Palavra
de
mulher, coisa fecunda
por Cid Seixas
Grande Otelo não achava
justo ser considerado o maior ator negro do Brasil. Ele queria ser,
simplesmente, ator, sem rótulos ou classificações estético-raciais. Sua arte
ultrapassava os limites da sua circunstância e exigia ser considerada para além
das classificações de grupos minoritários. Infelizmente, ao contrário do que o
Grande Ator queria, cada vez mais os preceitos dos representantes intelectuais
da partição do Homem subdividem o território: feminino, masculino, duplo,
trans, preto, branco etc.
Tal posição não
significa que Grande Otelo não tivesse consciência da sua condição de negro; sua
consciência separa o engajamento, ou o comprometimento, enquanto atitude
assumida pelo sujeito, da subordinação da arte às tarefas do politicamente
correto. É verdade que com os estudos culturais, nascidos na Universidade de
Birmingham e importados com atraso de mais de vinte anos para o Brasil, o
estatuto da arte cedeu lugar à identidade cultural. Se para o velho Aristóteles
o erro maior cometido pelo poeta residia no interior da obra estética, e não no
mundo real, os estudos culturais nas mãos do halterofilista da cultura invertem
a perspectiva.
Considera-se
isoladamente a arte do negro, a arte da mulher, a arte do homossexual, como se
a criação fosse uma fraqueza paroquial e não uma força universal. O grande
artista será sempre reconhecido como artista, independentemente das festinhas
íntimas dos pequenos grupos e confrarias. Fernando Pessoa não precisa das
celebrações homoeróticas nem do Dia do Orgulho Gay para ser uma das vozes mais
significativas da literatura do século XX. Seu valor ultrapassa sua
circunstância e silencia as grossas vozes do preconceito.
A posição – instigante
e provocativa, dialeticamente assumida, – não invalida nem desconhece a
importância dos movimentos destinados a marcar a dignidade das ditas minorias,
ou das maiorias não reconhecidas; ela apenas não subordina a arte ao
compromisso cultural. Ela vê a arte como obra de arte e não como documento da
cultura. A sociologia, a antropologia e outras disciplinas cumprem bem melhor
esse papel. Voltamos, portanto, a uma questão remoída pelo new criticism no início do século vinte: a diferença entre o estudo
imanente e as relações socioculturais da literatura.
Desconhecer uma das faces
da folha nos reconduz às discussões dos nossos avós.
Mas o momento, marcado
por acertos e equívocos, por diálogos de interlocutores mutuamente surdos à
fala do outro, estuda a mulher como grupo minoritário. Ou como margem de um
processo. Fala-se em literatura feminina como subdivisão, como se a mulher não
fosse por excelência fonte e sujeito da criação artística. Myriam Fraga sabe
disso melhor do que todos nós. Seu livro Femina
é um testemunho eloquente do lugar da mulher no universo da criação e da
inteligência.
Uma escritora plena e
senhora do seu sentir não precisa ser “descoberta” pelos grupos de beneficência
intelectual da mulher nem ser estudada como poetisa.
Ela é poeta, completa, conforme a assonância de implicações semânticas presente
no texto de Cecília Meireles que diz:
“Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.”
Aliás,
como a própria Myriam nos ensina, com soberana ironia, talvez:
“Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.”
O texto que abre o
livro e serve de parti pris, “Ars
poetica”, fala por si, dispensando os argumentos. Todos os poemas giram em
torno de um só e único eixo, o ser mulher.
Cada poema é uma fala
de personagens. Alguns imortalizados ou tornados clássicos pela tradição
literária, como as mulheres retiradas da Bíblia para o espaço profano e sagrado
do poema. Outros personagens, bem nossos, saem da aridez das caatingas, como
Maria Bonita, para adquirir voz profunda e cortante, como seu punhal de
guerreira, no texto de Myriam Fraga.
A sensualidade de
alguns poemas se contrapõe ao descompasso feroz do trágico, presente em outros.
O Exu baiano ou o Eros europeu, o mesmo doce menino de setas envenenadas, com deliciosas
diabruras, quer neutralizar o tirânico poder de Thanatos, sempre a escrever com
sangue a frase derradeira da história.
Muita gente confunde o
lírico com a expressão do eu do poeta. Até mesmo um poeta da modernidade como
T. S Eliot, ao tratar das três vozes da poesia, identifica o gênero lírico com
a primeira pessoa, com aquela que fala. Mas poesia é fingimento. Não foi
preciso Pessoa dizer isto; há muitos anos antes já se sabia. Na nossa tradição
literária, que remonta às fronteiras de Portugal e da Galícia, no século XIII,
as cantigas de amigo surgiam como obras de ficção. O poeta dava voz aos
personagens femininos como agora, sete séculos depois, Myriam Fraga volta a
fazer.
Assim como as cantigas
de amigo, sem deixar de pertencer ao gênero lírico, traziam em si pequenas
narrativas que funcionavam como pretexto da exaltação lírica, em Femina, passamos da descrição de estados
de ânimo a pequenos núcleos narrativos investidos de função descritiva.
Desde Sesmaria, de 1969, que Myriam Fraga
elege, canta e conta um tema que serve de centro constelar do livro. Esse
procedimento, na verdade, pode ser flagrado aqui e ali em outros dos seus
trabalhos, mas sem a mesma nitidez. Tanto Sesmaria
quanto Femina ultrapassam a condição
de reuniões de poemas dispersos para afirmar o estatuto de obras orgânicas em
que os poemas são falas de um grande diálogo.
Não por acaso, o tom
épico se infiltra igualmente no lirismo de Sesmaria
e na obra da maturidade da autora. No livro escrito nos anos sessenta, a poeta
cantava a sua cidade; agora, é o mundo, com todas as suas mulheres, que vem ao
encontro da poesia de Myriam Fraga. Mitos sociais e individuais reinventam o
universo da mulher, permitindo àquela que outrora cantou a sua cidade erguer a
voz para cantar o mundo. Mas, aí, as encruzilhadas se confundem. E ela canta os
labirintos do próprio ser. Literatura é ficção; quer em verso ou em prosa.
Flaubert já lembrava: “Madame Bovary c’est moi”. E Fernando Pessoa “finge tão
completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.
Eis o canto de Myriam
Fraga; que assim se afirma enquanto Poeta e enquanto Mulher.
Palavra
de mulher, coisa fecunda. Texto publicado originalmente na
coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde. Salvador, 26 ago. 96. (Cf. Myriam Fraga. Femina; poesia. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1996, 140
p.)
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