, professora Cleonice, professor Massaud, coisas que ambos
conhecem há muito tempo e bem melhor do que eu.
Para o
mundo literário, Hélio Simões desponta nos últimos anos da década de vinte,
quando na Cidade do Salvador se travava o embate entre, de um lado, a
iconoclastia modernista da Semana de 22 e, do outro lado, a articulação das
propostas de modernidade com as tradições histórico-antropológicas de uma
cidade economicamente empobrecida mas ainda depositária de rica memória
cultural. Ao lado de Pinto de Aguiar, Carvalho Filho e Eurico Alves, Hélio
Simões foi um dos fundadores da revista que serviu de marco ao modernismo na
Bahia, Arco & Flexa (flecha
escrita com x, o que a tornava mais pitoresca e próxima dos primores de Pindorama).
Sobre a sua atuação na revista fundadora do Modernismo na
Bahia, em entrevista concedida há mais de trinta anos ao poeta e pintor Juraci
Dórea (posteriormente publicada no livro Eurico
Alves: poeta baiano), o escritor Hélio Simões traduz com modéstia e limitação
o papel destes jovens pioneiros. São suas palavras:
"O grupo Arco & Flexa não era estruturalmente
homogêneo. Ligava-o a juventude e um certo afã renovador que a liderança de
Chiacchio procurou dar unidade na tendência explícita de um "tradicionismo
dinâmico” que constituiu o nosso manifesto. Creio que o nosso grande papel, na
esteira do que vinha fazendo Eugênio Gomes e sobretudo Godofredo Filho, foi
procurar integrar a Bahia na agitação cultural, particularmente literária, que
já se manifestara em outros quadrantes do país." (Dórea, 1978, p. 87)
Ora, o papel principal do grupo integrado por Hélio Simões
não foi apenas este, foi também o de inaugurar uma modernidade literária menos
comprometida com a vanguarda demolidora e mais comprometida com os resultados
de um processo cultural longamente destilado. A nova e vertiginosamente rica
cidade de São Paulo buscava, no afã industrial e na velocidade das máquinas, o
mecanismo de corte com um passado depauperado. Estados Brasileiros detentores
de antigo e rico acervo intelectual, como a Bahia e Pernambuco, por exemplo,
não podiam abrir mão de bens preciosos e acumulados a custa de grandezas e misérias
em troca de quinquilharias importadas. É por isso que Gilberto Freire e o grupo
do Recife também tiveram um lugar diferenciado no quadro do Modernismo Brasileiro.
Convém registrar que tanto o grupo de Arco & Flexa quanto outros grupos baianos surgidos nos anos
vinte não tiveram uma postura modernista similar à do grupo paulista. O
modernismo não conheceu, entre nós, uma fase demolidora; ao contrário, chegou a
se opor radicalmente a algumas ações histriônicas desencadeadas pela Semana de
Arte Moderna de 22. Os integrantes da Academia dos Rebeldes, do qual
participaram o etnólogo Edison Carneiro e o romancista Jorge Amado, para citar
apenas dois nomes nucleares na moderna construção de uma identidade mestiça,
não perseguiam os mesmos traços de modernidade que caracterizaram o modernismo
da semana de 22.
Hélio Simões, autor do livro O Mar e Outros Poemas, não reduziu sua
atuação pública à revista Arco &
Flexa e ao Jornal da Ala.
Considerem-se também o seu trabalho como diretor da revista A Renascença, ao lado de Afonso Rui; a
sua seção "Crônica de arte'', no Diário
da Bahia, em 1929; a coluna "Idéias e Fatos” na Era Nova; mais tarde, a seção "Poetas e Sonetos” no jornal Imparcial; além da coluna livros escrita
entre os anos sessenta e setenta, no jornal A
Tarde.
A
vida acadêmica do poeta ganha definição em 1932, quando aos 22 anos, é diplomado
pela Faculdade de Medicina da Bahia, a mesma escola de um outro seu colega e
companheiro de geração, que também trocou a medicina pela literatura, Afrânio
Coutinho.
Médico
formado, o Dr. Hélio, como era chamado por nós, submeteu-se ao concurso de Livre
Docente e assumiu as funções de Assistente Efetivo e Chefe de Clínica.
