BIOGRAFIA ROMANCEADA
DE GLAUBER
por Cid Seixas
O COMEÇO DE TUDO, A
FAMÍLIA DE GLAUBER.
“O pequeno
Fórum de Conquista abriu as portas para a família Mendes de Andrade.
O coronel Antônio Vicente e D. Marcelina, ao lado de seus quatorze filhos,
convidavam a cidade quase toda para a grande festa de casamento de suas filhas
Lúcia e Adair. É bom frisar esse quase, porque família que se prezasse,
naquela Conquista de 1938, tinha que ter seus desafetos.
No canto, duas tias
velhas comentavam:
— Lúcia é tão miudinha,
parece uma menina.
— E linda! Você sabia,
Dinha, que o noivo dela é dezenove anos mais velho? Parece até pai dela.
— Deixa disso, Cota!
Adamastor é um homão bonito, cheio de saúde, trabalhador, e isso é o que
interessa.
— Dizem que ele foi
noivo oito vezes antes dela, e chegou a largar uma no altar.
— Ah, mas essa ele não
era besta de largar não, Cota. Florentino disse a ele: se você deixar esta, os
irmãos te matam.”
* * *
Uma escritora e um
jornalista. Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo. Ambos, profissionais de
talento. Desta união intelectual só poderiam sair bons resultados. Com isto,
adianto ao leitor que o livro Glauber: A conquista de um sonho; Os anos
verdes é um trabalho bem sucedido enquanto exercício de linguagem. O texto
é claro e bem escrito. Soma a objetividade do jornalista com a leveza e o
encanto da escritora. Ou melhor, estas qualidades são comuns aos dois autores.
A quatro mãos, eles conseguiram realçar as virtudes e minimizar os defeitos.
Depois de exaustivas
pesquisas biográficas sobre o cineasta Glauber Rocha, viagens a Vitória da
Conquista, a terra da infância e dos avós de Glauber, os autores começaram a
ouvir os companheiros de geração. Os antigos estudantes do Central, da
Faculdade de Direito, o pessoal da Jogralesca e os colaboradores da revista
Mapa.
Como todo trabalho de
reconstituição, é provável que alguns (ou muitos) detalhes não correspondam aos
fatos. Os personagens envolvidos na história contada por Ayêska Paulafreitas e
Júlio César Lobo podem se fazer narradores de uma outra história. Mas a
narrativa construída neste livro faz com que o leitor atravesse suas mais de
trezentas páginas com a mesma facilidade com que lê uma crônica de jornal.
Apenas, leva um pouco mais de tempo. Mas não sente o tempo passar, porque os
dados reunidos na pesquisa dos autores são dispostos de tal forma que a gente
vê as cenas acontecendo e saindo aos poucos do papel. Os personagens pulam de
dentro das páginas e começam a falar diante da gente. As cenas vão se sucedendo
como numa sequência de cinema, o mesmo cinema que é o eixo em torno do qual
gira a aventura do jovem Glauber Rocha.
Ayêska Paulafreitas e
Júlio César Lobo não cederam à tentação de escrever a biografia do Cineasta,
mas quiseram tão somente reviver o menino e o jovem Glauber. O menino que viveu
em meio às mortes de mando, em Conquista. O jovem que liderou as jogralescas,
ou teatralizações de poemas. O impetuoso amante, que arrebata Helena Inês das
noites do high society para
a conquista de um sonho impossível a dois.
Esse livro não quer ser
uma análise da obra de Glauber, mas uma síntese da sua vida, daí o recorrer à
ficção para resgatar a realidade. Afinal, o que é o que nós chamamos de
realidade? Uma ficção socialmente compartilhada. Uma ficção assumida por um
grupo num lugar e num tempo determinados. Por isso, a realidade muda, se
transforma, surge outra num outro lugar e num outro momento.
* * *
Os autores descobriram
a melhor forma de atingir o seu objetivo, um objetivo modesto: levar Glauber às
novas gerações. Se Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo, como tantas outras
pessoas da sua geração, tomam Glauber Rocha como uma figura exponencial da
cultura brasileira, o mesmo não acontece com os jovens de vinte anos, de vinte
e cinco ou de quinze. Estes não conhecem Glauber.
A ideia de escrever o
livro tomou corpo quando os autores descobriram que os adolescentes de Salvador
só conheciam Glauber Rocha “como o nome de um cinema”. Ninguém sabia dizer o
nome de um dos seus filmes.
Mas a situação não é
muito diferente em outras cidades e em faixas etárias um pouco mais distantes
da adolescência. Quem tem menos de trinta anos conhece menos Glauber do que
quem tem quarenta. Assim o livro de Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo,
embora escrito para adolescentes é útil também para um público bem mais amplo.
E para quem conhece
Glauber, este livro é um reencontro com um momento da história da nossa
inteligência, com um momento muito significativo da história da cultura na
Bahia.
Ao contar uma história
de forma a prender a atenção dos jovens leitores, os autores conseguiram
prender a atenção de todos nós, não apenas pelo texto bem construído, mas
também por recriar a vida cultural do país, vista a partir de um ângulo que
privilegia a Bahia.
Nas tintas da ficção
de Glauber: A conquista de um sonho;
nos anos verdes nos reconhecemos e reconhecemos o ambiente intelectual
baiano visto por uma lente que amplia a parca realidade dos dias de hoje,
iluminada pela ficcionalização da realidade de ontem. Quando os poderes
públicos tinham verbas para investir no cinema, quando as artes tornavam a
nossa Universidade um espaço privilegiado, quando a polícia tratava sem
violência aos jovens estudantes, quando ainda era possível a conquista de um
sonho: construir na Bahia um centro irradiador de criatividade e ação para todo
o país.
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Biografia romanceada de
Glauber. Artigo crítico sobre o livro Glauber:
a conquista de um sonho, de Ayêska Paulafreitas e Júlio César Lobo. Belo
Horizonte, Dimensão, 1995, 340 p.
Coluna “Leitura Crítica” do jornal A
Tarde, Salvador, 11 dez. 95, p. 7.