DAVID SALLES
E A TEORIA
REGIONALISTA
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(Cenas Literárias Baianas
nos Séculos
XIX e XX)
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por Itana Nogueira Nunes
O CRÍTICO DAVID SALLES
Não tivesse sido tão precocemente recolhido desta vida, ainda no
auge da sua capacidade intelectual, o crítico e ficcionista baiano Jesus David
Salles de Souza completaria 80 anos neste ano de 2018.
Nascido em 1º de maio de 1938, em Castro Alves, no interior da
Bahia, ainda adolescente veio para a Salvador para estudar no Colégio da Bahia,
posteriormente denominado Colégio Central, um dos centros educacionais de maior
efervescência cultural e artística dos idos dos anos 50 e 60 da Bahia, onde
conviveu e compartilhou ideias com os conhecidos Glauber Rocha e Paulo Gil
Soares, entre outros importantes intelectuais da época.
A carreira de David Salles, apesar de relativamente curta (28 anos
de atuação literária), deixou como legado um extraordinário testemunho dos
eventos culturais e artísticos das gerações de 60, 70 e início dos anos 80 no
século passado. Seus estudos críticos e teóricos trazem na sua essência muito
do que se viu e se vivenciou naquele período de tantas mudanças sociais,
políticas, históricas e econômicas tão expressivas para o Brasil.
Salles deixou registrada a sua vasta atuação nos assuntos da
crítica literária em centenas de artigos publicados tanto em jornais locais
como o Jornal da Bahia, o Diário de Notícias e A Tarde, quanto em
outros jornais do Brasil, como O Estado de São Paulo e o Minas Gerais
Suplemento Literário.
Além da sua ampla e preciosa produção acadêmica, publicada também
em livros, atuou ainda como ficcionista, poeta e contista, participando
inclusive de uma coletânea de contos ao lado de autores como João Ubaldo
Ribeiro, Sonia Coutinho e Noênio Spinola.
A sua contribuição ao longo do tempo em que escreveu crítica
literária em jornais está na capacidade analítica com que estudou diversos
temas da nossa literatura, a exemplo do seu valoroso estudo sobre o
Regionalismo.
Alguns dos seus ensaios críticos foram tomados como referência
para o estudo da obra de Xavier Marques (um dos ficcionistas mais
representativos do Regionalismo e da literatura praieira na Bahia) por autores
consagrados como Alfredo Bosi, José Aderaldo Castello, Massaud Moisés, Afrânio
Coutinho, José Guilherme Merquior entre outros historiadores da literatura
brasileira.
Eduardo Portella, conceituado crítico literário, também teceu
elogios sobre a sua técnica narrativa que misturava traços de lirismo a pitadas
de ironia.
Em verdade, conforme prova o seu largo empreendimento na pesquisa
sobre autores baianos, os ensaios de David Salles já compõem parte da história
literária da Bahia, o que era, certamente, um dos seus principais objetivos
como intelectual das nossas letras, pois nosso autor não poupou esforços e
dedicação a alguns importantes temas e escritores que fizeram parte da cena
cultural baiana nos séculos XIX e XX.
Os seus estudos sobre Xavier Marques, Jorge Amado e Adonias Filho,
por exemplo, nos dão uma visão ampla da sua sólida fundamentação teórica sobre
o regionalismo (influenciada pela sua formação sociológica), tanto em termos
nacionais quanto locais, que é o caso do regionalismo de feição grapiúna,
conhecido também como “Literatura do Cacau”.
A partir do modelo do regionalismo grapiúna, depreendido
principalmente das obras de ficção de Adonias Filho e de Jorge Amado, o crítico
baiano retoma o projeto nacionalista de Alencar, antes para discutir as
questões conceituais sobre o regionalismo, e depois para apontar a antiga
questão da tensão ambivalente entre imitação e originalidade no projeto
identitário da nação brasileira.
São muitas as aproximações teóricas entre as ideias de David
Salles e José de Alencar sobre a construção identitária do povo brasileiro.
Alencar, a seu tempo, num espectro mais amplo, tratou inicialmente de buscar a
afirmação dos valores regionais do seu povo através de uma forma de regionalismo
sem fronteiras geográficas, para tanto, invariavelmente oscilou entre o centro
e a periferia, entre a dependência e a autogênese. David Salles vai indicar que
a trajetória do projeto alencariano do século XIX, se estende por todo século
XX, numa “crescente intensidade amalgamadora”, cada vez mais proximamente
ligada à literatura. E, para Salles, é através da manifestação regionalista que
a nossa cultura irá transpor a sua condição periférica a um passo cultural mais
avançado, para assim atingirmos um melhor nível de auto-reconhecimento.
(Salles, 1971)
Os estudos e publicações de David Salles foram pauta da minha tese
de doutoramento David Salles: da crítica de rodapé à crítica universitária apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal da
Bahia e orientada pelo professor doutor Cid Seixas, a quem devo, além do
valoroso norteamento intelectual, a indicação do nome do crítico para o estudo.
Como homenagem aos 80 anos de nascimento do autor surgiu este artigo que retoma
o velho tema.
A pesquisa de fôlego intenso e aguçado senso crítico deixada por
David Salles ainda é campo pouco explorado, não fazendo justiça ao volume,
profundidade e cuidado de suas análises.
É, pois, solo fértil para interessados em conhecer melhor certos
aspectos da literatura baiana e do regionalismo literário.
David Salles viajou muitas vezes para São Paulo na tentativa de
encontrar o tratamento e a cura para a leucemia. Morreu em 17 de agosto de
1986, com 48 anos de idade, dos quais quase trinta foram dedicados à pesquisa,
à ficção e à crítica literária.
Leituras
críticas sobre Xavier Marques, Adonias Filho e Jorge Amado
A partir das leituras de: Saveiros no Mar Grande: a continuidade
do herói incorrupto segundo Jorge Amado e Xavier Marques (1971), O
Ficcionista Xavier Marques: um estudo da “transição ornamental” (1977) e Romance
e Regionalismo na Saga do Cacau (1982), do autor baiano David Salles, e da apresentação e seleção de algumas ideias
que estes textos trazem à luz sobre os autores Xavier Marques, Adonias Filho e
Jorge Amado, e de forma mais ampla, sobre aspectos da cultura nacional, apresentamos neste ensaio um mapeamento dos
pontos de vista críticos e do que podemos chamar de uma “teoria regionalista”
elaborada pelo nosso crítico.