Em
1942 foi criada a Faculdade de Filosofia da Bahia. Não existiam ainda os cursos
de Letras, de Ciências Humanas ou de Filosofia; e a Faculdade de Medicina era o
grande centro catalisador do humanismo. Ali não se aprendia apenas a curar os
males do corpo. No convívio diário com professores e colegas se aprendia
sobretudo a bem formar o espírito. Vem do século XIX a tradição que a Bahia
formava escritores-médicos e o Recife formava escritores-juristas. E essa ‘tradição
afortunada’, permitam-me desvirtuar o sentido da terminologia crítica de
Afrânio Coutinho, continua pelas primeiras décadas do século XX.
Com
a criação da Universidade da Bahia, no dia 2 de julho de 1946, o poeta Hélio
Simões, que ocupava interinamente a cátedra de Neurologia, abandona o exercício
da clínica na área da saúde mental e transfere-se para a Faculdade de Filosofia
recém incorporada à Universidade. A esta altura, como homem de sensibilidade
artística e estudioso das ciências da cultura, era também professor da Escola
de Belas Artes. O novo percurso do jovem médico estava definido.
Assumindo
a cadeira de Literatura Portuguesa, Hélio Simões procurou completar sua nova
formação acadêmica em viagens de estudos a Portugal, à França e a outros
países. Entre os portugueses, relacionou-se ou, em alguns casos, privou da
amizade de intelectuais como Teixeira de Pascoaes, Hernani Cidade, Aquilino
Ribeiro, Vitorino Nemésio e quase uma centena de outros escritores.
Foi
através desses contatos que ele propiciou a vinda para a Universidade da Bahia
de Adolfo Casais Monteiro e de Eduardo Lourenço, o primeiro para o curso de
Letras, o segundo para o de Filosofia. Com humildade, Hélio Simões justificava
a sua constante busca de intelectuais portugueses para atuarem na Bahia por uma
motivação pessoal, ou como uma forma de aprender com os seus convidados. Assim
é que propiciou a Hernani Cidade trabalhar com a defesa do Padre Antonio Vieira
perante a ‘Santa’ e demoníaca Inquisição; e possibilitou a intelectuais da
Geração de Presença a divulgação no Brasil do ainda pouco conhecido Fernando
Pessoa. Nessa esteira de intercâmbio, Vitorino Nemésio aqui publicou o livro Conhecimento de Poesia. Eduardo Lourenço, então
professor de filosofia da nossa Universidade, iniciou a frutífera ponte ligando
sua investigação à literatura.
O
papel singular desempenhado por Hélio Simões tanto foi reconhecido pelos portugueses,
na forma da amizade e da admiração, quanto nas distinções concedidas. Oficial
da Ordem Militar de Cristo e, posteriormente, Grande Oficial da Ordem do
Infante D. Henrique. Ainda em terras lusitanas, tornou-se membro da Academia de
Ciências de Lisboa, do Instituto de Coimbra, do Instituto de Geografia de
Lisboa e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa.
No
nosso país, a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe a Medalha Machado de
Assis, mais alta homenagem dessa confraria, por indicação do escritor Jorge
Amado, seu antigo rival nos movimentos literários baianos dos fins da década de
20. Uma sólida relação uniu Jorge Amado a Hélio Simões: inicialmente, a cordial
rivalidade entre os grupos modernos a que pertenceram e depois, o estreitamento
do contato, quando o neurologista Hélio Simões cuidou de Matilde, a primeira
esposa do romancista. No livro Bahia de todos os santos, Amado registra
com ternura e com admiração:
“Hélio Simões é o poeta
ilustre, o médico, o professor, o fomentador de estudos literários, o homem da
universidade, do intercâmbio cultural luso-brasileiro, com tantos e tamanhos
serviços prestados à Bahia, ao Brasil e à cultura.”
