A POESIA ‘FAMILIAR’
DE EMÍLIA LEITÃO GUERRA
por
Cid Seixas
Neste limiar do século XX para o XXI,
os estudos de gênero têm deixado um saldo positivo: a audiência de vozes
femininas – antes perdidas no silêncio de velhos papéis – agora resgatadas pelo
interesse em compreender o lugar da mulher no processo de construção da
sociedade. Na Bahia, escritoras do século XIX e do início do século que ora se
finda têm frequentado antologias e estudos acadêmicos.
Paralelo a este resgate e, talvez,
influenciado por ele, o escritor Guido Guerra, folheando o álbum de família,
selecionou alguns poemas da avó paterna, Emília Leitão Guerra, poeta baiana
nascida em Pernambuco, no dia 18 de novembro de 1883.
Os sonetos e outras formas adotadas por
Emília Leitão Guerra testemunham a conveniência de permitir a novos leitores o
conhecimento de uma autora cujo universo poético ultrapassa as lembranças
familiares e se inscreve no vasto e heterogêneo painel da poesia de inspiração
romântico-parnasiano-simbolista. A autora começa a escrever e a publicar num
momento em que a modernidade literária contagiava a uns e a tradição saudosista
imunizava a maioria.
São seus contemporâneos poetas
simbolistas como Pethion de Vilar (1870-1924, pseudônimo literário do professor
Egas Moniz Barreto de Aragão, da Faculdade de Medicina da Bahia, mais médico e
menos artista), Artur de Sales (1879-1952, o cada vez mais estudado artífice do
verso), Francisco Mangabeira (1879-1904, poeta pouco conhecido, apesar de
respeitado pela crítica simbolista), Durval de Morais (1882-1948, vindo de
Maragogipe com sua poesia cristã, chegou a ser aclamado “o maior poeta da
Bahia”) e Pedro Kilkerry (1885-1917, talvez o mais aberto à identificação do
Simbolismo com a modernidade), para citar apenas os nomes masculinos de maior
envergadura.
As mulheres – ou como eram chamadas
naqueles tempos: as senhoras – não tinham lugar nas lides literárias. Mesmo as
mais envolvidas com as letras e as artes tinham espaço tão somente quando
reconhecidas como paladinas do lar, título que, mesmo soando
irônico aos ouvidos de hoje, pode ser tomado como epíteto ou caracterização do
papel imposto à mulher até a primeira metade do século XX. Acredita-se que o
fato da revista A Paladina, fundada por Amélia Rodrigues em 1910,
ter ganho no título um complemento que vale como qualificativo, restritivo –
passando a ser denominada A Paladina do Lar, em 1912, quando Amélia
deixa o grupo –, é uma enfática expressão desse lugar, periférico e subalterno,
reservado à mulher nas letras e nas artes.
Para melhor conhecer o episódio aqui
referido, ver a dissertação de mestrado de Aline Paim de Oliveira: As
Paladinas do Lar; escrita feminina baiana (1910-1917),Salvador,
Universidade Federal da Bahia, 1999; resultante de pesquisa sob a orientação de
Ívia Alves.
Observe-se que as forças conservadoras
da sociedade não se limitavam a reduzir o espaço de atuação da mulher, mas
quando esse precário espaço ganhava visibilidade, usava-se de artifícios para
apagar a sua dimensão social. É como podemos interpretar a mudança de título da
revista, após a morte de Amélia Rodrigues. A paladina foi aprisionada entre as
quatro paredes do lar, para que a sua subversão não construísse resultados
sensíveis.
Enquanto os homens aderiam ou se
opunham às publicações que representavam tendências literárias em voga,
marcando uma hipotética filiação artística, a criação literária das mulheres
ficava à margem do processo de inserção intelectual, reservado exclusivamente
aos varões. Observe-se que na Bahia, até a segunda metade do século vinte, as
vozes femininas não se faziam ouvir, mesmo nos mais ruidosos momentos de
afirmação de tendências estéticas. Poemas, contos ou romances escritos por
mulheres, vistos sob esta ótica, pairavam no limbo de uma categoria alheia às
tendências sociais da arte, ficando restritos aos arquivos e às relações
familiares. É o caso destes versos de “Relembrando”, poema que a autora dedica
ao irmão Albino Leitão Guerra, professor da cadeira de Dermatologia da velha
Faculdade de Medicina da Bahia:
Relembro os dias de nossa infância
Quadra bendita do alegre riso,
Essa, da vida, a fagueira instância
Que tem, das rosas, doce fragrância,
Que tem as graças do Paraíso.