A escolha destes três escritores para análise se dá pelo volume
significativo de pesquisa realizada pelo crítico David Salles sobre estes
representantes do regionalismo brasileiro, em especial sobre Xavier Marques,
que conferiu ao autor um destaque em termos nacionais, e o levou a um
reconhecimento nacional renomados da literatura brasileira como fonte de
pesquisa sobre o romancista.
Saveiros no Mar Grande (1971)
O primeiro destes ensaios, em ordem cronológica, corresponde à
dissertação de mestrado que David Salles apresentada ao Curso de Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia em dezembro de 1971, cujo título
original é Saveiros no Mar Grande, o homem do mar no Recôncavo baiano
segundo Jorge Amado e Xavier Marques: um exemplo da continuidade literária do
herói incorrupto, orientado pelo professor Antônio de Assis Barros.
Apesar do explícito reconhecimento do caráter autônomo e
independente da literatura, nesta pesquisa, Salles parte do pressuposto de que
a ficção pode ser um excelente campo de trabalho para a sociologia,
apresentando, assim, os romances de Xavier Marques (Jana e Joel, 1899) e
Jorge Amado (Mar Morto, 1936), como fontes para este estudo de base socioliterária.
Ainda que reafirmasse as diferenças categóricas entre estes dois
conhecimentos, a Literatura e a Sociologia, porque tivesse na sua formação
ciência de ambos, David Salles, apoiando-se nas teorias de Antonio Candido a
respeito da Sociologia da Literatura, ainda recentes por aquela época (Literatura
e Sociedade, de 1967), elege dois meios operatórios para analisar os
romances dos dois escritores baianos. O primeiro consiste em fazer a descrição
dos vários aspectos da sociedade refletidos nestas obras; o segundo, conduz a
uma análise da relação dos escritores com a natureza de suas produções e destas
com a organização da sociedade.
O método de análise apresentado neste estudo está voltado para a
apreensão do texto em si. O que irá reafirmar a tendência de Salles a abordagem
imanente, forma de verificação literária que pode ser detectada em grande parte
dos seus escritos tanto da crítica de rodapé (jornalística), quanto da crítica
acadêmica. Assim, nestas análises são desconsiderados quaisquer “conceitos
pré-estabelecidos” sobre as obras ou autores em questão, apresentando apenas os
referidos textos destes autores como objetos da análise.
Dois problemas, contudo, se apresentaram a tal empresa num
primeiro momento: em primeiro lugar a mudança do aspecto geográfico social
baiano, reduzido em alguns pontos quase que somente à história, imporia certa
dificuldade à análise do romance de Xavier Marques que é do século XIX; em
segundo, a escassez de estudos sobre a vida socioeconômica no recôncavo baiano,
palco dos dois romances, à exceção da tese de Luiz de Aguiar Costa Pinto, Recôncavo:
laboratório de uma experiência humana, de 1958, o que também tornaria a
análise mais arriscada.
Embora enxergasse tais limitações, David Salles toma como
finalidade principal a extração dos aspectos sociais das obras em si mesmas, se
lançando num trabalho de reconstrução do sistema de vida do homem do mar do
Recôncavo baiano:
“O que então intentamos, tomando por base as
obras em si mesmas, foi um esforço de reduzir à linguagem conceitual e objetiva
– com apoio nas lições da Ciência da Comunicação, sobre linguagem e
subjetividade – o material ficcional de Mar Morto e Jana e Joel,
a fim de retirar toda a carga afetiva que, nele, óbvia e necessariamente, pela
própria natureza da criação ficcional, foi impregnado por Jorge Amado e Xavier Marques.”
(Salles, 1971, p. 5)
A partir daí Salles elabora a reconstituição do sistema de vida
dos saveiristas, canoeiros e pescadores do mar do Recôncavo tal como este se
apresenta nas obras, transcrevendo passagens inteiras dos romances para
realizar tal descrição. Esta se constitui a primeira parte do ensaio.
Salles utiliza o termo “Recôncavo” para delimitar o alcance
geográfico destes romances baseado na conceituação de Costa Pinto que o define
como “a região que circunda a Baía de Todos os Santos”, sendo a “zona da pesca
e saveiro” uma das suas sub-áreas.
Na sequência do estudo, o autor irá analisar esse sistema de vida
e a posição de Marques e Amado em relação a este sistema. Ou seja, analisa a
vida destes homens do mar em relação aos padrões sociais, econômicos e
tecnológicos vigentes na sociedade industrial e burguesa no Brasil, emergente
desde o século XIX, com vistas a atitude aprovadora deste sistema observada nos
autores de Mar Morto e Jana e Joel.
Com isso o autor irá defender a ideia de que tais comunidades
guardam ainda as características de uma sociedade primitiva, baseada na
“solidariedade” não assimilando portanto a sociedade tecnológica ou de
“serviço”, o que corresponde a dizer que as formas de sociedade apresentadas
nos romances foram idealizadas pelos dois romancistas.
Não obstante, não se percebe no autor uma preocupação em verificar
se este sistema de vida existe ou existiu na realidade. Afastando-se, assim, a possibilidade
de ter sido este um estudo meramente sociológico. Entretanto, quis o autor
saber porque na visão de Xavier Marques e Jorge Amado essa “realidade idealizada”
é lírica e positivamente vista como válida social e culturalmente para os seus
personagens, que se mostram livres dos conflitos sociais.
Serviram de bases teóricas para a análise dos dois romances, além
dos conceitos de Sociologia sobre “organização social” e “grupo social”,
retirados principalmente dos textos de Florestan Fernandes (Sociologia,
1960) e Antônio Luís Machado Neto (Teoria do Direito e Sociologia do
Conhecimento, 1965), os textos de Raymond Williams (Cultura e Sociedade,
1969), de Lucien Goldmann (Sociologia do Romance, 1967), de Georg Lukács
(La Theorie du Roman, 1963) e de Antonio Candido (Literatura e
Sociedade, 1967 e Tese e Antítese, 1964).
Retomando a tese defendida por Salles sobre o status concedido ao
homem do mar e a valorização da sua permanência no mar, percebemos que tais
conclusões estão relacionadas ao caráter gregário e imobilista do grupo. Pois
tanto para Marques, quanto para Amado, quem era do mar não trabalhava na terra,
devendo nele permanecer para que se perpetuasse essa tradição, o que representa
uma atitude valorização do mar em relação à terra.