E
prossegue Jorge Amado, na caracterização desse mestre que, sem deixar de ser um
atento intérprete da cultura local, foi também um admirador e um difusor da
civilização portuguesa. Voltemos às palavras do romancista:
“Mas eu sei quanto lhe agradará esse
título no rápido e certamente incompleto perfil que aqui tento traçar de um
homem feito de delicadeza, de interesse humano, de amizade, um poeta não só nos
versos com que assinalou original presença na poesia brasileira, mas também na
maneira de ser, de viver; na maneira de dar-se aos interesses vitais da comunidade
e da cultura; um trabalhador intelectual aparentemente limitado aos gabinetes
de estudo, mas, de fato, ligado à vida popular, à rua. Eu o vi no enterro da
Mãe Senhora – ao lado de outro baiano tão autêntico, Thales de Azevedo – e
percebi que a mão mística da ialorixá estava posta sobre a cabeça do poeta.” (Amado, 1977)
Sou
testemunha do apreço de Jorge Amado a Hélio Simões. Nos anos 80, o romancista
deu-me a incumbência de preparar uma edição da poesia de Hélio Simões, para a
qual tomou todas as providências junto a sua editora, a Record, e ao Instituto
Nacional do Livro. Passados alguns meses, sem que o trabalho tenha ficado
pronto, o escritor Herberto Sales, presidente do Instituto, solicitou o
encaminhamento do livro que nunca foi organizado, por modéstia ou desambição do
próprio autor. Quando insistíamos com doutor Hélio para que ele franqueasse as
cópias dos novos textos que seriam reunidos ao livro dos anos 20, O mar e outros poemas, ele – invariavelmente –
prometia para um dia qualquer, desde que mais adiante.
Entre os
novos poemas de Hélio Simões, recordo de um que se destaca pela sintaxe, pela
economia verbal, pelo acento de uma linguagem erudita e moderna, conquistada
com o passar dos anos e a chegada da maturidade. Há aí uma ressonância de
diálogo com formas parnasianas que Fernando Pessoa teria buscado em Olavo
Bilac. Em 1960, com a inauguração da nova capital do País, o poeta encontra
motivo para um
confronto desigual e harmônico entre a secular cidade de Guimarães e a nossa
Brasília:
“Séculos caminharam
sobre a pedra.
O muro enegreceu.
Branca a cidade medra
entre o cerrado e o céu.
Guimarães é a pia
batismal
e o castelo roqueiro.
Aqui nasceu Afonso, o
príncipe, Primeiro
e ao desígnio de Deus
que tudo impele
nasceu com ele
Portugal.
Séculos caminharam sobre
a pedra.
O muro enegreceu...
Brasília
é o crisma. Novo
anseio de fé ardendo no
planalto,
confirmação de um povo
do seu destino alto.
Branca a cidade medra
entre o cerrado e o
céu.” (Simões, 1989)
Assim
era o antigo professor de neurologia que se fez um dos pioneiros dos estudos
portugueses no Brasil. Mais de uma vez ele redarguia que os seus textos, quer
fossem de criação ou de análise, não tinham especial importância.
Ainda
recordo de uma conferência lida por ele, no Gabinete Português de Leitura,
coisa rara, uma vez que suas intervenções eram quase sempre orais e sustentadas
no mais brilhante improviso. Suponho que essa conferência foi escrita, porque
se tratava de um diálogo com as tendências ou os métodos da época. Em pleno
desvario estruturalista, Hélio Simões valeu-se de Roland Barthes e de alguns
outros autores postos em frenética evidência, para fazer uma leitura mais próxima
da tradição interpretativa francesa, sem excluir as propostas mais inovadoras
do novo método estrutural. Este empenho conciliador foi uma característica que
Hélio Simões trouxe dos seus tempos de juventude e que marcou a sua
participação no movimento modernista baiano, como veremos através das suas
palavras ao longo deste artigo.
Dias
depois da conferência, escrita numa linguagem fulgurante e fundada em uma leitura
de impressionante atualidade, pedimos o texto para publicação e ele
simplesmente respondeu: “Vocês levam estas coisas muito a sério.” E o texto
nunca foi publicado.
Voltando à formação acadêmica de Hélio Simões e à sua posterior
opção pela literatura Portuguesa, surge então uma pergunta: com que credenciais
o então médico, professor livre docente e catedrático interino de clínica
neurológica assumiu a primeira cátedra de Literatura Portuguesa da Universidade
da Bahia e uma das primeiras do Brasil?