Legados também aos arquivos familiares
são os muitos poemas de amor, implícita ou explicitamente dedicados ao marido
da poetisa. Vejamos o soneto “Por que duvidas?”:
Fizeste mal em duvidar. Acaso
Desconhecias meu afeto ardente?
Não sabes, dize, que, por ti somente,
Do amor nas chamas divinais me abraso?
A minha ternura não conhece ocaso;
A tua imagem guarda reverente.
Assim, um belo, um precioso vaso,
Guarda os caros perfumes do Oriente.
Como é pequena a tua confiança!
E eu que sempre a julguei serena e
forte
Qual a que tenho em ti; Pois bem;
descansa!
– Enquanto eu viva, meu amor não finda;
Acabará, quando vier a morte,
Se, após a morte, não se amar ainda.
Após a leitura de sonetos como este,
presentes na obra da autora, não se pode deixar de ressaltar o ânimo ou o
acendimento amoroso de uma voz que não se deixa sufocar de todo, em meio às
exigências e convenções sociais predominantes. A placidez e a força de caráter,
que se deixam transbordar de modo harmônico e bem resolvido nessa voz feminina,
sugerem uma maturidade capaz de solucionar conflitos antigos e sempre atuais.
Num momento em que a mulher continuava sendo identificada como o sexo frágil,
por isso mesmo devedora de obediência e submissão ao marido; força,
determinação e placidez fazem-se presentes na expressão poética de Emília
Leitão Guerra, pondo em xeque crenças estabelecidas ou impostas.
A respeito do papel subalterno
reservado à mulher, José de Alencar escreveu um dos mais admiráveis
romances, Senhora, construindo uma personagem que, através da
afirmação econômica, valor maior da consciência burguesa, consegue inverter a
posição das pedras de um sólido e imutável tabuleiro. Mas a independência
econômica da mulher, vislumbrada pelo autor como mecanismo capaz de abalar a
dominação do macho, ainda estava muito longe de se tornar uma consequência da
vida social, transformando Aurélia numa espécie exótica e confinada ao
território das ficções cotidianas...
Somente muito recentemente, nas
sociedades economicamente mais liberais e desenvolvidas, as mulheres assumiram
o papel de sujeito e agente de mudanças. Com a ascensão de algumas delas a
cargos de relevo em grandes empresas, nos Estados Unidos, ou na condução do
país, na Inglaterra, o que parecia ficção romântica no livro de José de Alencar
passou a ser um fato visível e palpável.
Anteriormente, lembre-se, as viúvas de
ricos homens, matriarcas incontestes, sempre afirmaram sua vontade sobre os
varões da família e do lugar, sem que isso abalasse a crença no poder de mando
inerente ao homem. Aceitar a hipótese descortinada no romance de Alencar seria
uma forma de antecipar a possível decifração do enigma e decompor a esfinge.
Quebrada a tradição do impasse, que
papel restaria aos machistas e às feministas? Homem e mulher dialogariam em
igualdade de condições, desaparecendo o antagonismo. Deslocando ou
desacreditando a questão econômica como fator condicionante, no mundo moderno
(que tomou o lugar da força bruta, no mundo antigo), impõe-se a divisão de
gênero como divisão de espécies conflitantes. O homem será sempre o lobo da
mulher que, devorando-o como o cordeiro, será sempre a loba da matilha.
Transformados em espécies conflitantes, o homem se uniria ao homem, como fazem
os machistas nas suas reuniões entre pares; e as mulheres se uniriam às
mulheres, como pede o paladar feminista. Mas o rei não pode estar nu. É preciso
ver uma veste.
Como então situar, para o leitor
contemporâneo, a poesia de Emília Leitão Guerra? Parnasiana, simbolista,
neorromântica? Os autores desse momento são caracterizados menos pela natureza
do seu texto poético e mais pelos laços de camaradagem intelectual com os
grupos e revistas literárias. Se na França, de onde nos veio o modelo, o
Simbolismo foi um marco de modernidade literária, ou uma espécie de saída
estética para o pensamento decadentista; no Brasil, o Simbolismo pode ser
compreendido como um rótulo para diversas tendências pós-românticas. Em cada
estado brasileiro, uma publicação ou um grupo enfeixava sua produção sob o
guarda-chuva de uma escola que, segundo Massaud Moisés, foi mais ligada à
estética literária do que às transformações culturais e históricas. (Ver O
Simbolismo. Volume III, de Moisés: História
da literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1985, p. 7.)