Analisando alguns aspectos estruturais de Saveiros no Mar
Grande observa-se um estilo de escrita que se distingue, em determinados
aspectos, dos outros trabalhos de cunho universitário do autor. Nele, a
recorrência quase que total aos textos de criação de Xavier Marques e Jorge
Amado (que ocupam bem mais da metade do corpo do ensaio) é a estratégia de
comprovação do autor, tecendo através de fragmentos dos próprios textos
literários a sua escrita, não destacando nunca a localização das citações, a
não ser pelas aspas, constantemente utilizadas dentro do seu próprio discurso,
como se vê no trecho a seguir:
“Vivendo “sua infância de junto do mar”, cada
filho de saveirista, canoeiro ou pescador terá o futuro “já traçado pelo
destino do pai, do tio, dos companheiros, de todos os que o rodeavam naquela
beira de cais: seu destino era o mar” (Mar Morto, 49 e 51). E será projeto do
pai (como é o de Guma), do tio (como o fora de mestre Francisco para com Guma),
etc., etc., “conduzir a criança nas suas viagens, de cedo lhe ensinar a manejar
o barco” (Mar Morto, 220).” (Salles, 1971, p. 21)
E num trecho seguinte também utilizado por Salles:
“Os liames grupais e familiares estão presentes
desde o primeiro instante da iniciação nos mistérios do mar: “agora o filho
começava a andar, brincava de barcos que o velho Francisco fazia” (Mar Morto,
220). Ou desde a breve infância, quando “já estaria então acostumado com as
velas, com as quilhas dos barcos, com as canções do mar e os apitos dos navios”
e então é levada nas viagens para “de cedo lhe ensinar a manejar o barco” (Mar
Morto, 210). No cais, os jogos infantis têm a mesma motivação, “contando
aventuras de pesca, falando a língua estranha dos marítmos, fazendo apostas
sobre corridas de barcos” (Mar Morto, 50). E, além disso, há pouco tempo para
aprendera ler e escrever. Como Guma, “não levavam lá, ele e os demais filhos de
mestres de saveiros e canoeiros, mais que o tempo de soletrar uma carta e
garatujar um bilhete” (Mar Morto, 50).” (Salles, 1971, p. 25)
Um outro aspecto que chama a atenção é que, apesar de ser este um
trabalho de abordagem marcadamente sociológica, nele podem ser visualizadas as
primeiras pistas para a fundamentação das reflexões críticas literárias que
reapareceriam nos seus estudos posteriores, O Ficcionista Xavier Marques e
Romance e Regionalismo na Saga do Cacau.
Uma destas pistas é a observação do autor sobre o caráter ambíguo do projeto ideológico regionalista
encontrado nestes romances no que se refere à tensão entre a tradição da vida
na sociedade “solidária” e a vida na sociedade de “serviço” onde está o
progresso, tema que será retomado com maior fôlego no estudo desenvolvido em Romance
e Regionalismo, de 1982; uma outra está relacionada à constatação da
resistência da comunidade ou “nação” (como irá nomear a comunidade grapiúna), à
penetração do domínio cultural, conservando sempre os seus valores grupais.
Entre outros temas tratados no estudo do autor está a condição de
inferioridade da mulher neste sistema de vida social, levando-a a aceitar, pelo
total envolvimento cultural, os padrões masculinos, aos quais ela deveria se
acomodar em favor de um “ajustamento conjugal” pleno à noção de fidelidade e
permanência no mar. Neste sistema, restavam à mulher pouquíssimas alternativas
de sobrevivência. Não tendo um homem (do mar) como seu, esta mulher dispunha de
duas alternativas: prostituir-se ou enfrentar o trabalho duro de doméstica,
lavadeira ou cozinheira de algum estabelecimento. (Salles, 1971)
Salles destaca, entretanto, no caso específico de Mar Morto,
uma abertura da perspectiva de ascensão social da mulher no grupo, representada
através da figura de Lívia, mulher de Guma. Tal representação, porém, se
configura uma exceção, pois Lívia não pertencia, verdadeiramente àquele grupo
social, não devendo seguir, portanto, os padrões comunitários prevalecentes. De
todo modo, o autor constata, que a situação sexual da mulher, nestes romances é
de total inferioridade e dependência em relação ao homem.
Conclui o autor que o “imobilismo social e profissional” destes
grupos, cujos “heróis ficcionalmente recriados” (saveiristas, canoeiros e
pescadores) são os principais representantes, leva a uma decadência lenta e
irreversível. Daí a recriação dos personagens como heróis, que tentam até o fim
a sobrevivência do grupo e de todos os valores culturais a ele inerentes.
Na segunda e última parte da dissertação, após a exposição do
sistema de vida dos “homens do mar” do Recôncavo, são lançadas questões acerca
das estruturas socioculturais apontando atitudes semelhantes em romances
“díspares” como Mar Morto (século XX) e Jana e Joel (século XIX),
com autores igualmente “dispares” em estilo, época e cosmovisão.
Nos dois romances, apesar de tais disparidades, tem-se a mesma
temática; a mesma defesa ou aprovação ao sistema de vida dos homens do mar; a
não valorização às mudanças culturais, sociais, econômicas que levariam a um
melhor padrão de vida; a ascensão na escala social não é almejada pelos heróis
de ambos, que são igualmente incorruptíveis, conservadores e primitivos, não
tendo, portanto, a intenção de mudar o mundo conforme o “modelo de herói” que
se conhece.
O Ficcionista Xavier Marques: um estudo
da ‘transição’ ornamental (1977)
O estudo intitulado “A Ficção Romântica na Bahia”, desenvolvido
por David Salles e apresentado ao Instituto de Letras da Universidade da
Federal Bahia para o concurso de professor titular de Literatura Brasileira em
1985, representa um período de doze anos de pesquisa sobre o tema da ficção na
Bahia no século XIX.
O autor chama atenção para o caráter de descoberta do estudo o que
justifica a imprecisão nos bastidores da investigação e a possível existência
de lacunas.
Os anos desta exaustiva pesquisa iniciada em 1969 não foram
contínuos. Foram divididos em dois blocos: o primeiro que durou de 1969 a 1975
e o segundo que foi de 1981 a 1985 (período que coincide com a sua ida aos
Estados Unidos para desenvolver atividades acadêmicas), o que revela que
durante praticamente toda a sua vida intelectual David Salles esteve dedicado à
pesquisa literária.