Com as credenciais de poeta modernista da geração Arco & Flexa, brilhante geração reunida em torno
da revista do mesmo nome. E com as credenciais adquiridas em muitas outras
publicações surgidas a partir daí, com as quais colaborou. As credenciais da
sensibilidade e do mistério da poesia.
A TOPADA DO MODERNISMO
Em 1928, dois grupos ou duas revistas de tendências modernas e
dessemelhantes escandalizaram o conservadorismo baiano de formação
parnasiano-simbolista e retardatária ressurreição romântica. Eram: o grupo de Arco & Flexa, inicialmente formado por Hélio
Simões, Pinto de Aguiar, Carvalho Filho e Eurico Alves, sob a liderança do
também médico e crítico literário Carlos Chiacchio; e, do outro lado, a
Academia dos Rebeldes, integrada por Jorge Amado, Édison Carneiro, Alves
Ribeiro, João Cordeiro, Dias da Costa, Clóvis Amorim, Sosígenes Costa, Aydano
do Couto Ferraz, Walter da Silveira e outros. Estes escritores tiveram como
trincheira a revista Samba, sob a
liderança de Pinheiro Viegas, mentor tanto da revista quanto da chamada
Academia.
Observe-se que os dois grupos que se propunham a construir a modernidade
literária foram buscar orientação em dois velhos intelectuais, de formação
finissecular já consolidada, o que pode ser visto como uma consequência da
natureza esteticamente prudente dos componentes de ambos. Todos eram jovens,
modernos, e... bastante cautelosos. E assim a Bahia se inscreveu, de forma
ambígua e, talvez por isso mesmo, pouco estudada, no panorama modernista
brasileiro. Para a historiografia literária, a topada que o modernismo levou
pesou mais do que os aspectos peculiares da modernidade resultantes dos
conflitos e contradições locais e regionais. Isso conferiu uma natureza mais
complexa e mais consequente aos seus escritores, resultando em qualidade, não
obstante a perda de ímpeto renovador.
Justificando a importância dos seus pares para a moderna
literatura brasileira, Jorge Amado proclama:
“Faço o balanço
dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana,
de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental
de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo
eminente, crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do Malquerer e os Sonetos do Bem-querer, de
Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos
de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os
dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Massapê; o romance de João
Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título
para Corja;
as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz; a de sonetos de Da Costa
Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema – some-se com meus
livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo.” (AMADO, 1992, p. 85)
Ora, na território da poesia, tanto a obra simbolista de Sosígenes
Costa, marcada pelos exuberantes sonetos pavônicos, quanto os sonetos de Alves
Ribeiro e de Da Costa Andrade são computados por Amado como saldo credor desse
grupo moderno.
Convém lembrar, então, um velho político da nossa terra, o
governador Otávio Mangabeira, que costumava dizer: “Pense em um absurdo.” E
logo completava: “Na Bahia já aconteceu.”
Deixando a blague de lado, sem perder o achaque do riso; assim,
também, foi o nosso modernismo. Intimamente conectado às conquistas estéticas
finisseculares, sem delas desdenhar, mas construindo a modernidade a partir de
um processo de soma, e nunca de exclusão.
Mas não apenas a Bahia foi cenário de manifestações ambivalentes.
Em Pernambuco, desde o início dos anos vinte, com os olhares voltados para o
modernismo e outras expressões de vanguarda, se anunciava um livro do paraibano
José Américo de Almeida, soprado pelos ventos da inovação. Ancorado em uma temática
e em muitos aspectos já explorados por Franklin Távora em O Cabeleira,
de 1876, e por outros autores do chamado ciclo do cangaço, o romance A
Bagaceira iniciava, em 1928, o segundo momento do modernismo e, ao mesmo
tempo, antecipava o Regionalismo do Nordeste. Jorge de Lima, que iniciou seus
estudos na Faculdade de Medicina da Bahia, não abdicou de todo da sua formação
simbolista exemplarmente manifestada na condição de ‘Príncipe dos Poetas das
Alagoas’, título conferido pela crítica da província. Mesmo sua obra maior, Invenção
de Orfeu, escrita na maturidade, é constituída por sonetos intercalados a
outros formas igualmente clássicas.