O ideal da arte pela arte encontra
plena realização nesse momento, quando o compromisso do fazer artístico com a
realidade é substituído pelo compromisso único com o prazer proporcionado pelo
desvendamento de símbolos e imagens que, antes de constituírem, apenas
substituem o objeto.
Tal espécie de toalete literária
pretendia apenas vestir e maquiar a realidade, dar a ela uma face mais jovem e
faceira – encobrindo as dobras da pele. Creio que foi essa possível vertente
aberta pelo Simbolismo a que mais encontrou adeptos, transformando a palavra
(“simbolismo”) em mero rótulo para designar as mais diversas tendências
pós-românticas.
O aproveitamento de experiências e
conquistas formais do Parnasianismo – submetendo as caturrices da forma aos
caprichos da expressão exaltada pelo espírito neorromântico e conduzida pela
sutileza de imagens e símbolos – identifica a poesia de Emília Leitão Guerra
com a produção de outros poetas que, nesse momento, souberam aliar a
sensibilidade pessoal ao discurso das emoções interpessoais que aproximam e
unem os indivíduos no espaço da poesia.
Foi Lélis Piedade quem publicou os
primeiros versos da poetisa no Jornal de Notícias, de Salvador, e
no periódico O Propulsor, de Feira de Santana, registrando uma fase
marcada pela transição da adolescência. A passagem do século XIX para o XX
marca também a maturidade poética da autora que produz em 1899 alguns dos seus
melhores poemas.
Emília casou-se em 1907 com o médico
Adolfo Santos Guerra que, dois anos depois, tomaria a iniciativa de fazer
publicar o primeiro livro da esposa, Lírios da Juventude, impresso
na Typographia Brasil, em Juiz de Fora, com prefácio do advogado e deputado
federal Carlos Arthur da Silva Leitão, irmão da poetisa. Segundo Guido Guerra,
esse irmão foi o responsável pela formação cultural da autora, inclusive no
aprendizado de línguas estrangeiras como alemão, francês e inglês, que estão na
base das suas leituras. Ainda conforme o escritor Guido Guerra, neto da autora,
a obra foi saudada em artigo do poeta Ubaldo Osório Duque Estrada, noCorreio
da Manhã.
O segundo e último livro, Evocações,
foi publicado cinquenta anos depois do casamento de Emília, reunindo os poemas
dedicados ao marido, em edição organizada, em 1957, pela professora Júlia
Amélia Viana Leitão, sobrinha da poeta. Em 1964 sairia a segunda edição desse
livro, com o selo da Imprensa Oficial do Estado da Bahia e introdução de Jorge
Faria Góes. Já idosa e adoentada, Emília Leitão Guerra não compareceu ao
lançamento, encarregando um dos seus filhos, o desembargador Adolfo Leitão
Guerra, a autografar os exemplares. Dos onze filhos da poetisa, Salustino, José
Martins, Emília, Adolfo e Dídia são falecidos; estando vivos Umbelina, Anísia, Cristina,
Lúcia, Madalena e Júlio.
Em 1999, Lizir Arcanjo incluiu no
volume intituladoMulheres escritoras na Bahia: as poetas sonetos e
outros poemas publicados por Emília nos jornais em 1898, 1900, 1901 e 1903,
além de alguns que figuram nos dois livros, o de 1907 e o de 1957, reeditado em
1964.
Ver o livro Mulheres
escritoras: as poetas; antologia com organização e introdução de Lizir
Arcanjo. Salvador, Étera, 1999, 294 p. ilustradas com fotos e fac-símiles de
publicações. O volume resulta de paciente e trabalhosa pesquisa da organizadora
em arquivos e bibliotecas da Bahia, de Pernambuco, e do Rio de Janeiro,
revelando algumas autoras inteiramente esquecidas e encontradas nas páginas de
desconhecidos periódicos publicados no século passado no interior baiano.
Emília
Leitão Guerra, filha de Emília Magalhães da Silva Porto e do comerciante
português e Coronel da Guarda Nacional Brasileira José Martins Leitão, morreu
aos oitenta e três anos, no dia 23 de novembro de 1966, deixando, além dos
livros publicados, vários poemas dispersos nos arquivos da família.
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In: Emília Leitão Guerra. Poemas escolhidos; organização e seleção de Guido Guerra; introdução de Cid Seixas. Salvador, Editora Cidade da Bahia, 2000.
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