O interesse primordial desta pesquisa, segundo o autor, seria o de
fazer um relato histórico para tornar conhecidos os ficcionistas baianos do
século XIX considerados narradores pertencentes ao estilo romântico, que tenham
produzido até o ano de 1880, recorte temporal da sua pesquisa.
Um outro propósito seria a definição deste perfil historiográfico
de forma interpretativa com vistas a favorecer às análises da trajetória
estética e cultural da narrativa de ficção na Bahia.
A tese é composta por uma advertência crítica, que corresponde a
um prólogo, uma introdução e mais três capítulos: “Questões de Existência e
Exercício”; “Os Primórdios Desajeitados” e “O Romantismo Pleno ou a Ficção dos
Sentimentos Malfadados”. O capítulo conclusivo é assinalado com o título de “O Risco
dos Descompassos”.
Dois livros de David Salles comportam os resultados parciais desta
pesquisa que são Primeiras Manifestações da Ficção na Bahia (1973) e O
Ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição ornamental (1977). Além
de livros, também outras publicações de caráter universitário como o artigo
publicado na Revista Universitas (Separata maio/dezembro de 1969) que
traz como título Xavier Marques: fatos pessoais (para uma biografia
literária), onde registra fatos biográficos de Xavier Marques, diversos
deles, até aquele época, desconhecidos ou divulgados de forma equivocada.
Muitos dos dados apresentados por Salles são escritos pelo próprio punho do
escritor baiano, outros, coletados em noticiários de jornais da época, além dos
depoimentos concedidos pela filha de Xavier Marques, Rute Xavier Marques, que
concedeu o material redigido pelo pai para que Salles complementasse a sua
pesquisa. Alguns destes escritos estavam registrados, segundo o autor, em
pedaços de papéis avulsos em uma agenda médica de 1904 “em letra miúda e um
pouco tremida”.
A alusão a tais pesquisas, contudo, serve aqui, apenas para uma
apresentação do livro O Ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição
ornamental (1977), que é o segundo alvo para a análise da pesquisa
acadêmica de Salles.
Este livro é o texto revisto e corrigido publicado originalmente
em 1974, como tese de concurso para Professor Assistente de Literatura
Brasileira da Universidade Federal da Bahia.
Este estudo de Salles sintetiza a natureza do projeto estético e
ideológico de Xavier Marques no período de “transição” do final do século XIX
para o modernismo. Iniciado em 1968, por sugestão do crítico Eugênio Gomes,
mostra o romancista Xavier Marques em sua própria época, inclusive no que se
refere à sua visão de mundo e seu enfoque estético, visando buscar o
ficcionista em si mesmo, assim como a obra em si, sinalizando a sua preferência
pelo método imanente para análise dos textos.
Desejando realizar um já iniciado estudo geral da trajetória
literária da ficção na Bahia, David Salles informa que Xavier Marques foi o
primeiro escritor a integrar à cena ficcional a paisagem e os personagens da
Bahia em romances e contos, sendo, portanto, fundador desta temática. Traz à
cena a cidade do Salvador e o Recôncavo, a vida praieira e o ciclo da
cana-de-açúcar, marcando o primeiro momento significativo da narrativa na
literatura baiana.
O livro está dividido em duas partes principais. A primeira
realiza um estudo da estilística exclusivamente formal, observando o
vocabulário ornamental, castiço e erudito do autor; a técnica de composição
frasal de matriz clássica; as inversões retóricas na sintaxe e a incidência
reiterada e “saturante” das figuras de estilo. A segunda, uma abordagem crítica
do objeto em análise. Como lastro teórico para tais análises apresenta as
teorias de Georg Lukács e Lucien Goldmann. David Salles chama a atenção para o
cuidado que teve durante o estudo para que não fosse contaminado pela vontade
de analisar o texto segundo a sua visão de mundo e o seu gosto literário que
estavam situados num outro período, fazendo valer apenas o que se revelava na
historicidade dos textos do ficcionista. Não usou assim, nenhum aparato crítico
em vigor na sua época, tomando o texto literário como realidade autônoma.
O estudo aborda todos os livros de ficção de Xavier Marques, à
exceção de Pindorama, O Sargento Pedro e Terras Mortas.
Nas palavras de Salles, este é “um texto crítico que busca primeiro explicar e
teorizar sobre o ficcionista, entendendo-o como expressão literária brasileira,
para depois então relacioná-lo com os seus arquétipos”. Entretanto, nos adverte
David Salles, que neste estudo esta última parte não foi contemplada.
Em suma, tem-se que, no montante de textos em que David Salles
apresenta as suas teorias, nos é revelada a ambição do autor em conhecer a
realidade literária brasileira em seus aspectos regionais, ideológicos e
sociais em diversos momentos da nossa história. Nestes textos, a aparição
reiterada de algumas opiniões críticas, mostra, de certo modo, uma consolidação
evolutiva de seus argumentos que se formaram ao longo das exaustivas pesquisas
realizadas no seu percurso crítico.
Romance e Regionalismo
na Saga do Cacau (1982)
Romance e Regionalismo na Saga do Cacau representa a fase de maior amadurecimento de
ideias da crítica Sallesiana.
Ao lermos a tese de doutoramento em Literatura Brasileira
apresentada à Universidade de São Paulo em 1982, encontramos logo no início
como esclarecimento sobre os dois principais modelos teóricos que inspiraram
tal trabalho, uma alusão aos escritores José de Alencar e Mário de Andrade,
leituras que certamente aguçaram a natureza eminentemente crítica de David
Salles, contribuindo na fertilização de ideias e norteando os caminhos a serem
percorridos nos estudos sobre o regionalismo literário. Na nota que antecede o
texto da tese informa que:
“O autor reconhece a presença nesta indagação
crítica daqueles que o precederam com o mesmo propósito permanente. Em especial
José de Alencar e Mário de Andrade. Pelas fontes, agradece a Jorge Amado e
Adonias Filho, grapiúnas brasileiros.” (Salles, 1982, p. 5)
Neste texto o autor retoma a saga da literatura grapiúna em seus
conceitos e articulações, tendo como fontes literárias para a sua discussão os
romances Cacau (1933), Terras do Sem Fim (1943), São Jorge dos
Ilhéus (1944) e Gabriela Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado, e
mais, Corpo Vivo (1962), a novela Léguas da Promissão (1968) e As
Velhas (1975) de Adonias Filho.