A propósito da Academia dos Rebeldes, Hélio Simões, em entrevista
à pesquisadora Ívia Alves, afirmou com propriedade: “Ao mesmo tempo em que se
publicava Arco & Flexa, saía
também a revista Samba. Pode
ser considerada uma revista reacionária do ponto de vista literário, ainda
publicando sonetos. No entanto, o grupo tinha uma linha política.” (ALVES,
1978, p. 23)
Diferentes entre si, como se vê nas palavras de um dos seus
formadores, os dois grupos modernistas baianos tinham um ponto em comum: a
discordância com o modernismo paulista. Ambos os grupos baianos estavam mais
próximos do que se fazia em Pernambuco, em sincronia silente com o trabalho de
Gilberto Freyre. Sobre o Congresso Regionalista do Recife, Hélio Simões afirmou
que, apesar de ter conhecimento das suas propostas, não leu o manifesto de
Freyre. Como não poderia ter lido, porque hoje sabemos que o Manifesto Regionalista não foi redigido, na forma por
fim conhecida, durante a organização do Livro do Nordeste, em 1925; mas somente
quando da sua publicação, nos anos 50. O texto publicado retoma ideias
presentes nas intervenções performáticas de Gilberto Freyre, motivadas pelo
citado Congresso Regionalista. (Cf. DIMAS, 2004)
Os poetas de Arco & Flexa
tinham contato com o grupo do Recife que editava a revista Cidade. E ainda com os grupos de Festa, no Rio
de Janeiro, e de Verde, em
Cataguases. Outras afinidades eletivas foram: Jorge de Lima (com Hélio Simões,
também médico), que, já formado no Rio e tendo retornado a Maceió, frequentemente
viajava à Bahia a serviço do Lloyd; e, no Ceará, o grupo baiano mantinha
contato com a jovem Rachel de Queiroz. Jorge de Lima era leitor dos textos
críticos de Chiacchio, conforme pode ser visto na sua correspondência com
Eurico Alves.
Enquanto o modernismo da Semana de 22 colocava o país em sintonia
com a modernidade europeia, o Nordeste passava por uma busca de libertação dos
modelos europeus, em favor de uma identidade telúrica. Como o conceito de
regional se confundia com o pensamento político conservador, alguns
intelectuais tentavam contornar esta inconveniência, sustentando sua proposta
de modernidade com a de pertencimento ou de identidade. Gilberto Freyre, na
contramão do ideário nazista que dominaria a Europa, deslocava o foco da questão
racial para a cultural. Convém lembrar que essa busca de identidade, distante
da eugenia racial e sustentada em culturas plurais era uma tendência dos anos
20 em outros países da América Latina. A vertente moderna a partir do regional
só ganhou dimensões nacionais com o regionalismo de 30, nascido no contexto
modernista de Pernambuco, da Bahia, do Ceará e de outros estados do Nordeste. O
mesmo Jorge Amado, que rejeitava as propostas de importação europeia e as
extravagantes estripulias da Semana de 22, chegou a uma forma de modernidade,
capaz de traduzir o seu contexto cultural, com o romance regionalista de 30.
A ideia de modernidade artística comprometida com as novas
invenções industriais, o fervilhar e a velocidade feérica das grandes cidades,
era uma ideia que seduzia o espírito industrial paulista, mas não era uma
constante no pensamento baiano e do nordeste. Poetas modernos, balizados pela
força da terra, viram alguns ícones dos novos tempos – que lhes pareceram
papagaiadas propagandísticas – como forma de empobrecimento cultural; ou como
aniquilamento de uma visão do paraíso.