Considerando o regionalismo grapiúna como um modelo plenamente
satisfatório para o estudo da manifestação do regionalismo literário nacional,
Salles discute neste texto o alcance deste fenômeno que, desde o Romantismo, se
instalou no texto literário de forma mais acentuada, não somente na nossa como
também em outras literaturas no Brasil.
Numa perspectiva histórica o mais remota possível, Salles toma
como momento da primeira aparição do fenômeno regionalista na nossa literatura
a própria Carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500. Naquele instante instaurava-se
o regionalismo captado através da representação literária das nossas belezas e
estranhezas, que já continha desde as suas primeiras palavras um dos
componentes básicos do regionalismo: a paisagem traduzida de forma afetiva.
Entretanto, adverte Salles, em termos concretos, o marco inicial
do regionalismo brasileiro está situado na segunda metade do século XX, com o
surgimento de O Gaúcho (1870), de José de Alencar. A partir daí, tomando
como base o texto ficcional, tornou-se possível uma identificação das intenções
desta manifestação cultural e ideológica na nossa literatura.
Este estudo sobre o Regionalismo é apresentado em três partes,
subdivididas em capítulos. A primeira parte, referindo-se ao regionalismo
nacional, toma como ponto inicial os relatos da Carta de Pero Vaz de Caminha ao
Rei D. Manuel, pioneiros na descrição da nossa paisagem e da nossa gente,
mapeando em seguida os diversos projetos identitários desenvolvidos no Brasil.
Sinaliza também os problemas sócio-culturais que geraram o fenômeno regionalista.
A segunda parte discute, particularmente, o regionalismo
pertencente à literatura grapiúna, nos seus conceitos, articulações,
peculiaridades.
A terceira e última, apresentando um estudo mais específico da
articulação romanesca dentro desta vertente regionalista, analisa a trama e o
tempo, como recuperadores da “promessa edênica do cacau” existente na
literatura regionalista grapiúna.
Confrontando o imenso volume de manifestações regionalistas na
literatura brasileira com a parca produção crítica sobre o tema existente no
Brasil, Salles destaca a necessidade de se decifrar este fenômeno nas suas mais
diversas formas de aparição. Utilizando este argumento, o crítico desenvolve um
estudo amplo onde discute de forma bastante fundamentada (social, histórica e
culturalmente falando), questões relativas ao conceito, à evolução e às formas
de aparição do regionalismo nas obras de Jorge Amado e Adonias Filho, mais
especificamente aquelas sobre o ciclo do cacau.
Duas outras importantes bases teóricas utilizadas por Salles para
o exame desta manifestação literária foram Theodor Adorno e Lucien Goldmann,
ambos como referenciais para a discussão dos aspectos sociológicos da
literatura regionalista.
As formulações são apresentadas ao longo do estudo de forma
sistemática. Parte das causas que impulsionaram a manifestação regionalista nos
textos literários, buscando mostrar que a essência deste fenômeno dentro da
própria literatura é de natureza cultural e ideológica, visando assim, a
caracterização brasileira da imagem do outro enquanto ser cultural, ocupante de
um determinado espaço geográfico.
O regionalismo é concebido por Salles como algo que nasce da
diferenciação cultural entre os povos, da expressão do seu projeto ideológico
através da literatura para afirmar os seus valores, as suas particularidades,
e, principalmente, o reconhecimento de uma identidade cultural que se quer
engajada num contexto mais amplo.
Um outro objetivo de Salles ao desenvolver esta análise foi a
interpretação da intersecção do “literário” como categoria e do “regionalista”
como projeto, nas citadas obras de Jorge Amado e Adonias Filho.
Os capítulos do seu estudo são intitulados como: 1) Proposição
Crítica; 2) O Regionalismo como Problema da Literatura Brasileira; 3) O
Regionalismo do Cacau: a representação diferenciada do espaço grapiúna e 4) A
Articulação Romanesca do Regionalismo Grapiúna. Todos os títulos, portanto,
tencionam traduzir quase plenamente os temas que aborda, justificando com eles
a utilização das obras de referência da saga do cacau para a sua análise.
A partir do modelo de regionalismo encenado pela literatura do
cacau, David Salles apresenta a prosa ficcional como a principal forma de expressão
de um povo, tendo em vista ser a forma romanesca reconhecidamente mais
apropriada para retratar a interrelação existente entre a mímesis e a
História. No caso específico da historicidade grapiúna é esta última quem
confere o estatuto de regionalista aos textos de Jorge Amado e Adonias Filho.
Entretanto para o crítico, o discurso grapiúna não se subjulga à
História factual enquanto modelo, pois trata de projetar à História “um sentido
novo, uma mímese não fotográfica, que adquire caráter mítico sob a ótica
oracular da narrativa”. (Salles, 1982, p. 267)
Mesmo assim, afirma, os dois autores (Jorge Amado e Adonias Filho)
nestas narrativas de ficção utilizadas para explicar o fenômeno regionalista
não exprimem nenhum tipo de radicalismo ou tentativa de reconstrução de mitos
do paraíso. Mantêm a tensão entre dependência e hegemonia, sem saudosismo, mas
tentando sempre redescobrir a autonomia do seu pensamento, apesar de se saber
nascido, entretanto, colonizado. (Salles, 1982)
Salles observa ainda, na representação ficcional dos textos
analisados, uma consciência crítica da voz narrativa regionalista, que parece
jamais ter desconhecido as implicações contidas nos elementos civilizatórios do
modelo ocidental e moderno de sociedade que reage contra a absorção destas
formas de dominação. Assim, se por um lado o regionalismo parece aceitar o
progresso, por outro se defende das mudanças ideológicas através do seu próprio
discurso. A “nação” (região), como chamam Amado e Adonias, resiste à penetração
do domínio cultural. Quer aproximar-se dos centros de produção e reconhecimento
cultural, mas ao mesmo tempo rejeita-os, reafirmando os seus valores, a sua
caracterização diferenciada. Nas palavras do próprio Salles:
“O regionalismo literário – e é bem o caso do
regionalismo do cacau – não visa a ser um procedimento literário de inflexão
revolucionária, de ruptura. (...) Entendemos que ele é uma expressão crítica de
resistência, que procura avançar a partir dos processos de tradicionalização
(ou aculturação) e de tensão insolvida. A isto não podem escapar, afinal, todas
as realidades dependentes, subdesenvolvidas e até mesmo jovens.” (Salles, 1982,
p. 268)
Com essa reflexão Salles além de mostrar o caráter essencialmente
dialético do regionalismo, reafirma ser este fenômeno um processo de
manifestação de “espaços” periféricos. Dialético, por manter uma tensão
ambivalente, como afirma, entre a imitação e a originalidade, entre a
dependência e a autogênese.