Eurico Alves, do grupo Arco & Flexa,
na “Elegia a Manuel Bandeira”, convida o poeta pernambucano a ir a Feira de
Santana, onde:
“Os bois
escavam o chão para sentir o aroma da terra.” (Alves, 1990, p. 84)
E Bandeira
responde com outro poema, dizendo:
“Não sou
mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.” (Bandeira,
2005, p. 85)
Nos anos 30, "um episódio chamou a atenção para o nome de
Eurico Alves: o famoso diálogo poético com Manuel Bandeira", conforme
observa Juraci Dórea. "Sem o seu conhecimento, Carvalho Filho datilografou
os versos e enviou para Bandeira, que respondeu com outro poema. «Eu estava
operado no hospital, quando apareceram Carvalho e Godofredo Filho com a
Escusa», registrou Eurico Alves, em carta para sua filha Maria Eugenia
Boaventura, datada de 1º de janeiro de 1969." (DÓREA, 2009, p. 129)
Estudando a produção de Eurico Alves na revista quinzenal A Luva,
publicada em Salvador, de 1925 a 1932, Monalisa Ferreira toca na questão da
convivência harmoniosa entre conservadores e vanguardistas nas páginas enluvadas:
"Percebemos
um contraponto: de um lado, traços de escritas com mudanças apenas aparentes,
como Moema, de Eugênio
Gomes, que, embora fosse considerada pelas críticas baiana e carioca como a
primeira obra modernista publicada no Estado da Bahia, não apresentava
inovações; de outro lado, textos de criação com uma estética visivelmente
inventiva, como os poemas e contos de Eurico Alves." (FERREIRA, 2009, p.
172-173)
Mesmo não endossando a visão da estudiosa, quando privilegia a
escrita de Eurico Alves, de modo viesado em favor do escritor por ela estudado,
não se pode deixar de considerar a diversidade de tendências apontada no seu
bem fundamentado artigo.
Mas o que parece um abismo entre o modernismo da Bahia e o de São
Paulo pode se restringir ao impacto causado pelas ideias da Semana de 22. Como
o progresso de São Paulo trouxe, primeiro, a inquietação, lá o modernismo logo
conheceu o deslumbramento pelas novidades vindas de fora; depois trocadas pelo
mergulho dos seus escritores nas raízes nacionais, especialmente a partir de
1928. Pode-se dizer que no início dos anos 30 não há mais oposição entre as
perspectivas do sul e do norte. Mário de Andrade escreve Macunaíma, Raul
Bopp trabalha o seu Cobra Norato.
Voltando à Bahia, o crítico Eugênio Gomes, praticante de poemas de
amor surgidos na revista Arco & Flexa,
e considerado como autor do primeiro livro modernista editado em Salvador,
(CHIACCHIO, 1928) transfere esta primazia a Godofredo Filho. Com efeito, em
1925, Carlos Chiacchio escreveu na sua coluna “Homens e Obras” um comentário saudando
a aparição dos poemas modernos de Godofredo Filho (CHIACCHIO, 1925); e em 1928,
mesmo ano da publicação na Bahia do livro Moema,
de Eugênio Gomes, Godofredo Filho anunciava no Rio de Janeiro, pela editora
Pongetti, o volume Samba Verde.
(SEIXAS, 1975, p. 11)
Embora saudado e recebido calorosamente, tanto em São Paulo quanto
no Rio, por Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jayme Ovalle, Augusto Frederico
Schmidt, Álvaro Moreyra e outros, Godofredo Filho, inexplicavelmente, recolheu
o seu livro.
Na Bahia, o modernismo era caracterizado pelo grupo Arco & Flexa como “tradicionismo dinâmico”,
movimento que se propunha a inovar a partir do respeito à tradição. Sobre esta
expressão que vai aparecer e dar título ao artigo que serve de manifesto à
revista, assinado por Carlos Chiacchio, Hélio Simões esclarece:
“Na Bahia, nós
tínhamos fundamentos que não podíamos abandonar de todo. Daí o “Tradicionismo
Dinâmico”, porque nós queríamos ir para adiante, mas sem renegar o passado. E
não era fazendo tábula rasa como a revista Antropofagia, de Oswald
de Andrade, porque, na verdade, nesse primeiro momento é Oswald que tem maior
realce, Mário de Andrade apareceu posteriormente.”
E prossegue Hélio Simões:
“Eles queriam
fazer tábula rasa de tudo. Então inventamos esta expressão de “tradicionismo
dinâmico” que era tradição, sim, porque respeitávamos as tradições baianas, mas
não ficávamos presos a elas, queríamos sob a base dessa tradição construir o
futuro, uma coisa nova, porque também tínhamos a nossa ideia nacionalista.”
(Apud ALVES, 1978, p. 119-120)
Como se verá, adiante, o termo “tradicionismo dinâmico” não foi
inventado pelo o grupo, mas tomado de empréstimo ao poeta catalão Gabriel
Alomar.
Nesse
artigo de abertura da revista Arco & Flexa,
Chiacchio esclarece, em tom de manifesto, que toda cultura se vale da tradição
para encontrar novos caminhos, se vale do regional para chegar ao universal –
“sem perder o contato com a terra”. (CHIACCHIO, 1928, p. 4) Ao afirmar que a
cultura universalista refina a sensibilidade local, ele rejeita o apego ao que
chama de tradições estáticas, propondo: “Tradições dinâmicas, as tendências
modernistas, as únicas dignas de fé.” (Ibidem, p. 6)
"Quanto ao livro de
poemas Moema,
de Eugênio Gomes, considerado ainda atado aos modelos tradicionais, Hélio
Simões sublinha o fato de ter sido Eugênio quem “conseguiu dar a forma ideal do
‘tradicionismo dinâmico’. Foi seu livro que impulsionou o grupo para a produção
e publicação de uma revista dentro das idéias de um ‘tradicionismo dinâmico’.”
(Apud ALVES, 1978, p. 123)
Na
verdade, o pensamento desses jovens conciliadores encontrava eco nas propostas
de Carlos Chiacchio, influenciadas pelo poeta e ensaísta catalão Gabriel Alomar
Villalonga (1873-1941). Em palestra proferida em 1904, com título “Futurismo”,
Alomar dizia que as sociedades registram dois elementos ou duas manifestações
capitais “na aparência, de conciliação impossível e paradoxal. Eis estes dois
mundos, que com a sua convivência tecem eternamente a História: um deles, com o
olhar para trás, alimenta-se da tradição”. (VILLALONGA, 1993, p. 13)
Este
elo entre tradição e ruptura não passaria desapercebido a Chiacchio que na
série de artigos intitulados “Modernistas e ultra-modernistas”, publicados no
jornal A Tarde, de janeiro a março de
1928, e depois reunidos em livro, intitulou um dos textos: “Gabriel Alomar, o
criador do verdadeiro futurismo”, em evidente referência a Marinetti que, na
sua visita à Bahia, deixou como herança a designação dos ônibus que começavam a
chegar à cidade, por coincidência, quando os jornais repercutiam as suas ideias.
Se o futurismo de Marinetti não encontrou adeptos entre os modernos escritores
baianos, em contrapartida, os ônibus de frente alongada, novidade chegada
quando da visita do italiano, receberam seu nome. Até os anos 70 não era comum
os baianos viajarem de ônibus. A gente viajava mesmo era de marinete.
Segundo
Hélio Simões, o grupo de Arco & Flexa,
ao procurar Chiacchio, discutiu o objetivo de conciliar a tradição com a
inovação, o que, mesmo assim, não evitou que os seus participantes fossem
vistos como loucos ou inconsequentes.
Assim,
convém relembrar Gregório de Matos: “Isto sois, minha Bahia, isto passa em
vosso burgo.”
ALVES,
Eurico. Poesia. Seleção, organização e notas de Maria Eugênia
Boaventura.
ALVES, Ivia.
Arco & Flexa. Contribuição para o estudo do
modernismo. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia,
1978.
AMADO,
Jorge: Bahia de todos os santos. Guia de ruas e mistérios. Rio de
Janeiro, Record, 1977.
AMADO,
Jorge: Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro
de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record,
1992.
ARCO &
FLEXA. Edição fac-similar. Revista literária, 1928/1929, Salvador, Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1978. (n° 1, 66 p.; nº 2/3, 70 p.; nº 4/5, 90 p.)
BANDEIRA,
Manuel: Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005, p. 85.
BANDFEIRA, Manuel & ALVES, Eurico. Diálogo poético. (Ver o diálogo entre Manuel Bandeira e Eurico Alves)
BANDFEIRA, Manuel & ALVES, Eurico. Diálogo poético. (Ver o diálogo entre Manuel Bandeira e Eurico Alves)
CHIACCHIO,
Carlos: Poesia Nova. A Tarde,
Salvador, 10 jan. 1925. A nota não vinha assinada, mas como figurava na seção
mantida nesse jornal pelo conceituado crítico, a autoria não oferece dúvida.
CHIACCHIO,
Carlos: O nosso primeiro livro modernista. A Luva,
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