Para Salles, o caminho do projeto ideológico regionalista
demonstra a sua complexidade em tal ambiguidade, ao negar a atração pelos
centros hegemônicos que prenunciam o progresso (intenção sua também) e ao mesmo
tempo reafirmar uma independência cultural, uma identidade própria.
Nesta pesquisa de Salles são retomadas as discussões sobre
aspectos do Regionalismo apresentadas numa fase anterior em sua pesquisa de
mestrado, o que indica uma linha mestra seguida dentro deste tema pelo autor.
Tais estudos, se analisados hoje numa perspectiva global, representam uma
tentativa de teorização sobre o regionalismo na literatura.
Lembremos, contudo, que o regionalismo literário se apresenta em
várias literaturas, especialmente àquelas do chamado terceiro mundo. Esta
informação adquire destaque nesta análise, por indicar a similaridade de causas
que levaram a nossa cultura a instituir tal modelo de manifestação, ou seja, a
acompanhar a trajetória de literaturas de outros países, mais destacadamente,
os latino-americanos, de características histórico-culturais semelhantes às
nossas.
É preciso explicitar também, que ao tomar como ponto central para
o estudo o regionalismo grapiúna, ou seja, ao propor o que podemos chamar de um
“estudo de caso”, o autor tinha como pretensão produzir algumas conclusões que
viessem servir como argumentações compreensivas sobre o fenômeno regionalista
num sentido mais amplo. Para tanto, parte de reflexões sobre o conceito de
regionalismo e das causas que levaram à sua manifestação no texto de criação
literária, para depois chegar aos aclaramentos necessários ao fenômeno particular
observado na literatura grapiúna.
O autor deixa claro no seu discurso não ter intenção de realizar
apenas um paralelo que descreva um confronto entre a “realidade representada”
na trama ficcional e a própria história ou o seu caráter sociológico. Para
Salles, a “realidade representada”, ou seja, o texto literário, vale por si só.
Ademais, mostra conhecer e bem os ensinamentos de teóricos como Lucien Goldmann
e Theodor Adorno, onde ambos apontam para a impossibilidade de ser a literatura
usada abusivamente como objeto de demonstração da história. Da mesma forma,
para estes teóricos, os conceitos formulados sobre os temas não devem ser
trazidos de fora para dentro da literatura, mas sim serem imanentes, fluírem dela.
Confirma-se assim, a necessidade de compreendermos a obra
literária na sua significação própria, sem submissões à história factual.
As pretensões de Salles neste seu estudo, não visam uma
compreensão completa do fenômeno em questão. Por isso mesmo o autor adverte o
leitor sobre as limitações normais a qualquer estudo pioneiro e ainda também à
complexidade do objeto sob análise, esclarecendo a intenção de apenas auxiliar
na iluminação do tema, a despeito de faltar estudos especificamente
regionalistas em língua portuguesa. Acrescenta que pelo caráter flutuante do
tema regionalista, será ele, ainda por muito tempo, palco para infinitas
controvérsias ou mesmo divergências de interpretações.
Ao final o autor concebe a existência da manifestação regionalista
como “o retrato honesto de uma cultura periférica e pouco profunda”,
entretanto, alerta:
“É pela manifestação regionalista que essa
cultura busca assimilar a cultura predominante e transpor a sua condição
periférica a um passo cultural mais avançado – onde ela própria atingirá, e
melhor, um nível de conhecimento com mais poder de abstração e auto-reconhecimento.”
(Salles, 1982, p. 15)
Salles, enfim, parecia vislumbrar os rumos de uma literatura
nacional que, por se encontrar em estado de total carência reflexiva sobre as
suas próprias manifestações, não tivesse outro caminho a seguir senão, como
vemos nos atuais estudos culturais, olhar para a sua própria imagem, com o
intuito de compreender as suas diferenças culturais e aceitar a si mesma como
diversa. Enfim, realizar um trabalho de auto- reconhecimento da sua singularidade.
Para Salles, a via literária é certamente uma das melhores vias de
compreensão do regionalismo como sendo um problema comum aos povos colonizados.
E, através deste regionalismo e da visada com que Jorge amado e Adonias Filho
acercaram-se dessa realidade cultural periférica, é que o autor tece a sua
reflexão sobre a condição da cultura grapiúna, como também de outras culturas
de povos submissos.
Jorge Amado, que ao seu modo e em seu tempo definiu tão
perfeitamente o povo brasileiro, diz à respeito da literatura “grapiúna”,
“Foi violenta e bela essa saga de machos, essa conquista da terra
[...] Da epopeia da conquista da terra surgiu a civilização do cacau e surgiu
uma literatura de cacau, com suas características próprias, com sua marca
inconfundível, sua própria verdade.” (Discurso de Jorge Amado na Academia de
Letras da Bahia, 1965)
UMA TEORIA REGIONALISTA
Há que se observar, antes de qualquer tentativa de esclarecimento
sobre o regionalismo brasileiro, a diferença maior que se pode apontar, em
sentido macro, entre o regionalismo de fundação, ou seja, aquele primeiro
regionalismo contingencial, criado mais pela necessidade de formação de uma
cultura nacional e de libertação, em que a carência de uma literatura
independente era algo premente (o “ter que ser”) e aquele regionalismo surgido
da vontade de expressão do sentimento que habitava o íntimo do escritor
brasileiro que tinha ao seu alcance uma infinidade de temas, tipos e costumes
diferenciados para transformar em matéria literária (o “querer ser”).
Entretanto, sabemos não ser esta dubiedade de intenções um mérito exclusivo do
regionalismo brasileiro, mas algo perfeitamente comum a todas as manifestações
regionalistas de outras culturas também colonizadas.
Um segundo aspecto é a diferenciação existente entre o
regionalismo brasileiro de total alcance territorial e os diversos
regionalismos demarcados geograficamente, que surgiram na sequência evolutiva
literária regionalista.
Lúcia Miguel-Pereira, em Prosa de Ficção: de 1870 a 1920, define
como regionalista aquela literatura
“cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens
locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e
que se passem em ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos
que imprimem a civilização niveladora”. (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 179)
Tomando esse conceito como parcialmente satisfatório para definir
esta manifestação que surgiu, num primeiro momento, pela necessidade e, num
outro seguinte, pela vontade de “ser” do homem brasileiro, tentaremos mapear
algumas teorias que se fizeram reconhecer pelo valor impresso nos seus
programas e que, atravessando as barreiras do tempo, chegam aos dias de hoje
como pontos cruciais para as discussões sobre este tema tão amplo e
problemático da nossa cultura.
Sabe-se que a compreensão do regionalismo brasileiro e da sua
evolução nas suas diversas formas de aparição em nossa literatura é, se não
mais, tão importante quanto a compreensão do fenômeno literário. E, apesar das diversas tentativas de
entendimento encontradas nas obras de natureza exploratória nestes últimos
anos, ainda há, neste terreno, muito a ser discutido.
Uma noção do problema pode ser dada, em primeiro plano, pela
grande dificuldade enfrentada em se encontrar histórias dos regionalismos
espacialmente delimitados que apresentem um panorama completo e sistemático dos
autores e das obras pertencentes àqueles espaços, isto sem falarmos na igual
escassez de interpretações destes textos.
José de Alencar, criador do primeiro projeto de construção da
nacionalidade brasileira, é responsável, como vimos, pelo que se pode chamar de
“matriz do regionalismo brasileiro”.
O autor de O Guarani, transpondo a variedade regional
brasileira para a literatura, não funda um regionalismo geograficamente
determinado. Alencar não empreendeu nenhuma forma de restrição territorial.
Tencionou, portanto, uma abrangência total dos diversos aspectos das regiões do
País, de norte a sul, fossem estas urbanas ou rurais.
Entretanto, com este mapeamento das diversas regiões e tipos
brasileiros, o escritor cearense conseguiu delinear um corpo literário regional
que abriu caminho para o reconhecimento de uma diversidade cultural, apontada
mais tarde no Modernismo, principalmente por Mário de Andrade.
Com o surgimento do projeto marioandradeano, percebemos uma outra
forma de se conceber o regionalismo enquanto meio de identificação da
nacionalidade brasileira. Mário, nesta outra etapa da investigação identitária,
vai retematizar tais ideias distinguindo-as daquelas formuladas a partir das
narrativas alencarianas de fundação surgidas no século XIX. Ao escrever num
tempo diverso daquele em que foi escrito Iracema, Mário de Andrade vai
trabalhar com outras interpretações. E, considerando que o projeto identitário
de Alencar cumpriu seu papel em outra época, o autor de Macunaíma vai
afastar de vez a ideologia conciliatória das narrativas de fundação do século
XIX.
Na década de 40 do último século, na conferência “O Movimento
Modernista”, Mário de Andrade faz um balanço crítico do movimento vanguardista
da década de 20, onde vai reafirmar a diversidade linguística do Brasil,
demonstrando a sua grande preocupação com a importância da língua como elemento
principal para se pensar e se fazer literatura.
Pouco mais de uma década depois, o antropólogo pernambucano
Gilberto Freyre irá questionar o alcance da proposta marioandradeana e as
formulações modernistas para uma língua nacional, reivindicando para a
literatura uma “linguagem popular nordestina” na sua militância regionalista.
O empenho de Freyre em “descobrir o Brasil”, apreendê-lo em sua
essência, foi, como para José de Alencar, uma tarefa com ares de início, de
novidade. E, apesar de ter como fonte de inspiração para a criação do seu
programa identitário os textos do próprio Alencar, vai reclamar para si a
responsabilidade pelo início do processo de reconhecimento da nacionalidade
brasileira, que segundo ele, até a metade do século XX não havia acontecido.
Como estes, diversos outros escritores e estudiosos da cultura
brasileira se empenharam em definir este caráter identitário do povo
brasileiro, ao qual estão relacionadas questões de língua, de linguagem, de
ideologia e de estilos desta literatura. Apesar disso, temos ainda nítida a
necessidade de novas reflexões sobre as definições e os conceitos de
regionalismo, por ser questão das mais importantes e ainda hoje em aberto.
A busca de algo subjacente a isso, a que se pode chamar de
“intenção regionalista”, é uma das discussões do crítico baiano David Salles
pouco ou nada revelada no âmbito da pesquisa das letras nacionais.
Entretanto, há inegavelmente uma “teoria regionalista” defendida
por David Salles na sua tese Romance e Regionalismo na saga do Cacau.
Por isso, baseados na compreensão do escritor baiano deste “fenômeno cultural e
ideológico” que afirma ser o regionalismo, podemos sinalizar mais este olhar
sobre a trajetória imanente do regionalismo na literatura brasileira.
“Estava José de Alencar, de fato, detectando a
matéria cultural exclusivamente brasileira que emplastaria o projeto
regionalista. Antes, romântico; depois naturalista, “verista”, modernista... A
evolução das formas literárias não modificaria, mas ampliaria o projeto, na essência
da intencionalidade. Ou faria a correção do ângulo da trajetória ideológica.
Ratifica-se, assim, como o fazemos, possuir o regionalismo um lastro comum. Que
se modificou, é verdade, conforme sua específica trajetória como visada sobre,
e dos espaços periféricos; e não como evolução das formas literárias. Alencar
não se equivocara quanto à gênese do regionalismo literário, ao menos. E
pode-se dizer, sob enfoque duma ótica crítica atual, que ele teve intuição de
qual fosse a matriz do regionalismo como manifestação de espaços
dessincrônicos. Por extensão: intuição dos modos verbalizadores da afirmação
nacionalista.” (Salles, 1982, p. 82)
Interessante destacar que temos aí a coincidência dos projetos de
conceituação do regionalismo brasileiro em Salles e Alencar. Os dois autores,
apesar de atuarem em espaços temporais distintos, vislumbraram como geradoras
deste fenômeno, razões culturais e ideológicas situadas nos “espaços
dessincrônicos”. Afastam ambos, portanto, qualquer tentativa de explicação do
fenômeno regionalista como sendo uma evolução da “forma literária”, estando
este exclusivamente em nível de conteúdo a sua expressão na literatura.
Atente-se para o fato de que essas observações acerca da origem da
matriz regionalista e da sua transformação, tecidas por José de Alencar (século
XIX) e David Salles (século XX), respondem ainda de modo satisfatório às
questões suscitadas no âmbito dos estudos culturais de hoje. Tais observações,
entendemos, abrem o caminho para uma maior compreensão deste fenômeno próprio
das culturas periféricas, que é o regionalismo.
Assim, a fundamentação de David Salles para as discussões sobre o
tema do regionalismo está voltada em suas bases para as formulações teóricas de
José de Alencar, tendo desenvolvido largo estudo sobre o projeto de fundação
nacional deste autor.
A noção de progresso, que é inerente aos textos regionalistas
grapiúnas tomados para o estudo, marca um paradoxo discutido por Salles: a
ideia do avanço, do desenvolvimento sócio-cultural poderia levar a um
predomínio dos padrões culturais dos centros hegemônicos e o projeto ideológico
regionalista perderia de vista muitas das causas geradoras de suas formulações,
ou seja, os substratos que não tivessem sido socialmente atingidos pelo poder
da homogeneização cultural.
Por outro lado, Salles ressalta o caráter “contrapostamente”
nacionalista do regionalismo, para usar os termos do próprio crítico: a
capacidade de criação de uma história diferente da história social
concretamente produzida. O que chamou de “historicidade pelo avesso”. Uma
história virtualizada pelo discurso narrativo, ainda que com a clara
consciência de todos os perigos inerentes aos discursos regionalistas ou de
quaisquer outras comunidades periféricas.
Neste ponto, apesar das reflexões de Salles sobre o tema do
“nacionalismo” serem de época anterior à ênfase maior que têm alcançado os
estudos culturais nos últimos anos, encontramos no seu texto algumas posições
muitos próximas ao entendimento mais atual que se tem do discurso nacionalista,
do conceito de nação nas narrativas ficcionais e da ideia de progresso para os
povos pós-colonialistas.
Salles vê, entretanto, a construção cultural da nacionalidade como
uma forma social e textual que não apaga as histórias específicas e
significados particulares desses povos.
Na intenção de David Salles em consolidar algo próximo à uma
teoria regionalista, além deste grande ensaio sobre o tema, o crítico baiano
publicou outros textos na sua coluna do jornal A Tarde que corroboram
tal interesse: “Romance Ultra- histórico” (12. maio 1979), “A Theobroma Periférica”
(24. fev. 1980) e “Luares do Sertão” (31. ago. 1980). Além destes, também os
textos “Para Ler Alencar” (15. jul.1979), “Alencar Relido Hoje” (05. maio.
1979) e “O Homem detrás da Obra” (23. jun. 1979), publicados no jornal O
Estado de São Paulo complementam as informações sobre o projeto
regionalista de Alencar e as suas próprias articulações teóricas sobre o tema.
Ao final da sua tese de doutoramento se pode ler o “Manifesto do Novo
Regionalismo” de 25 de maio de 1978, seguido dos nomes dos 51 autores que
representavam o movimento.
Assim, através do estudo interpretativo visto na sua tese
depreende-se que, para Salles, a origem do regionalismo, de um modo geral, está
na diferenciação cultural, potencializando-se a seguir em sua verbalização
literária, em especial a romanesca, para afirmar “os valores, a maneira de ser
e a prospecção do futuro de uma auto-reconhecida cultura periférica”. (Salles,
1982, p.83)
Julgando ser o modelo do regionalismo do cacau satisfatório para
os demais pontos da análise, Davis Salles junta a esta definição algumas
conclusões a respeito deste fenômeno na literatura. Sendo assim, o crítico
aponta o paradoxo principal encontrado: já que a noção de progresso é aqui
entendida como algo inerente a todos os exemplos de regionalismos grapiúnas
apresentados, a homogeneização cultural traria a morte do projeto ideológico
regionalista, eliminando assim o que detectou como “as causas geradoras da
inflexão regionalista”. (Salles, 1982, p. 84)
Sendo a formulação regionalista, como quis Salles,
contrapostamente nacionalista em relação aos padrões sociais dos centros
hegemônicos, como solução, ela vai tentar exercer um jogo combinatório
pretendendo aproximar-se dos centros de produção e reconhecimento cultural, mas
igualmente rejeitando-os em virtude da afirmação dos seus valores, como vimos
nos estudos dos romances Mar Morto e Jana e Joel.
Este jogo combinatório ou conciliatório, ainda que não tenha sido
verbalizado, pode ser apontado como a mesma proposta do projeto de Alencar para
a crise de identidade que acometia (persistindo até os dias atuais), o povo
brasileiro.
Assim, a partir do que se chamou de “literatura do cacau”, David
Salles também demonstra o seu projeto regionalista, admitindo esta ambiguidade
entrevista nos discursos dos ficcionistas Adonias Filho e Jorge Amado,
percebendo nestes autores, o mesmo conflito visto na ficção regionalista
romântica de José de Alencar, no século XIX. Retomando a relação dialética
entre o colonizador, ou seja, a civilização, e o colonizado, o atraso cultural.
Para o estudioso baiano, o regionalismo literário, não tem como
intenção ser um procedimento literário de tendência revolucionária, de ruptura,
mas sim uma expressão crítica de resistência, que procura avançar através de
uma dialética da tradicionalização e da tensão insolvida, fato que se percebe
comum às realidades pós-colonialistas.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Mar Morto. 19 ed.
São Paulo: Martins Editora, 1965. 261 p.
MARQUES, Xavier. Jana e Joel.
Salvador: Livraria Progresso Editora, 1899. 100 p.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. História da literatura
brasileira: prosa de ficção de 1870 a 1920. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1973.
SALLES, David. O Ficcionista Xavier Marques:
um estudo da transição ornamental. Rio de janeiro/Brasília: Civilização
Brasileira/INL, 1977. 223 p.
SALLES, David. Primeiras manifestações da
ficção na Bahia. 2. ed. rev. e aum. São Paulo/ Brasília: Cultrix/INL, 1979.
SALLES, David. Romance e regionalismo na saga
do cacau. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1982. 414 p. Volume
2. (datiloscrito)
SALLES, David. Saveiros no mar grande.
Dissertação de mestrado apresentada à Coordenação de Pós graduação em Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1971. 77 p. (datiloscrito)
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